Desenvolvendo Amor e Compaixão
Nem mesmo no mundo material, podemos depositar todos os nossos esforços em uma única coisa e esperar obter resultados imediatos. Ao invés disso, precisamos trabalhar progressivamente, em estágios. Isso vale tanto para o trabalho em nossa mente como em nossas atitudes. Para melhorar nossas atitudes, temos que trabalhar gradualmente, em estágios. Por exemplo, se tivermos muita raiva, primeiro temos que aprender a reconhecer nossa raiva e depois tentar ver todas as desvantagens de termos raiva, percebendo que, independente do ponto de vista que adotarmos, a raiva será sempre inconveniente.
Quando temos muita raiva e não treinamos adequadamente, tentamos aplicar as quatro forças oponentes com demasiada intensidade, e não conseguimos lidar com a situação. Como dizem psicólogos e psiquiatras ocidentais, se tentarmos reprimir a nossa raiva, isso criará muita frustração e mais dificuldades. Ao invés disso, eles sugerem que tentemos liberar a nossa raiva de uma forma mais relaxada, para evitar os problemas de termos essa raiva reprimida dentro de nós.
Até um certo ponto, acho que estão certos. Em certas circunstâncias precisamos dar vazão à nossa raiva de uma forma pacífica se ainda não estivermos preparados para aplicar os oponentes e nos livrarmos dela. No entanto, temos que diferenciar duas situações onde sentimos raiva ou arrogância. Uma situação é simplesmente quando não damos vazão à raiva, não liberamos a energia, e assim acabamos tendo muitos problemas. E há outras situações nas quais expressar a raiva só nutre o mau hábito de cedermos a nossos impulsos e sermos continuamente permissivos com nossa própria raiva. Temos que distinguir entre essas duas circunstâncias, e é claro que sempre é melhor controlarmos nossa raiva ou nossa arrogância. Temos que aprender a não dar vazão a ela em nenhuma circunstância, mas ainda assim cuidar dela, de modo que não crie mais problemas no futuro.
Um dos principais métodos que podemos usar é pensar no sentimento oposto àquele que está causando problemas. Por exemplo, quando sentimos raiva, o oposto disso é amor pelos outros. Se sentirmos que estamos ficando com raiva de alguém, podemos tentar sentir uma preocupação amorosa e sincera para com essa pessoa. Cada vez mais, percebemos as vantagens de termos uma atitude amorosa e as desvantagens de agirmos com raiva, e dessa forma nos sentimos capazes de aplicar esse oponente.
Quando não conseguimos aplicar o sentimento oponente numa situação específica – nesse caso, o amor – ainda assim, quanto mais nós nos familiarizarmos com as desvantagens e os inconvenientes da raiva, mais perceberemos que a força das situações nas quais sentimos raiva começa a diminuir gradualmente. Dessa forma, passamos por diferentes estágios, desde quando aprendemos ou conseguimos lidar com a raiva até nos livrarmos dela.
O mesmo se aplica quando desenvolvemos compaixão por outros. Antes de termos compaixão pelos outros e o desejo de que sejam livres de seus problemas, precisamos pensar primeiro sobre nossos próprios problemas, como não os queremos, e como gostaríamos de nos livrar deles. Assim, com base em nossos próprios sentimentos e experiências, nós nos tornamos capazes de desenvolver empatia e compaixão pelos outros. Trabalhamos gradualmente com todos esses estados mentais positivos, em estágios.
Quando dizemos que desejamos que uma pessoa seja livre de problemas e sofrimentos, e não reconhecemos realmente os nossos próprios problemas e sofrimentos, como podemos desenvolver um desejo sincero de que os outros sejam livres de seus problemas? Quando observamos uma pessoa feliz e satisfeita, é difícil desenvolvermos um sentimento de compaixão por ela, o desejo de que seja livre de problemas. Por outro lado, quando vemos alguém que está obviamente em uma situação difícil, é muito mais fácil desenvolvermos empatia e o desejo de que seja livre de sofrimento. É claro que isso tem a ver com nosso próprio entendimento do que é um problema, com base em nossa própria experiência.
A compaixão por alguém é realmente um tipo de atitude que pode ser vista de duas formas. Se for dirigida a outra pessoa, será empatia e compaixão; se for dirigida a nós mesmos, é o que chamamos de “determinação de sermos livres de problemas” ou “renúncia”. É o desejo de não termos mais sofrimento e problemas, que pode ser dirigido ou a nós mesmos, o que chamamos de renúncia, ou aos outros seres, o que chamamos de compaixão.
Quando pensamos em sofrimento, como renascer em um dos estados piores de renascimento – os reinos desprovidos de alegria e assim por diante – não podemos presumir que se trata de algo muito distante e exagerado que não tem relação conosco, ou que não precisamos lidar com isso. Temos que entender que as causas para renascermos nos estados piores – todos os tipos variados de potenciais negativos – estão acumulados e armazenados em nosso próprio contínuo mental. Dependendo dos potenciais negativos em nossa própria mente, é bem possível que em algum momento qualquer caiamos em um dos estados piores de renascimento. Portanto, é muito importante pensarmos em termos de causas e efeitos do comportamento.
Temos que refletir sobre o quanto somos afortunados por termos um renascimento humano precioso, uma vida humana preciosa com bastante liberdade e tempo para nos desenvolvermos espiritualmente. Tendo essa oportunidade de ouro, é muito importante não desperdiçá-la. Primeiro, devemos pensar em nossa vida humana preciosa, em como é difícil conquistá-la e como é fácil perdê-la. Isso nos leva a pensar na morte e na impermanência, já que podemos morrer a qualquer momento e não sabemos quando será. Assim sendo, devemos ser bem conscientes das quatro nobres verdades: a natureza dos sofrimentos verdadeiros, suas origens verdadeiras, a possibilidade de conquistarmos um cessar verdadeiro desses sofrimentos, e os caminhos mentais verdadeiros que podemos desenvolver para alcançarmos isso. Assim aproveitamos essa vida preciosa, treinando e desenvolvendo todos esses estados mentais.
Resumo
A razão pela qual esse texto é chamado de Treinamento Mental em Sete Pontos é porque treinamos para acumular atitudes. Os sete pontos são:
- primeiro, as preliminares,
- segundo, o método de treinar nas duas bodhichittas – convencional e mais profunda,
- terceiro, transformando circunstâncias adversas em um caminho para a iluminação,
- quarto, resumindo a prática a uma única vida,
- quinto, a comprovação de termos treinado nossas atitudes,
- sexto, as práticas de vínculo estreito para o treinamento mental,
- sétimo, os pontos a serem treinados para o treinamento mental.
Já falamos sobre as preliminares e agora estamos falando sobre o desenvolvimento de bodhichitta. Para resumir os pontos dos quais falamos ontem, até agora estivemos sob a forte influência do egoísmo, estimando apenas a nós mesmos. É uma preocupação egoísta, que também envolve o apego ao eu verdadeiramente estabelecido, que tem nos causado todos os problemas que vivenciamos desde os tempos sem início. Todos eles foram provocados pelo nosso próprio egoísmo. Pensando sobre os outros, quando uma pessoa é extremamente egoísta, não importa quanto tempo ela investe em atividades religiosas, ela ainda assim será considerada uma pessoa egoísta e será incapaz de fazer qualquer progresso espiritual. Quando uma pessoa que foi muito egoísta morre, todos sentem alívio porque essa pessoa morreu, pois foi uma pessoa terrivelmente egoísta. Mesmo se pensarmos só nesta vida, se formos egoístas, todos pensarão que somos uma pessoa desagradável e ninguém se importará conosco. Por outro lado, se formos altruístas e sempre nos importaremos com os outros, seremos vistos como uma pessoa agradável e boa.
Se tivermos caído em um renascimento pior, e renascermos como um animal, por exemplo, a única causa que podemos apontar para a queda é a autopreocupação egoísta. A causa de qualquer situação difícil é sempre a autopreocupação egoísta e o auto-apreço, e até mesmo os seres altamente realizados não conseguem conquistar a iluminação por causa de sua autopreocupação. Todo potencial benéfico e construtivo vem de conquistar um tipo de renascimento humano ou paradisíaco – até conseguirmos conquistar a libertação e a iluminação. E tudo isso vem de nos importarmos com os outros.
Mesmo se olharmos para esta vida, todos os bons acontecimentos têm sua origem em um coração gentil e bondoso. Quando somos uma pessoa atenciosa, que se importa realmente com os outros, as coisas funcionam também nesta vida. Portanto, independente da nossa situação, não devemos nos perder na autopreocupação, mas sempre pensar em todos os outros. Isso foi mencionado no texto: importar-se com os outros é a base e a fundação de todas as boas qualidades.
Fazendo uma revisão dos pontos mais importantes: quando refletimos sobre as desvantagens do auto-apreço e do egoísmo e as vantagens de nos importarmos com os outros, buscamos desenvolver um amor reconfortante com o qual estimamos todos os outros e nos importamos profundamente com seu bem-estar. Com essa base, treinamos em oferecer nossa felicidade para os outros com um desejo amoroso de que sejam felizes, e de tomar para nós os problemas e o sofrimento dos outros com o coração compassivo da empatia. Embora seja muito difícil tomar para si e tirar os problemas das pessoas, quando desenvolvemos essas atitudes, com visualizações combinadas com a respiração, eventualmente acumulamos o potencial para realmente conseguirmos tomar para nós e curar os problemas alheios. Chamamos essa prática de “dar e receber”, “tonglen” – tomar para si os problemas de outras pessoas e oferecer-lhes felicidade.
Transformando Circunstâncias Adversas em um Caminho para a Iluminação
Todos nós vivenciamos circunstâncias difíceis, externa e internamente. Por exemplo, nós tibetanos certamente tivemos muitas circunstâncias difíceis. Isso se aplica ainda mais àqueles de nós que estão no Tibete, pois sentem sempre o perigo e o medo de poderem ser presos e executados a qualquer momento.
O primeiro ponto nos diz que em tais situações, quando temos atitudes de hostilidade e apego, ou quando simplesmente nos fechamos e nossa mente também se fecha, precisamos desenvolver atitudes que nos possibilitem transformar as circunstâncias em oportunidades de progresso espiritual. Uma das formas de fazer isso é tomar para nós a hostilidade, o apego, a ingenuidade limitada dos outros, lidar com isso, e nos livrarmos disso para o bem de todos. Dessa forma, transformamos essas circunstâncias adversas em circunstâncias positivas.
[Nota: A explicação de Namkapel aqui está comentando apenas a frase da edição de Togme Zangpo que diz: “Quando as pessoas e o meio ambiente à sua volta estiverem cheios de energia negativa, transforme as condições adversas em caminho para a iluminação” Namkapel moveu a segunda parte da frase da edição de Togme Zangpo: “banindo [a atitude auto-centrada], que é culpada por tudo, e meditando com grande afetuosidade sobre os outros seres” para a seção prévia que diz respeito às desvantagens do auto-apreço e as vantagens de estimar os outros. A edição de Pabongka segue a de Namkapel.]
Não importa qual é nosso problema, seja ele mental ou físico, ajuda bastante tentar tomar para nós os problemas de todos que sofrem disso e pensar: “Que o sofrimento dos outros acabe; através dos meus sofrimentos, que ninguém tenha que voltar a ter esse tipo de sofrimento.” Podemos olhar para as nossas dificuldades como um resultado de nossos próprios potenciais negativos que acumulamos no passado, ao invés de pensarmos que vêm de alguma fonte externa. Agora que estão amadurecendo, podemos nos sentir felizes, pois estamos nos livrando deles, e desejamos que os potenciais negativos de todos os seres também amadureçam em nós. Assim sendo, todos se livrarão do perigo de vivenciar o sofrimento como resultados de potenciais negativos.
Quando vivenciamos circunstâncias e condições felizes, podemos ver que são o resultado de potenciais positivos que desenvolvemos no passado e nos alegrar por isso, pensando: “Tenho que acumular ainda mais potenciais positivos para que no futuro haja ainda mais circunstâncias conducentes para mim mesmo e para os outros.” É importante não cairmos no orgulho ou na arrogância, nem nos vangloriarmos quando as coisas vão bem para nós. Ao invés disso, podemos nos motivar a acumular ainda mais potencial positivo para que este nunca se esgote. Assim transformamos as condições negativas em positivas com nossos pensamentos.
[Nota: O texto de Namkapel omite a próxima frase da edição de Togme Zangpo sobre como transformar circunstâncias adversas com nossos pensamentos, no que se refere à nossa visão: “A vacuidade, (cuja compreensão vem) de meditarmos sobre as aparências ilusórias como sendo os quatro corpos dos budas, é o protetor incomparável.” Pabongka também omite essa frase. Ao invés disso, Namkapel, como Pabongka, anexa a frase: “e aplicarei instantaneamente a meditação a qualquer situação que eu encontrar” depois de: “Quando as pessoas e o meio ambiente à sua volta estiverem cheios de energia negativa, transforme as condições adversas em caminho para a iluminação”. Na edição de Togme Zangpo, essa frase ““e aplicarei instantaneamente a meditação a qualquer situação que eu encontrar” vem após a próxima, nas edições de Namkapel e Pabongka, que é: “o método supremo inclui quatro ações a serem usadas.”]
O segundo ponto nos mostra como podemos transformar circunstâncias adversas em positivas com quatro tipos de ações:
- A primeira ação é desenvolver mais força positiva. Não importa quais as circunstâncias negativas que surgirem, isso nos inspirará a acumular ainda mais potenciais positivos para que nem nós e nem nenhuma outra pessoa tenha que vivenciar esse tipo de dificuldade. Fazemos oferendas para cima, dirigindo-as aos budas e os seres iluminados, e para baixo, para todos os seres limitados – oferecendo-lhes o máximo que pudermos oferecer. Dessa forma, acumulamos mais força positiva. Essa primeira ação de transformar circunstâncias negativas em positivas é permitir que elas (as próprias circunstâncias) nos inspirem a fazer algo positivo.
- A segunda ação é a purificação do potencial negativo. Fazemos isso admitindo abertamente os erros que cometemos e aplicando as várias forças oponentes, principalmente sentimentos de grande remorso e arrependimento. Mesmo se tivermos acumulado um potencial negativo enorme, como Milarepa, quando sentimos grande arrependimento e remorso em relação ao que fizemos, quando admitimos abertamente que foi um erro e aplicamos os oponentes adequados, nos sentimos capazes de purificar-nos desses potenciais negativos.
- A terceira ação é fazer oferendas aos espíritos nocivos. Quando temos dificuldades e pensamos que elas vêm dos espíritos nocivos, damos a eles amor e compaixão. Algumas vezes, é possível que nossos problemas estejam vindo desses espíritos nocivos. Tomamos todos os problemas desses espíritos nocivos para nós, pois eles com certeza estão em uma situação terrível. Dessa forma, transformamos uma situação negativa em outra positiva.
- A quarta ação é pedir pela influência iluminadora dos protetores do dharma. Percebemos que vários problemas que surgem são simplesmente a natureza do samsara. Portanto, pedimos pela influência iluminadora dos vários protetores, para sermos capazes de lidar com essas situações e transformá-las em situações positivas para nosso crescimento espiritual. Fazemos pedidos sinceros, do fundo do coração, que eles nos inspirem para que sejamos capazes de aumentar nossos esforços no treino de nossas atitudes.
Em suma, não importa qual circunstância negativa encontramos, seja ela externa ou interna, quando aplicamos esses vários métodos, somos capazes de transformá-las em circunstâncias positivas para nosso crescimento.
Esses pontos também estão no texto “Engajando-nos no Comportamento de um Bodhisattva”. Eles estão implícitos na oração que há no fim do texto, na qual rezamos: “Enquanto houver espaço e enquanto houver seres errantes, que eu possa também permanecer pelo tempo necessário para dispersar o sofrimento dos seres errantes.”
Condensação da Prática em Uma Única Vida: As Cinco Forças
[Nota: A próxima frase é: “Resumindo, a essência dos ensinamentos quintessenciais é aplicar as cinco forças.” Ela também é a próxima frase nas edições de Togme Zangpo e Pabongka.]
Há cinco forças para resumir a prática a uma vida, ou melhor, a esta vida. A primeira força é a intenção que projetamos no futuro. Desejamos: “Que eu sempre seja capaz de desenvolver o ideal de bodhichitta; que eu sempre seja capaz de praticar o treinamento das atitudes; que eu sempre seja capaz de desenvolver as boas qualidades que me permitirão realmente beneficiar a todos os outros.” Projetar a força de nossa intenção no futuro é como se estivéssemos preparando a realização desses desejos. Portanto, projetamos a intenção: “Eu me desenvolverei dessa forma positiva. Agora que tenho a oportunidade de fazer as práticas do veículo vasto do mahayana, vou aplicar e dirigir toda a minha força e todas as minhas energias ativas nesse sentido.”
Para fazer isso todos os dias, dizemos de manhã quando acordamos: “É muito afortunado ter acordado hoje. Estou vivo! Tenho uma vida humana preciosa. Não vou desperdiçá-la, mas usarei todas as energias dessa vida preciosa para beneficiar os outros o máximo possível. Portanto, terei pensamentos bondosos em relação a todos os seres. Não ficarei com raiva nem terei pensamentos negativos. Farei o máximo possível para usar todas as minhas energias para ajudar e beneficiar os outros.”
É muito importante termos intenções muito práticas logo de manhã. Da mesma forma, à noite, podemos examinar nossas ações: “O que fiz hoje? Que tipo de pessoa fui hoje: será que ajudei os outros ou só os usei para meus próprios propósitos egoístas? Fiquei com raiva; desenvolvi apego?” Precisamos examinar honestamente nosso dia para ver como nos comportamos e que tipos de atitudes desenvolvemos durante o dia. Se percebermos que fomos uma pessoa gentil e acolhedora, podemos nos alegrar por isso, nos sentir felizes e animados. Mas se tivermos agido de alguma forma muito perturbadora, precisamos sentir arrependimento por isso, admitir que agimos errado, e adotar uma intenção bem forte de: “Amanhã, eu não agirei mais de uma forma tão negativa.”
Se fizermos isso todos os dias, melhoraremos gradualmente e aprenderemos a sustentar esse comportamento resolvendo “agir bem” pelo próximo dia, mês ou ano. Também podemos nos fortalecer, por exemplo, vindo a ensinamentos como este. Podemos estabelecer uma intenção forte se pensarmos: “Agora vou escutar ensinamentos sobre treinamento de atitude e colocá-los em prática o máximo possível.”
A segunda é a força da semente branca, que criamos com essa oração: “Que eu alcance a iluminação pelo bem de todos os seres”. Isso reafirma a nossa dedicação à iluminação, nossa e de todos os outros.
A terceira é a força de eliminar tudo de uma vez, o que significa desistir completamente, de uma vez, daquilo ao que decidimos renunciar: nosso egoísmo, nossas atitudes perturbadoras, nossa autopreocupação, nosso apego a um eu verdadeiramente estabelecido, e assim por diante. Com a decisão de não nos permitirmos estar sob a influência dessas atitudes, dizemos: “Não permitirei a mim mesmo o orgulho, a arrogância ou o egoísmo; e se eu me flagrar agindo dessa forma, imediatamente aplicarei as forças oponentes.”
A quarta é a força da oração. Oramos: “Que eu seja sempre capaz de desenvolver um ideal de bodhichitta e, se já o tiver desenvolvido, que eu possa expandi-lo ainda mais.” Sabemos que existe uma diferença entre uma oração de aspiração e uma oração de dedicação. Uma oração de aspiração é quando desejamos simplesmente que algo aconteça, que é do que estamos falando aqui; e uma oração de dedicação é quando usamos algum objeto material como base e dedicamos a força positiva dessa oferenda para a conquista do objetivo.
A quinta é a força do hábito. Precisamos acumular, o máximo possível, o hábito de pensarmos constantemente dessas formas positivas. É extremamente importante tentar acumular esse hábito benéfico quando iniciamos qualquer tipo de treinamento espiritual. As coisas não acontecem de uma vez; temos que nos familiarizar cada vez mais com o processo para que a mente e o coração possam gradualmente tomar um rumo positivo. É importante sustentar nosso esforço durante períodos extremamente longos, não pensando apenas em semanas ou meses de prática intensa; a coisa não funciona assim. Ao invés disso, temos que pensar em termos de uma sequência de vidas para podermos acumular esses hábitos positivos durante um período significativo e, dessa forma, conseguirmos melhorar gradualmente. Como agimos sob a influência de atitudes perturbadoras desde os tempos sem início, de uma forma indisciplinada e sem nenhum autocontrole, não será fácil eliminar esses hábitos negativos. Será necessário mantermos um esforço contínuo para que possamos reverter gradualmente a maré de como nossa mente e nosso coração funcionam e fazer com que tomem um direcionamento positivo. Portanto, precisamos ser pacientes e pensar a longo prazo para que a mente e o coração adotem hábitos positivos.
Depois de concentrarmos nossos esforços durante uma semana ou um mês de prática intensa, nos sentimos muito desmotivados quando não progredimos. Isso pode ser muito prejudicial a longo prazo, no que se refere ao nosso desenvolvimento na sequência de vidas. Por outro lado, quando pensamos de uma forma mais prática e desejamos melhorar vida após vida, não nos sentimos desmotivados nem temos expectativas que não sejam razoáveis. Assim, nós nos desenvolvemos de uma forma mais sustentável.
Como disse Geshe Chekawa: “Esta mente cheia de falhas tem uma grande qualidade positiva: “qualquer que tenha sido o seu treino, ela se tornou como foi treinada.” Em outras palavras, é possível treinar nossa mente para mudar nossos hábitos e nos tornarmos pessoas melhores. Essa é a grande qualidade da mente.
Aplicando as Cinco Forças no Momento da Morte
O próximo ponto explica como aplicamos as cinco forças no momento da morte.
[Nota: Isso está no comentário nas seguintes linhas: “O ensinamento quintessencial mahayana para a transferência da mente é as cinco forças, ao mesmo tempo em que se dá importância à nossa conduta durante o caminho.”]
Aqui a ordem é ligeiramente diferente. Com a nota importante de que temos que renunciar ao apego ao nosso corpo, primeiro vem a força da semente branca. Isso se refere a pensar no momento da morte: “Agora, no momento de minha morte, eu me purifico de todas as coisas negativas que fiz durante a minha vida; admito todos os erros e enganos que cometi; e ofereço todas as minhas posses.”
O texto tem um trecho de “Engajando-se no Comportamento de um Bodhisattva” sobre os horrores de morrer se tivermos muitos remorsos e um grande arrependimento de não termos resolvido bem nosso passado. Já que é bem possível que tenhamos muito medo no momento da morte, o primeiro ponto é a semente branca: tentar ter presença mental no momento da morte, e aplicar todos os oponentes para purificar os potenciais negativos que acumulamos. Se estivermos envolvidos com a prática do tantra, fazemos a autoiniciação e renovamos nossos votos. Cuidamos de todas as nossas posses, dando-as aos outros, com generosidade, e sem apego, de uma forma bem leve. Essa é a força da semente branca.
A próxima é a força de nossa intenção. Quando estamos morrendo, pensamos: “Não importa quanto tempo me sobra, eu o aproveitarei plenamente e me prepararei totalmente para a morte, para que tudo possa ser melhor no futuro.”
A próxima é a força de eliminar tudo de uma só vez, o que significa que desistimos de acumular mais força cármica negativa nas próximas vezes e resolvemos que em todas as vidas futuras só seguiremos caminhos positivos.
A próxima força, a força da oração, é rezar para que no futuro sejamos capazes de continuar com essa prática de treinamento de atitude.
Quando estamos morrendo, a força do hábito é aquela que reforça nosso pensamento habitual no ideal de bodhichitta. Além disso, no que se refere a como deixamos nosso corpo no momento de nossa morte, precisamos tentar morrer da mesma forma que o Buda. Quando o Buda morreu em Kushinagar, ele o fez deitado sobre o lado direito de seu corpo, na postura do leão. Ao morrer, geramos uma convicção firme e uma grande admiração pela bodhichitta, e pensamos: “Em todas as minhas vidas, que eu sempre possa desenvolver um ideal de bodhichitta para alcançar a iluminação para o bem de todos os seres.” Ao morrer, sempre projetamos essa intenção em todas as vidas futuras.
Visualizar que tomamos para nós todos os sofrimentos alheios e que oferecemos toda a nossa felicidade, em conjunção com nossa respiração, é a melhor maneira de morrer. No que se refere a powa, ou à transferência da consciência, Geshe Chekawa disse: “Há muitos ensinamentos quintessenciais altamente glorificados para a transferência da consciência, mas de todos eles, não há nenhum que seja mais incrivelmente extraordinário do que esse (a prática de receber e dar.)”
É extremamente importante morrer com um estado mental construtivo e positivo. Alguns de nós podem vir a sentir muita dor nesse momento e tomar analgésicos, que obscurecem a mente. Se pudermos evitar isso, é bem melhor morrer com um estado mental claro. Se não pudermos evitar, é outra coisa, mas é melhor não morrermos drogados.
A Comprovação de Termos Treinado Nossas Atitudes
[Nota: Nas edições de Namkapel e Pabongka, essa seção aparece como: “Eu resumo todo o dharma em uma única intenção; entre as duas testemunhas, considero (a mim mesmo) a principal, e confio contínua e exclusivamente na felicidade mental. Mas a comprovação (real) de estar bem treinado é quando (a minha atitude) muda. Há cinco grandes sinais de que estamos bem treinados; portanto, se eu for capaz, mesmo quando estiver distraído, então estou bem treinado. As primeiras três frases são consideradas sinais de que treinamos as nossas atitudes. Na edição anterior de Togme Zangpo, as frases: “Mas a comprovação (real) de estar bem treinado é quando (a minha atitude) muda. Há cinco grandes sinais de que estamos bem treinados”, não aparecem, e as três primeiras frases e a última estão todas incluídas como a medida de termos treinado nossas atitudes.]
O comentário do texto diz que quando treinamos nossas atitudes em relação à vida com pensamentos de impermanência, não importa o que vemos ao longo de nossos dias, entenderemos que se trata de algo impermanente, e que isso passará. Da mesma forma, quando treinamos nossa mente a pensar sobre as desvantagens do egoísmo, o sinal de que treinamos é que em qualquer texto que lemos, e em qualquer atividade que realizamos, nos quais reconhecemos as várias falhas que foram descritas, nos identificamos com essas falhas e sentimos que todas elas ocorreram por causa de nosso egoísmo. Se formos sempre capazes de reconhecer que esses aspectos negativos que enxergamos sempre surgem de nosso próprio egoísmo, isso será um sinal de que fomos bem-sucedidos quando treinamos nossa mente com esses métodos.
Como nos diz “O Treinamento Mental em Sete Pontos”, precisamos nos ver como a testemunha principal. Somos as melhores testemunhas de como nossa mente está funcionando, não os outros que testemunham e julgam o que estamos fazendo. Se outras pessoas têm que ser testemunhas e confirmar as coisas espirituais e religiosas que fazemos, há o grande perigo de simplesmente fazermos um grande show para que os outros pensem que somos praticantes espirituais maravilhosos. Ao invés disso, o mais importante é fazermos todos esses treinamentos internamente; somos a testemunha principal no que se refere a saber se estamos ou não nos tornando uma pessoa mais bondosa e melhor.
Podemos adicionar aqui mais algumas citações, principalmente dos geshes da Kadam: “Quando vemos qualquer falha, nós a percebemos como sendo nossa própria falha”. “Quando vemos qualquer circunstância negativa que encontramos como sendo o resultado de nosso próprio egoísmo, esse é um sinal de que treinamos bem a nossa atitude”. “O mais importante é termos sempre presença mental e pensarmos sobre as vantagens de estimar os outros e as desvantagens da autopreocupação egoísta.”
A verdadeira comprovação de termos treinado nossa atitude é que, antes, sempre ignorávamos os outros e pensávamos apenas em nós mesmos; mas se agora descobrimos que isso era totalmente invertido, que estamos sempre deixando de lado nossos propósitos egoístas por pensarmos mais nos outros, esse é o verdadeiro sinal de que fomos bem-sucedidos.
Há cinco tipos de “seres grandiosos” que precisamos testemunhar em nós mesmos, que nós nos tornamos:
- Um ser de coração grande – alguém que investe todos os seus esforços em pensar sempre nos outros e desenvolver bodhichitta,
- Um ser grandioso treinado em comportamentos construtivos – alguém que investe sempre todos os seus esforços nas dez atitudes de amplo alcance e em comportamentos construtivos,
- Um ser grandioso capaz de suportar dificuldades – alguém capaz de suportar todas as dificuldades e vencer a batalha contra suas várias emoções e atitudes perturbadoras.
- Um ser grandioso e altamente disciplinado – alguém que mantém todas as restrições dos votos em relação ao treinamento de suas atitudes.
- Um grande iogue – alguém que está conectado ao caminho autêntico: especialmente à bodhichitta.
[Nota: As dez ações ou perfeições de amplo alcance são: generosidade, autodisciplina ética, paciência, perseverança alegre, estabilidade mental (concentração), consciência discriminativa (sabedoria), habilidade dos meios, oração de aspiração, consciência profunda.]
Quando desejamos testar se realmente treinamos nossas atitudes, não podemos restringir a manifestação de um grande amor pelos outros aos momentos nos quais estamos sentados meditando sobre esses pontos. Ao invés disso, em nosso cotidiano, quando alguém nos critica ou faz algo que nos magoa, e assim por diante, se formos capazes de observar nossas reações, poderemos realmente testar quais progressos de fato fizemos.
Práticas de Vínculo Estreito para o Treinamento Mental
As tradições diferem na apresentação do sexto dos sete pontos. A versão que estou usando do texto de Namkapel tem dezesseis práticas de vínculo estreito, embora algumas outras versões tenham até dezoito.
[Na tradição dos comentários do texto de Namkapel que Sua Santidade está seguindo, se a primeira prática de vínculo estreito “treine sempre nos três pontos gerais” for contada como sendo composta de três práticas, essa lista também terá dezoito práticas. Essa lista, como foi explicado por Sua Santidade, segue a lista das dezoito práticas que estão tanto nas edições de Togme Zangpo quanto no texto de Geshe Chekawa.
No entanto, em algumas outras edições do texto de Namkapel que lista dezoito práticas, ocorrem as seguintes variações:
Essa primeira prática conta como sendo uma única prática.
Uma prática de vínculo estreito que foi omitida dessa lista, mas acrescentada à versão explicada por Sua Santidade, como pontos a serem treinados para purificar nossas atitudes:
- Eu me purifico primeiro de qualquer que seja a minha maior emoção perturbadora. Nessa lista de pontos a serem treinados, isso se chama: “Eu me purifico primeiro do que for mais grosseiro.”
Uma prática de vínculo estreito está totalmente omitida:
- Não reverta o amuleto.
Duas outras práticas de vínculo estreito são acrescentadas e, nessa versão explicada por Sua Santidade, são listadas como pontos a serem treinados para purificar nossas atitudes;
- Sempre treine pensando naqueles que foram postos de lado.
- Não dependa de outras condições.
Duas práticas de vínculo estreito são acrescentadas, que não aparecem nas outras versõe,s nem como uma prática de vínculo estreito nem como um ponto a ser treinado:
- Seja enérgico em se livrar (das emoções e atitudes perturbadoras) e adotar (atitudes positivas), subjugando (suas atitudes perturbadoras) com vigor.
- Devaste todas as razões (que levam ao surgimento de apego e aversão aos outros).]
(1) Treine sempre nos três pontos gerais. O primeiro ponto geral é “Não contradizer o que prometi no que se refere ao treinamento de minhas atitudes.” Fazemos isso seguindo a autodisciplina ética, evitando as dez ações destrutivas, e assim por diante. Um mau comportamento, não seguir a autodisciplina ética, contradiria o treinamento de nossas atitudes. Desde o início da prática até o grande Tantra do Gushyasamaja, não devemos desperdiçar nenhuma dessas práticas, pois isso contradiria a promessa com a qual nos comprometemos.
O segundo dos três pontos gerais é: “Não me permitirei um comportamento ultrajante quando estiver treinando minhas atitudes.” Como, por exemplo, prejudicar o meio-ambiente. O terceiro é: “Não serei parcial quando estou treinando minhas atitudes”, pelo contrário, praticarei de forma equânime com todos, incluindo animais e insetos.
(2) Transformar minhas intenções, mas permanecer normal. Em outras palavras, permanecemos normais em nossa aparência e em como agimos em sociedade, mas mudamos todas as nossas atitudes. Em outras palavras, não precisamos ter ideias estranhas sobre nós mesmos. Por exemplo, quando estamos treinando nossas atitudes, fazendo esse tipo de prática, não devemos sair e fazer qualquer coisa que passe pela nossa cabeça. Como sempre foi dito, devemos seguir todas as práticas espirituais internamente, mas agir de uma maneira consistente e harmônica com o ambiente e a sociedade na qual vivemos. Não devemos agir de forma ultrajante. Muitas pessoas disseram isso, incluindo os grandes lamas Tsongkhapa e Gungtangzang.
(3) Não falar do lado falhos ou podre (dos outros). Em outras palavras, não saímos por aí criticando os outros e nos preocupando com o nível das conquistas alheias. Normalmente, somos incapazes de ver boas qualidades nos outros, mas se tiverem um pequeno defeito, logo o enxergamos, como um falcão. Esse é o significado de não falarmos sobre as fraquezas alheias.
(4) Não pensar nada a respeito das falhas (alheias). Temos que deixar de lado a prática de ruminar mentalmente, ou ficar pensando e refletindo, sobre as falhas alheias.
No que se refere a esses primeiros pontos, é útil treinarmos neles especialmente no que diz respeito aos cinco tipos de pessoas selecionadas e apontadas como sendo pessoas com quem temos que ser especialmente cuidadosos:
- Aqueles que foram muito bondosos conosco. É crucial não desenvolvermos raiva em relação àqueles que foram muito bondosos conosco e que merecem todo nosso respeito: as Três Joias, nossos mentores espirituais, nossos pais, e assim por diante, pois fazer isso seria muito grave.
- Membros da nossa família e aqueles com quem lidamos diariamente. Isso se refere a sermos especialmente cuidadosos com nossa família e aqueles com quem convivemos. Muitas vezes, dizemos: “Que todos os seres sencientes sejam felizes; que eu possa trabalhar para beneficiar todos os seres limitados.” Mas costumamos pensar que esses seres estão muito distantes de nós, e quando se trata daqueles com quem convivemos diariamente – nossa família, pessoas próximas – somos incapazes de aplicar essa aspiração altruísta na prática. Isso é completamente equivocado. Precisamos aplicar nossas energias totalmente, não só com alguns “seres sencientes” teóricos e indefinidos, mas também com aqueles com quem temos contato diário, incluindo nossos vizinhos e aqueles que achamos especialmente desagradáveis. Nossas orações devem ser extremamente práticas, num nível bem realista e pé no chão, para podermos lidar com as situações árduas que acontecem ao nosso redor. “Todos os seres sencientes” não são conceitos distantes; precisamos no envolver diretamente.
- Aqueles que competem conosco, sejam eles leigos ou ordenados. Precisamos investir um esforço especial quando lidamos com aqueles que competem conosco e têm inveja de nós, já que existe o grande perigo de desenvolvermos hostilidade em relação a eles e auto-apreço por nós mesmos. É importante fazermos um esforço especial para treinarmos nossas atitudes em relação a eles.
- Aqueles que falam mal de nós, embora não tenhamos feito nada que justifique isso. Isso se refere a pessoas que, ao invés de demonstrarem gratidão quando fazemos algo de bom para elas, falam mal de nós e nos difamam. Normalmente, isso nos irrita muito, pois esperamos que ajam de forma apropriada conosco. Numa situação como essa precisamos fazer um esforço maior para não sentirmos raiva e continuarmos treinando nossas atitudes.
- Aqueles cuja simples visão ou mero som de seus nomes, nos faz sentir repulsa ou antipatia. Precisamos ser especialmente cuidadosos com as pessoas por quem sentimos grande antipatia e com aquelas, que também podemos incluir aqui, por quem sentimos grande atração. Por exemplo, quando por acaso encontramos alguém por quem sentimos imediatamente forte repulsa ou forte atração. Nessas situações é importante sermos bem conscientes para não agirmos sob a influência do desejo, da hostilidade ou da aversão.
[Essa explicação dos cinco tipos de pessoas selecionadas é a interpretação habitual para o décimo segundo ponto a ser treinado para a purificação de nossas atitudes: “Treinarei sempre atento àqueles que foram postos de lado.” na lista encontrada nesta versão do texto que Sua Santidade está seguindo.]
Quando as coisas vão bem, alguns de nós agem como pessoas religiosas. Mas quando elas não vão bem, voltamos aos comportamentos mundanos. Como vocês sabem temos o costume de circumambular, carregando uma mala ou uma roda de orações. Certa vez, alguém estava circumambulando e carregando uma roda de orações, quando outra pessoa chegou e perguntou: “O que você está fazendo?”. O homem respondeu: “Estou praticando o dharma.” Quando o outro lhe perguntou: “O que está fazendo mais especificamente?”, ele disse: “Estou acumulando o hábito da paciência.”. A outra pessoa exclamou: “Vai comer merda!” e o outro, que deveria estar meditando sobre a paciência, ficou furioso! Ele só estava dando um show, fingindo ser religioso ao circumambular. Em seu coração, ele não tinha mudado.
(5) Me purificar primeiro de qualquer que seja a minha emoção mais perturbadora. Temos que lidar com as nossas atitudes mais perturbadoras, mas não podemos ser parciais, lidando com algumas e não com as outras. Quando lidamos com nossas emoções perturbadoras, precisamos nos libertar de todos os obstáculos emocionais que impedem a libertação. Para fazermos isso, temos que nos livrar de todas as atitudes perturbadoras, não só de algumas delas.
Como está escrito no texto, temos que nos forçar a nos livrarmos de nossas atitudes perturbadoras e de nossos maus hábitos, e sempre pensar nos outros. Fazemos isso ouvindo, pensando e meditando sobre essas medidas, e acumulando hábitos mentais positivos. Nós nos forçamos a renunciar ao apego e ao auto-apreço, e não nos deixamos desmotivar. Temos que tomar uma resolução mental muito firme: não podemos nos permitir ficar sob a influência de atitudes perturbadoras do passado e não devemos deixar que nenhuma circunstância nos afaste dessa intenção.
(6) Me livrar da esperança de colher frutos. Não estamos treinando nossa mente e mudando nossa atitude para que todos nos amem. Tampouco estamos buscando algum tipo de fama ou recompensa por sermos uma pessoa tão religiosa e espiritual. Ao invés disso, devemos mudar nossas atitudes com o único propósito de ajudar os outros. Desejamos alcançar a iluminação para beneficiar os outros, não para nós mesmos.
(7) Renunciar à comida envenenada. Isso significa que é muito fácil envenenarmos nossa prática com egoísmo e auto-apreço. Fazemos várias práticas, recitamos orações, fazemos meditações, lemos e estudamos textos, mas embora digamos que estamos fazendo isso pelo benefício de todos os seres limitados, é possível envenenar toda a nossa prática se fizermos isso com a intenção de, por exemplo, sermos um grande erudito. Usar a prática para obter ganhos para esta vida, ficar livre de doenças, ter uma vida longa, e assim por diante – são coisas que apenas nos beneficiam, não aos outros – isso não funciona. É como quando comemos comida envenenada: isso só nos faz aumentar o auto-apreço.
(8) Não confiar (em meus pensamentos perturbadores) como sendo meus esteios de excelência. Isso tem duas interpretações diferentes. Em alguns comentários significa não permitir que nossa mente seja levada rumo às atitudes perturbadoras. De acordo com outros comentários, isso significa que quando encontramos alguém, nossa mente vai direto para essa pessoa, como um carro em uma estrada de alta velocidade. Essa segunda interpretação, explicada nesses comentários, significa que quando, por exemplo, uma pessoa nos perturba, não devemos permitir que a nossa mente vá direto para ela com pensamentos de rancor. A primeira interpretação me parece um pouco mais fácil de entender, que precisamos evitar que nossa mente seja levada rumo às atitudes perturbadoras.
(9) Não reagir de forma negativa. Isso seria retaliar, ofender as pessoas quando elas nos ofendem, ou revidar golpes.
(10) Não preparar emboscadas. Da mesma forma que bandidos esperam para atacar viajantes em emboscadas às margens de estradas, não precisamos esperar que alguém cometa um erro ou aja de forma inadequada para atacá-lo ou acusá-lo. Para uma boa pessoa, é fácil ser bom com aqueles que são gentis, mas é difícil com aqueles que realmente nos testam.
(11) Não humilhar (ninguém) mencionando seus pontos fracos. Isso nos lembra que não devemos apontar para as falhas de alguém diante de terceiros.
(12) Não transferir a carga de um dzo para um boi. Um dzo é um animal muito grande – um cruzamento de um iaque e uma vaca – em outras palavras, não devemos culpar os outros pelas coisas que nós fizemos. Ao invés de transferirmos a carga para outro menos capaz de carregá-la, assumimos total responsabilidade.
(13) Não apostar corridas. Isso significa que não precisamos sempre nos forçar a estar à frente dos outros nem tentar receber todos os méritos pelas coisas positivas que ocorreram.
(14) Não reverter o amuleto. Quando seguramos um amuleto ou talismã para afastar os espíritos, nós o seguramos olhando para a frente, com a parte traseira virada para nós. Da mesma forma, quando treinamos nossa mente, é para estimar os outros. Se o fizermos só para nos sentirmos importantes, é como segurar o amuleto do lado contrário.
(15) Não transformar um deus em um demônio. Isso significa que não devemos fazer algo só para agradar ao nosso auto-apreço. Por exemplo, às vezes as pessoas criticam para receberem elogios ou se sobreporem aos outros. Fazer isso é agir de forma especialmente errônea.
(16) Não provocar o sofrimento (alheio) como complemento para a (minha) felicidade. Em suma, é muito importante ter a intenção adequada antes de fazer qualquer coisa – ter certeza de que ela beneficia realmente todos os outros. Por isso, no início de nossas recitações e orações, definimos sempre a intenção e no final dedicamos a força positiva.
Pontos a Serem Treinados para o Treinamento Mental
Este é o ponto final do Treinamento Mental em Sete Pontos.
[Na tradição dos comentários do texto de Namkapel que Sua Santidade está explicando, há vinte e dois pontos a serem treinados. A mesma lista de vinte e dois aparece nas edições de Togme Zangpo e Pabongka do texto raiz de Geshe Checawa.
Algumas outras versões do texto de Namkapel listam vinte e quatro pontos a serem treinados. Neles ocorrem as seguintes variações:
Um ponto a ser treinado foi omitido dessa lista, mas incluído na versão explicada por Sua Santidade como um ponto a ser treinado:
- Livrar-se de tudo o que está distorcido em você.
Dois pontos a serem treinados foram omitidos dessa lista, mas adicionados à versão explicada por Sua Santidade como práticas de vínculo estreito para purificar nossas atitudes.
- Treine sempre observando as pessoas selecionadas.
- Não dependa de outras condições.
Cinco pontos a serem treinados, que não aparecem nas outras versões nem como uma prática de vínculo estreito nem como um ponto a ser treinado, foram adicionados:
- Treine com práticas mais fáceis.
- Transforme tudo em um caminho mental do Mahayana.
- Pratique o que for mais efetivo – como a disciplina ética mais do que a generosidade, ou bodhichitta em todas as circunstâncias.
- Se eu parar (de treinar as minhas atitudes), meditarei sobre isso como o antídoto – em outras palavras, meditarei que essa interrupção é uma interferência dos espíritos nocivos e praticarei dar e receber (tonglen) com outros que estão tendo o mesmo problema.
- No futuro, sempre usarei minha armadura (de bodhichitta)
Um ponto, “agir de forma pura, sem parcialidade em relação aos objetos”, é incorporado como parte de outro, “estimar (aplicar) um treinamento amplo e profundo em tudo.”]
(1) Fazer todas as yogas com uma (intenção). Esse ponto nos aconselha a fazer todas as nossas atividades com a intenção de beneficiar a todos.
(2) Livrar-se de tudo o que está distorcido em você. Em outras palavras, precisamos tentar nos livrar de nossas atitudes e emoções perturbadoras com uma prática – dar e receber.
(3) No começo e no fim, ter as duas ações. Isso se refere ao que discutimos antes. Significa (a) criar uma intenção forte no começo de cada dia e (b) dedicar a força positiva no fim do dia.
É o tipo de coisa que pratico diariamente, definir a intenção forte de que todas as minhas ações sejam benéficas para todos os seres. Mais especificamente, para os tibetanos no Tibete, nosso país, que estão passando por tantas dificuldades, dedico-me totalmente a eles. No final do dia, dedico qualquer força positiva que foi acumulada por minhas ações à realização dessa oração.
(4) Independente do que ocorrer, agir pacientemente. Aplica-se a dar nossa felicidade aos outros quando as coisas não vão bem, sem ficarmos desmotivados. É importante termos uma grande coragem nessas práticas que envolvem dar nossa felicidade e tomar para nós os problemas alheios. Se estivermos felizes, podemos pensar: “Esse é o resultado dos potenciais positivos que acumulei no passado.” Não devemos pensar: “Como sou maravilhoso!” Ao invés disso, quando estamos felizes, devemos orar para que todos possam conquistar a mesma felicidade; que todos possam desfrutar de uma situação tão boa quanto a nossa.
É extremamente importante fazermos bastante esforço para conseguirmos tolerar situações difíceis. Como diz Shantideva no texto “Engajando-se no Comportamento de um Bodhisattva”, especialmente quando estamos doentes ou em situações extremamente difíceis ou dolorosas, precisamos fazer um grande esforço para sermos capazes de tolerar e transformar a situação em um caminho. Também nas situações nas quais estamos tendo um grande sucesso e as coisas estão quase indo bem demais, é especialmente importante termos muito cuidado para não desenvolvermos orgulho.
(5) Proteger as duas (instruções) a qualquer custo. Essas instruções são (a) as instruções gerais da prática do dharma e, especificamente, (b) as práticas de vínculo estreito para o treinamento de nossas atitudes.
(6) Treinar nas três coisas difíceis refere-se a (a) mantermos em mente as forças opositoras necessárias para enfrentarmos as atitudes perturbadoras (b) estarmos mentalmente presentes para conseguirmos aplicar esses oponentes, e (c) permanecermos mentalmente presentes para sermos capazes de manter os oponentes. Portanto, assim que surgirem as atitudes e emoções perturbadoras, precisamos nos lembrar quais são as forças opositoras para revertê-las. No entanto, não basta lembrar dos oponentes, precisamos aplicá-los imediatamente e permanecer mentalmente presentes para conseguirmos cortar a continuidade da atitude perturbadora.
Como foi explicado nas palavras de Dromtonpa, outra forma de treinarmos quando algo difícil está ocorrendo é sentindo que isso não é nada e que temos muita sorte – algo de muito pior poderia ter acontecido. Quando alguém nos ofende, sentimos que isso não é nada – quer dizer que já exaurimos o carma de termos toda uma multidão que nos ofende. Quando estamos doentes, temos sorte, pois poderíamos ter sofrido um acidente ou um desastre muito mais grave. O mesmo se aplica se formos para a prisão ou punidos de alguma forma. Isso não é nada comparado com situações muito piores, como a queda em um renascimento pior.
Não precisamos pensar nessas coisas como algo que fazemos só durante as sessões de meditação quando tudo está indo bem e não há nada que nos irrita. Precisamos aplicar todos esses treinamentos de nossas atitudes às situações mais difíceis. Quando nos esforçamos para dedicar nosso coração aos outros, a todos os seres, desenvolvendo um ideal de bodhichitta, fazendo votos de bodhisattva, e assim por diante, então não importa o que nós fizermos, quer estejamos comendo, dormindo ou bebendo, a força positiva de sempre protegermos o nosso ideal de bodhichitta aumentará. Treinando dessa forma, transformamos tudo em causas para progredirmos e podermos ajudar ainda mais todos os seres.
Um dos Geshes da Kadam, Geshe Chekawa, ficou muito infeliz quando estava prestes a morrer e pediu a seus discípulos que fizessem oferendas especiais. Os discípulos ficaram curiosos e lhe perguntaram: “Você praticou tão bem durante a sua vida inteira, por que está triste agora, justamente na hora da sua morte?” Ele respondeu: “Estou triste porque durante toda minha vida eu fiz muitas orações para renascer em um dos reinos sem alegria, para poder tomar para mim os sofrimentos de todos os seres, e agora na hora da morte reconheço os sinais de que, ao invés de renascer em um inferno, como foi meu desejo e pedi em minhas orações, renascerei em um reino divino e puro. Por isso estou tão triste na hora de minha morte.”
(7) Tomar as três causas maiores. Elas são: (a) encontrar um professor espiritual, (b)praticar seus ensinamentos, e (c)obter as circunstâncias favoráveis, satisfazendo-nos com morada, comida e sustento modestos, para podermos devotar todas as nossas energias à prática. Definimos desejos e orações para conseguirmos obter essas três causas maiores que possibilitarão o sucesso de nossa prática espiritual.
[Nota: Em algumas outras versões do texto de Namkapel, as três maiores causas são colocadas de forma ligeiramente diferente como sendo: ter um corpo humano precioso como condição interna para uma prática bem-sucedida do dharma, ter um mentor espiritual qualificado como a condição externa, e ter acesso a comida e roupa com moderação.]
(8) Meditar sobre as três coisas inabaláveis. Elas são: (a) ter uma crença confiante e inabalável em nosso mentor espiritual e apreciar a sua gentileza, (b)ter uma disposição inabalável para praticar aquilo que ele aconselha, e (c)ter um comprometimento inabalável com todos os diferentes tipos de treinamento. Nossa confiança e apreciação não devem estar somente em nossas palavras; elas precisam ser fortes e sinceras, e vir do coração. Temos que ter uma grande admiração e confiança no mentor espiritual que nos ensina, no treinamento real de nossas atitudes e nos pontos reais que nos possibilitam a realização de tudo isso.
[Em algumas outras versões do texto de Namkapel, as três coisas inabaláveis são explicadas como (a) crença confiante e inabalável em nosso mentor espiritual e apreciação por sua gentileza, (b) cuidado inabalável para que a nossa atenção em relação ao treinamento da ética não vacile, e (c) cuidado inabalável para não permitirmos que a alegria em treinar as nossas atitudes enfraqueça.]
(9) Possuir os três inseparáveis. Nosso (a) corpo, (b) fala, e (c) mente serão inseparáveis das práticas. Precisamos ser sinceros em todos os níveis no que se refere à forma como agimos, falamos e pensamos. Precisamos fazer tudo de acordo com o treinamento da mente.
(10) Agir de forma pura, sem parcialidade em relação aos objetos. É importante treinar com todos os seres limitados, não só com nossos amigos, e evitar os venenos da atração, da repulsa e da indiferença.
(11) Estimar o treinamento amplo e profundo em relação a todas as coisas. Precisamos nos treinar de forma ampla e profunda tanto em relação aos seres vivos quanto aos objetos inanimados. Em outras palavras, a nossa prática de treinar nossas atitudes precisa ser abrangente, englobar a todas as coisas e ser totalmente sincera. Por exemplo, quando temos problemas, podemos pensar: “Se eu não tivesse esses problemas, não desenvolveria a renúncia; e se eu não tivesse a determinação de ser livre de meus problemas, eu não desenvolveria a compaixão necessária para livrar os outros dos problemas deles. Eu não conseguiria desenvolver plenamente um ideal de bodhichitta.” Podemos transformar qualquer situação difícil quando apreciamos o seu valor.”
(12) Sempre meditar sobre aqueles seres selecionados. Por exemplo, com um pequeno inseto, ao invés de pensarmos o quanto somos superiores quando nos comparamos a esse besourinho no chão, podemos pensar: “Que infelicidade a desse ser, por ter nascido assim, sem a habilidade de beneficiar e melhorar a si mesmo.” Da mesma forma, a cada vez que tivermos inveja dos outros, podemos pensar em como, fazendo o devido esforço, seremos igualmente capazes de realizar tudo o que essa pessoa conseguiu realizar. Portanto, não precisamos ficar sob a influência de atitudes perturbadoras. Quando adoecemos e não queremos vivenciar todo o desconforto que acompanha a doença, tomamos imediatamente algum tipo de remédio. Da mesma forma, quando as atitudes perturbadoras surgem em nossa mente precisamos aplicar os oponentes – exatamente como quando tomamos remédios para combater as doenças.
[Nota: Em explicações mais completas, os selecionados é uma referência aos cinco tipos de pessoas selecionadas e apontadas como precisando de cuidados especiais, das quais Sua Santidade falou em sua apresentação das práticas de vínculo estreito para treinarmos nossas atitudes.]
(13) Não depender de outras condições. Pode ser que, durante o treinamento das nossas atitudes, adoeçamos ou várias outras interferências ocorram. Não devemos permitir que isso nos desmotive nem pensar algo como: “Tenho tentado ser uma boa pessoa e treinar minhas atitudes, mas só tenho encontrado dificuldades. Como seria bom se as condições para praticar fossem melhores!” Ao invés disso, precisamos continuar a aplicar todos os pontos e métodos explicados nos ensinamentos, independentes das condições que surgirem. Precisamos entender que as circunstâncias negativas são situações do passado que estão amadurecendo agora, para não ficarmos desmotivados. Quando surgem muitas circunstâncias e situações difíceis, precisamos nos alegrar porque estão surgindo e podemos finalmente nos livrar delas.
(14) Praticar principalmente agora. Temos um corpo e uma vida humana preciosa, com todas as suas oportunidades preciosas, liberdade e momentos de tranquilidade para treinarmos nossas atitudes e nos tornamos uma pessoa melhor. Se não fizermos isso agora, quando o faremos? Quando teremos uma oportunidade melhor do que essa?
(15) Não ter entendimentos invertidos. Há seis tipos de entendimentos invertidos:
- Compaixão invertida – por praticantes pobres, mas não por pessoas ricas e mundanas. Isso está invertido. É como um exemplo da biografia de Milarepa, que estava deitado na calçada como um mendigo quando três irmãs ricas passaram e sentiram pena dele. Milarepa disse: “Não tenha pena de mim. Quem tem compaixão por vocês sou eu, pois estão em um estado muito pior do que o meu.”
- Intenção invertida – ao invés de termos a intenção de praticar medidas preventivas do dharma para alcançarmos a iluminação e beneficiarmos todos os seres limitados, temos a forte intenção de prosseguir com nossas ocupações mundanas.
- Interesse invertido – ao invés de fazermos com que os outros fiquem interessados em questões espirituais, fazemos com que se interessem por ocupações mundanas. [Nota: Em outras versões do texto de Namkapel, o interesse invertido é explicado como o envolvimento com os aspectos e questões gerais da Joia Tríplice e, mais especificamente, da comunidade da Sangha, com a intenção de conquistar amizades, ao invés do desejo genuíno de que todos alcancem o estado búdico.]
- Alegria invertida – ao invés de nos alegrarmos por todas as qualidades positivas do Buda, Dharma e Sangha, nos alegramos quando pessoas de quem não gostamos passam por dificuldades. Ou quando o nosso inimigo sofre uma queda, dizemos: “Que bom, ele mereceu!”
- Paciência invertida – ao invés de termos paciência para questões espirituais, temos paciência para atividades negativas. Estamos dispostos a enfrentar dificuldades para progredirmos em alguma incumbência negativa, mas não temos paciência para lidar com as dificuldades que surgem no treinamento espiritual. [Em outras versões do texto de Namkapel, o paciência invertido é explicado mais especificamente como paciência com nossas atitudes e emoções perturbadoras, ao invés de com aqueles que têm raiva de nós.]
- Gosto invertido – ao invés de desejarmos conhecer os ensinamentos do dharma, queremos experimentar todos os tipos de coisas mundanas cuja base é perecível, e não duradoura.
(16) Não praticar intermitentemente. Praticar um dia, desistir no próximo, depois voltar a praticar, não é algo que devemos evitar só no treinamento das atitudes. Até mesmo nas questões mundanas, não conquistaremos nada se nossos esforços forem intermitentes, ao invés de contínuos.
(17) Treinar de forma resoluta. Devemos praticar focando nos pontos essenciais do treinamento das nossas atitudes e não ficar saindo pela tangente ou praticar sem entusiasmo. Temos que ter a determinação de trabalhar com o intuito de melhorar nossas atitudes. No treinamento das atitudes, não devemos hesitar em nos aplicarmos totalmente.
(18) Libertar-se através da investigação e de um exame minucioso. Nós nos libertamos aplicando os oponentes principais nas nossas atitudes perturbadoras à medida que elas surgem. Quando estamos muito apegados a algo ou alguém, o oponente é vermos que o objeto de nosso apego é feio e desprovido de qualidades positivas. Quando sentimos raiva, aplicamos amor; quando somos ingênuos, pensamos na originação dependente. Quando temos orgulho – digamos que somos grandes eruditos e aqueles próximos a nós não conseguem entender nada – ao invés de pensarmos em nossas qualidades maravilhosas, podemos pensar: “Essas pessoas não puderam mobilizar todos os seus esforços nem ter as circunstâncias adequadas para conseguirem usar seu potencial pleno!”. Dessa forma, ao invés de estarmos sujeitos à nossas próprias atitudes perturbadoras, nós nos libertamos através da compaixão pelos outros.
(19) Não meditar com uma sensação de perda. Significa que quando temos dificuldades ou outras pessoas querem algo de nós, não precisamos ter uma sensação de perda.
(20) Não se restringir com hipersensibilidade. Não precisamos ser hipersensíveis quando as coisas não dão certo nem sentir raiva diante de qualquer pequena provocação.
(21) Não agir só por períodos curtos. Significa que é um erro limitarmos a amplitude de nosso trabalho com as atitudes ou nosso desejo de ajudar os outros. Ao invés de investirmos um grande esforço no início e não sermos capazes de sustentá-lo, precisamos manter um esforço constante.
(22) Não desejar (nenhum) agradecimento. Quer dizer que não devemos esperar nada em troca da nossa ajuda. Quando ajudamos ou fazemos caridade e esperamos receber “méritos” em troca disso, é como se estivéssemos fazendo uma operação comercial. Não devemos realizar ações positivas só para receber algo material ou “méritos” em troca do que estamos fazendo.
Gerando a Bodhichitta Mais Profunda: Recipientes Adequados para Receberem Ensinamentos sobre a Vacuidade
Completamos o ensinamento sobre a bodhichitta convencional, expandindo nosso coração para a iluminação e para os outros no que se refere à verdade convencional. O próximo ponto refere-se a expandir nosso coração para a sua verdade mais profunda – em outras palavras, gerar a bodhichitta mais profunda. A bodhichitta mais profunda é citada em um verso curto, sendo suplementada com os capítulos sobre vipassana, um estado mental excepcionalmente perceptivo, do texto de Tsongkhapa: “Grandes e Pequenas Apresentações dos Estágios Graduais do Caminho”. Ela deve ser compreendida com base nesse texto.
O ensinamento aqui divide-se em duas partes: quem são os recipientes apropriados para receberem os ensinamentos sobre a vacuidade; e quais são os ensinamentos sobre esse tema. Se não ensinarmos aos recipientes apropriados, haverá muitos mal-entendidos. Por exemplo, há algumas pessoas que pensam que o tema da vacuidade no budismo é só uma dissertação sobre o nada. Acham que se trata de uma espécie de niilismo e que o budismo não afirma nada. Isso é perigoso, pois faz com que cheguem à conclusão de que nada importa – não importa o que fazemos pois tudo é nada. Esse tipo de pessoa é um recipiente inadequado. Ela não está preparada para compreender a vacuidade.
Um entendimento adequado sobre a vacuidade nos leva a agir de uma forma positiva. Uma pessoa capaz de entender isso é um recipiente adequado. Ao invés de usar os ensinamentos sobre a vacuidade como uma desculpa para agir de qualquer maneira, por não entender do que os ensinamentos tratam e pensar que nada importa, ela entende que a vacuidade é ausência de maneiras impossíveis de existir. Ela consegue ver a realidade e entender como as coisas de fato existem, em termos de causa e efeito, e implementa esse conhecimento em seu comportamento. Ela age de forma confiante, pois está agindo de acordo com as leis das ações que geram resultados positivos.
Quando entendemos que os ensinamentos sobre a vacuidade explicam que as formas impossíveis de existir não se referem a nada real, e, portanto, tudo funciona em termos da originação dependente, esse é o entendimento correto. Uma pessoa capaz de compreender isso é um recipiente adequado.
O Verso que Explica o Treinamento na Bodhichitta Mais Profunda
Para algumas pessoas mais receptivas, é bomtreinar primeiro na bodhichitta mais profunda. Quando elas entendem a realidade, isso aumenta sua capacidade de trabalhar para alcançar a iluminação e ajudar todos os outros. No entanto, para a maioria das pessoas, ocorre o oposto disso. Elas treinam primeiro na bodhichitta convencional e depois, quando alcançam estabilidade nisso, treinam na bodhichitta mais profunda, que diz respeito ao que é mais obscuro e oculto, ou seja, à vacuidade.
[Nota: Com base na forma como treina a maioria das pessoas, Namkapel explica o verso: “Pondere que todos os fenômenos são como sonhos; avalie a natureza básica da consciência que não tem originação; o próprio oponente se libera em seu próprio lugar; a natureza essencial do caminho é de se estabelecer em um estado básico que tudo engloba; entre as sessões, aja como uma pessoa ilusória”, ao fim dos outros sete pontos para o treinamento das atitudes, e o precede com a frase: “O que está oculto será revelado depois da conquista da estabilidade (nisso).”
Pabongka coloca o verso, precedido pela frase: “O que está oculto será revelado depois da conquista da estabilidade (nisso).”, diretamente depois do verso do desenvolvimento da bodhichitta convencional, que aparece no texto raiz, no que se refere aos sete pontos para o treinamento das atitudes, no treinamento nas duas bodhichittas. Na edição de Togme Zangpo, esse verso precede o outro, usado para o desenvolvimento da bodhichitta convencional; enquanto a frase: “O que está oculto será revelado depois da conquista da estabilidade (nisso)” simplesmente não aparece.]
Vamos examinar brevemente o verso de quatro linhas no texto raiz do “Treinamento Mental em Sete Pontos”.
Pondere que todos os fenômenos são como um sonho. Todas as coisas são como um sonho, o que significa que não têm uma existência verdadeiramente estabelecida – em outras palavras, uma existência estabelecida como verdadeira ou uma “existência verdadeira” – assim como nos sonhos, nos quais é bastante óbvio que as coisas não existem de verdade.
Avalie a natureza básica da consciência que não tem originação. Sugere que analisemos tanto a consciência quanto o objeto da consciência, e avaliemos que nenhum dos dois têm uma existência verdadeiramente estabelecida. Tem a ver com a abordagem da Yogachara Svatantrika Madhyamaka, que fala da refutação dos fenômenos externos. Ela afirma que os fenômenos externos não existem independentes da mente. Essa parece ser a colocação aqui, referindo-se à existência não verdadeiramente estabelecida da consciência como também aos objetos dessa consciência.
O próprio oponente se libera em seu próprio lugar. Refere-se ao fato de que a própria vacuidade é desprovida de uma existência verdadeiramente estabelecida. Esse ponto pode ser encontrado na lista dos vários tipos de vacuidade – as dezesseis vacuidades, e assim por diante, que incluem “a própria vacuidade da vacuidade”. Além disso, a consciência reflexiva (rang-rig), que se refere aqui à consciência da vacuidade, é igualmente desprovida de uma existência verdadeiramente estabelecida.
A natureza essencial dos caminhos mentais é de se estabelecer dentro de um básico que tudo engloba. [Nota: Essa frase também pode ser traduzida e compreendida como: Estabeleça a natureza essencial dos caminhos mentais em um estado básico que tudo engloba” ou como “Estabeleça em um estado básico que tudo engloba, a natureza essencial dos caminhos mentais”.] Tendo cortado os dois extremos do niilismo e eternalismo (a afirmação de uma existência verdadeiramente estabelecida), todas as coisas que encontramos têm que ser colocadas no contexto da mente que entende a vacuidade. Em outras palavras, aplicamos essa mente que entende a vacuidade a cada encontro, com todos os objetos em todas as situações.
Há duas maneiras de explicar o termo base que tudo engloba (kun-gzhi, ect. alaya; fundação de tudo) nessa frase. Nas duas explicações, os “caminhos mentais” referem-se aos caminhos mentais de um arya, um ser altamente realizado, e a “base que tudo engloba” refere-se a um fenômeno não especificado – que o Buda não especificou como sendo construtivo ou destrutivo.
- Uma forma de explicar essa frase é que a mente de um arya se estabelece nesse estado no qual ela é completamente não-artificial, referindo-se ao estado no qual a mente não está maculada por nenhuma das máculas fugazes. Portanto, uma possível explicação para o “estado básico que tudo engloba” como sendo um fenômeno não especificado é que ele se refere ao estado incontestável da mente imaculada.
- Outra explicação seria que “a fundação (base) de tudo” se refere à vacuidade. Portanto, não precisamos só estabelecer a nossa mente, como também todas as nossas realizações no contexto do entendimento da vacuidade.
Na tradição dos comentários tibetanos, há várias maneiras de falar sobre a verdade mais profunda de tudo. Uma delas é tomar um objeto – sendo ele a vacuidade, a natureza vazia de todos os fenômenos. Outra abordagem é o ponto de vista tântrico, no qual a verdade mais profunda se refere à mente que toma a vacuidade como um objeto. Isso se refere ao nível mais sutil de consciência que entende a vacuidade como ela foi explicada nos termos do tantra. Portanto, há uma verdade mais profunda do ponto de vista do objeto, da vacuidade, ou do ponto de vista da mente que toma a vacuidade como seu objeto.
Na tradição Sakya, por exemplo, achamos o ensinamento da “Inseparabilidade do samsara e do nirvana”. Isso se refere à mente primordial que se origina simultaneamente, e como essa mente primordial é a fundação ou base para o samsara e o nirvana, já que as aparências de todos os fenômenos são um jogo da mente. Da mesma forma, a tradição Nyingma explica como todas as coisas são puras quando vistas de cima e como a sua natureza funcional é de estabelecer espontaneamente todas as aparências. “Estabelecer espontaneamente” refere-se a todas as aparências sendo estabelecidas pela mente primordial de clara luz. Da mesma forma, a tradição Kagyu do Mahamudra fala sobre tudo tendo o mesmo sabor: “Na esfera da originação simultânea da clara luz, tudo tem um único sabor”. Esse é um dos pontos principais dos ensinamentos do Mahamudra na Kagyu.
Tanto faz se é no sistema Nyingma do período das antigas traduções, que fala da mente primordial que estabelece espontaneamente todas as aparências, e é totalmente pura, ou do período das novas traduções, da tradição Sakya, da “vacuidade e da felicidade inseparáveis”, ou da tradição Kagyu, do Mahamudra – todas falam da mesma verdade mais profunda, a natureza real de tudo, a partir do ponto de vista da consciência que toma a vacuidade como seu objeto. Na tradição Gelug de Tsongkhapa, e de outros, há uma apresentação semelhante, como nos comentários de Tsongkhapa sobre o Tantra de Guhyasamaja, nos quais ele fala sobre o estado de grande consciência bem-aventurada, que se origina simultaneamente, e toma a vacuidade como seu objeto. Isso corresponde diretamente à discussão que há nas outras três tradições tibetanas. Quando falamos sobre a natureza real de tudo, ou seja, da vacuidade, a partir do ponto de vista desse verso, estamos nos referindo a tomar o objeto, à vacuidade, e a como remover as máculas da consciência que pode vir a entender a vacuidade.
O comentário em relação ao texto que estou seguindo se refere às versões mais longas e menores das seções sobre o vipassana, um estado mental excepcionalmente perceptivo, dos textos de Tsongkhapa sobre o caminho gradual em etapas, que seguem a tradição de Nagarjuna e Aryadeva. Isso implica não tomar como ponto principal as experiências meditativas das práticas tântricas dos lamas tibetanos; mas tomar os textos escriturais e as discussões lógicas que vêm dos grandes pandits indianos como sendo a fonte principal. A característica principal da tradição de Tsongkhapa é de voltar às fontes indianas e derivar delas as interpretações. Ainda assim, quando examinamos com atenção vemos que, quando buscamos nosso entendimento nas fontes indianas e suas discussões lógicas ou nas experiências reais dos praticantes de meditação, as duas possibilidades acabam por nos levar ao mesmo objetivo.
[Nota: No texto de Namkapel, a frase: “Pondere que todos os fenômenos são como um sonho”, é explicada como referindo-se à vacuidade de todos os objetos dos quais a mente se apropria através da cognição. “Avalie a natureza básica da consciência que não tem originação” refere-se à vacuidade de todas as mentes que se apropriam cognitivamente de objetos. “O próprio oponente se libera em seu próprio lugar” refere-se à vacuidade da pessoa que medita sobre vacuidade. “A natureza essencial dos caminhos mentais é de se estabelecer em estado básico que tudo engloba” refere-se a como devemos meditar durante a absorção total na vacuidade. A última frase “Entre as sessões, aja como uma pessoa ilusória” refere-se a como devemos treinar durante períodos subsequentes de realização que se seguem à total absorção na vacuidade. O comentário que Sua Santidade está explicando segue Namkapel, que expande essa última frase depois da discussão completa sobre vacuidade.]
Reconhecendo a Inconsciência que É a Raiz do Samsara
A apresentação da bodhichitta mais profunda nesse texto está dividida em três partes:
- reconhecendo a inconsciência que é a raiz do samsara,
- a necessidade de verificar a falta de uma identidade verdadeiramente estabelecida ou uma “alma” como forma de reverter essa inconsciência,
- os métodos para se confirmar isso.
A inconsciência ou ignorância é o oposto exato da inconsciência ou do conhecimento correto de algo. Aqui estamos falando em termos de sermos conscientes da natureza real da realidade ou inconscientes no sentido de sermos conscientes de uma forma distorcida. Por sermos inconscientes em relação à natureza verdadeira da realidade, acreditamos que as coisas existem de formas que não estão de acordo com a realidade. Não compreendemos como as coisas de fato existem. É o que queremos dizer quando nos referimos à inconsciência ou ignorância.
O resultado de não compreendermos a realidade e termos um entendimento errôneo é a crença de que as coisas têm uma identidade verdadeiramente estabelecida, ou uma “alma”, o que significa que acreditamos que as coisas têm uma existência estabelecida e existem por si mesmas. Quando falamos da falta de uma identidade verdadeiramente estabelecida, estamos falando dentro do contexto de que todos desejam a felicidade e ninguém quer ser infeliz. Estamos examinando quem de fato é feliz ou infeliz, e o que a pessoa realmente deseja obter e o que deseja eliminar. Em outras palavras, estamos analisando a pessoa que vivencia as coisas e aquilo que ela vivencia. Descobrimos que tanto a pessoa quanto aquilo que ela vivencia têm uma identidade ou existência, mas não uma existência verdadeiramente estabelecida, pois não existe tal coisa, não existe uma identidade verdadeiramente estabelecida, nem da pessoa nem da experiência.
Quando queremos eliminar a mente que interpreta a realidade de forma errônea e crê que as coisas existem de uma forma distorcida e impossível, precisamos distinguir e reconhecer o verdadeiro objeto por detrás do conhecimento distorcido da mente. É esse objeto que precisa ser refutado para podermos eliminar a mente que crê que as coisas existem de forma verdadeiramente estabelecida. O objeto por detrás dessa crença errônea seria que as coisas de fato existem de uma forma verdadeiramente estabelecida. Em outras palavras, o objeto a ser refutado é a existência auto-estabelecida..
No que se refere a essa discussão, precisamos entender as sutilezas envolvidas em evitar os extremos de refutar de mais, ou de menos, o objeto a ser refutado.
- Refutar excessivamente, é como dizer que o objeto a ser refutado é pervasivo demais. Isso significa que nossa refutação está negando não apenas a existência verdadeiramente estabelecida, mas todas as formas de existência. Neste caso, o objeto a ser refutado seria pervasivo demais – ele permearia ou englobaria coisas demais.
- Quando refutamos de menos, ou seja, quando consideramos o objeto a ser refutado pervasivo de menos, nós estamos refutando muito pouco. Nossa refutação não está refutando a existência verdadeiramente estabelecida pelo poder de algo encontrável por parte do objeto. Ela só está refutando alguns níveis, mas não todos os níveis, de formas impossíveis de existir.
Esses são os perigos de refutarmos, de mais ou de menos, o objeto a ser refutado. A insistência de Tsongkhapa em reconhecer esses perigos denota a importância de entender e identificar corretamente o objeto a ser refutado.
Além disso, é necessário unirmos o método com a sabedoria – em outras palavras, o método e a consciência discriminativa – quando estamos tentando entender a realidade, de forma que, em todos os níveis, estejamos lidando com esses dois aspectos. Por exemplo, quando presumimos que, como resultado de nosso entendimento sobre a vacuidade, tudo é totalmente não-existente e absurdo, tudo passa a ser (inexistente) como “chifres de coelhos”, e não temos nenhum entendimento verdadeiro do método, no que se refere à causa e ao efeito. Não conseguimos entender como a felicidade vem a partir de ações construtivas e a infelicidade vem a partir de ações destrutivas. Por causa de nossa interpretação errônea da realidade, acabamos não praticando ações que beneficiam os outros seres.
Portanto, é necessário ter a plena compreensão do relacionamento harmônico entre a verdade mais profunda e a verdade convencional. Isso significa que nosso entendimento da natureza da realidade precisa reforçar nosso entendimento da originação dependente. Um exemplo desta última seria a compreensão de que com base em uma causa e uma razão específica obtemos um resultado específico. O entendimento correto da realidade reforçará então nossas ações construtivas, o que por sua vez nos farão acumular força positiva, que trará felicidade, a nós e a todos os outros e, em última instância, nos fará alcançar a iluminação como resultado desse processo.
Se conseguirmos constatar corretamente as duas verdades sobre todas as coisas, e como elas se encaixam, conseguiremos acumular simultaneamente os dois depósitos de bênçãos, ou redes de força positiva e consciência profunda, e dessa forma conseguiremos alcançar simultaneamente dharmakaya e rupakaya – em outras palavras, a mente e o corpo de um buda. Assim sendo, em todos os níveis, do início ao fim, é necessário ter as duas verdades juntas. Quando não temos um entendimento correto, ele é incompleto – e é um grande erro. O método conectado com a verdade convencional, e a sabedoria, ou consciência discriminativa, conectada com a verdade mais profunda: precisamos das duas coisas. Não podemos conquistar só a mente de um buda sem conquistarmos também o corpo de um buda.
O texto também nos diz para não restringirmos o entendimento da falta de uma identidade impossível ou “alma” só às pessoas. Precisamos aplicá-lo também aos fenômenos que as pessoas vivenciam. Por exemplo, a tradição Vaibhashika de shravakas só refuta uma identidade impossível em pessoas, e mesmo assim, não aborda o nível mais profundo do que é impossível. Ela só refuta que uma pessoa possa existir com uma identidade estática, monolítica, que existe independentemente, ou uma “alma”. Não podemos limitar a refutação de modos impossíveis de existir a isso. Tampouco podemos nos limitar ao nível da Sautrantika, que, no que se refere às pessoas, refuta também que elas possam ser cognoscíveis de forma autossuficiente.
Tampouco podemos restringir a refutação dos modos impossíveis de existência ao nível da Chittamatra, que, no que se refere às pessoas, também refuta que elas existam como identidades cognoscíveis de forma autossuficiente. No entanto, diferente das escolas Vaibhashika and Sautrantika, da Hinayana, a Chittamatra vai além e afirma também a falta de uma identidade impossível ou “alma” em todos os fenômenos. Mas a forma da Chittamatra afirmar essa falta é dizendo simplesmente que tanto a consciência quanto os objetos dessa consciência são desprovidos de uma existência estabelecida a partir de fontes natais diferentes. Todas essas escolas tomam esse modo de existência como um modo impossível dos fenômenos existirem e refutam isso. Todas essas formas de refutar, são formas de refutar de menos.
A escola Chittamatra tem duas formas de apresentar os fenômenos definitivos. Ela afirma que algo está estabelecido como fenômeno definitivo se for encontrado por uma cognição válida que esteja examinando (analisando) o que é definitivo ou se resistir à força da análise de uma cognição válida que examina o que é definitivo. Portanto, a Chittamatra afirma que se algo não puder ser encontrado, quando sujeito à análise definitiva, não existe de modo algum. É o exato oposto da visão Prasangika Madhyamaka, que afirma que nada pode ser encontrado no objeto quando ele é analisado por uma cognição válida que examina a verdade mais profunda ou a verdade convencional. A visão da Chittamatra, portanto, é de que as coisas têm uma existência auto-estabelecida, estabelecendo-se sozinhas como aquilo que pode ser encontrado em uma análise definitiva. Essa é a visão “mente apenas” da Chittamatra.
Ao refutar o que não pode ser encontrado quando examinamos o que é definitivo, a escola Chittamatra está refutando um objeto incorreto de refutação. Ela diz que as coisas que não podem ser encontradas numa análise definitiva não existem de modo algum. Esse objeto de refutação está incorreto. E essa parece ser uma afirmação comum das escolas Svatantrika para baixo – isto é, que ao examinarmos o que é definitivo, poderíamos encontrar algo nos objetos que estivesse estabelecendo a existência deles. Se fôssemos afirmar e crer nesses princípios invertidos, estaríamos afirmando coisas que existem de uma maneira totalmente imaginária e impossível. Nos apegaríamos a algo que é totalmente não-existente – algo que pode ser encontrado nos objetos quando fazemos uma análise definitiva – e isso seria um grande estado de inconsciência.
A nossa tradição, a Prasangika Madhyamaka, diz que a causa real do samsara é a inconsciência que se origina automaticamente. Se acreditássemos somente na definição de inconsciência das outras escolas budistas, refutaríamos apenas a inconsciência baseada em doutrinas – a inconsciência que se apega à ideia de que as coisas existem de uma forma que é baseada em uma fundação doutrinal incorreta. No entanto, a raiz do samsara não é a inconsciência baseada em doutrinas, mas um tipo de inconsciência que se origina natural e automaticamente. Este é o nível de inconsciência com o qual todos os seres, desde os animais até os reinos mais elevados, se apegam à existência dos objetos, estabelecida por algo que pode ser encontrado nos próprios objetos. Temos que refutar, como sendo a raiz do samsara, uma ocorrência que se origina naturalmente e que naturalmente acompanha a consciência de todos os seres, e não só as ideias baseadas em doutrinas que nos ensinaram e nas quais acreditamos, e que muitas pessoas sequer ouviram falar.
Isso faz parte da discussão do ponto de vista da Prasangika, de que a existência de tudo que é cognoscível de forma válida só pode ser estabelecida através de rótulos mentais – aquilo a que os rótulos mentais se referem. Se a existência de um objeto pudesse ser estabelecida a partir do objeto ao qual o rótulo se refere ou a partir da base na qual o objeto é rotulado, então ele poderia ser encontrado. Se ele pudesse ser encontrado, isso provaria sua existência auto-estabelecida (existência inerente), e é isso que a Prasangika está refutando aqui. Essa é a intenção de Nagarjuna e Aryadeva.
Nagarjuna disse em um texto sobre como a vacuidade precisa ser entendida em termos da originação dependente, e a originação dependente precisa ser entendida em termos da vacuidade. Se as coisas não fossem desprovidas de formas impossíveis de existir, o mecanismo de causa e efeito não poderia funcionar. Causa e efeito só funcionam porque todas as coisas são desprovidas de formas impossíveis de existir. Isso significa que a existência auto-estabelecida, ou a existência estabelecida a partir do própria objeto, podendo ser encontrada através da análise da verdade mais profunda das coisas – como foi dito acima quando nos referimos a Chittamatra – não é válida. Nagarjuna disse que nada é mais maravilhoso ou incrível do que entender a vacuidade em termos de originação dependente.
Como a inconsciência que se origina automaticamente se apega à existência das coisas? Ela imagina que a existência não é estabelecida só porque as coisas são os objetos de referência dos rótulos mentais. Ela supõe que sua existência é realmente estabelecida a partir delas mesmas, independente dos rótulos mentais. Essa inconsciência inclui um entendimento errôneo da falta de uma identidade ou de uma “alma” verdadeiramente estabelecida, tanto das pessoas quanto de todos os fenômenos. Não há nada que tenha sua existência estabelecida pelo poder de algo que possa ser encontrado no objeto em si, independentemente de conceitos, nomes, rótulos, e assim por diante. A total ausência dessa maneira impossível de estabelecer a existência de algo que possa ser cognoscível de forma válida é o que é chamado de vacuidade do objeto.
A forma como é apresentada aqui se assemelha bastante à forma como ela aparece na versão mais curta do lam-rim de Tsongkhapa e seu comentários sobre o texto de Nagarjuna Versos Raiz sobre o Caminho do Meio, Chamados de “Consciência Discriminativa” (dBu-ma rtsa-ba shes-rab, sct. Prajna-nama-mulamadhyamaka-karika). Chandrakirti também nos diz que se houvesse um objeto ao qual nenhum conceito pudesse se referir, esse objeto não poderia existir; por outro lado, quando há um conceito que se refere a um objeto, a existência desse objeto pode ser estabelecida em termos dos conceitos que se referem a ele. Portanto, as coisas só podem se estabelecer atreladas aos conceitos que se referem a elas; elas não podem ser estabelecidas por nenhum aspecto próprio, pois são isentas de qualquer coisa encontrável que possa estabelecer sua existência.
Podemos perguntar: as coisas só existem como são em termos dos conceitos individuais que uso para descrevê-las? Não, não é assim. Essa é uma forma solipsista de olhar para as coisas. Geralmente, se uma coisa for aceita pela sociedade como sendo branca, insistir que é amarela não fará com que seja amarela. Portanto, as coisas não existem de forma solipsista, de acordo apenas com a forma como as rotulamos. Se fosse assim, isso se aplicaria também às ações construtivas e destrutivas. Se o resultado de uma ação específica fosse exatamente como gostaríamos que fosse, pelo poder de nossa forma preconceituosa de pensar, tudo seria bastante caótico. Certamente, não é assim. Ao invés disso, as coisas são estabelecidas por convenções gerais, pela forma válida como todos percebem as coisas.
Agora examinaremos um trecho do texto Esclarecendo Totalmente as Intenções (dGong-pa rab-gsal), o comentário de Tsongkhapa ao texto de Chandrakirti Suplemento ao/s (“Versos Raiz de Nagarjuna sobre o) Caminho do Meio” (dBu-ma-la ‘jug-pa, sct. Madhyamakavatara). Esse trecho se refere ao exemplo de uma cobra – na verdade, um rolo de corda rotulado como uma “cobra”. Não há nenhuma base para que a corda seja rotulada como cobra. Essa forma equivocada de rotular é como achar que os agregados são um “eu” verdadeiramente existente. Não vamos confundir isso de forma a acharmos que nos referir a um vaso e a uma pilastra como sendo um “vaso” e uma “pilastra” seria incorreto.
Na verdade, há três formas de perceber as coisas através da cognição: podemos perceber uma corda como sendo uma cobra, uma corda como sendo uma corda verdadeiramente existente ou uma corda como sendo convencionalmente uma corda. Tomar [cognitivamente] os agregados como sendo um “eu” verdadeiramente existente seria o mesmo que tomar uma corda enrolada como sendo uma cobra. Seria uma forma incorreta de perceber algo através da cognição. Esse tipo de inconsciência não é o mesmo que rotular uma corda como sendo “uma corda” ou um vaso como sendo “um vaso”.
Além disso, quando nos agarramos a uma existência estabelecida de uma maneira incorreta e impossível, isso pode ser tanto algo baseado em doutrinas incorretas quanto originar-se automaticamente. Aqui estamos nos referindo à causa principal do samsara como sendo o apego que se origina automaticamente à existência das coisas como sendo verdadeiramente estabelecida . Um apego, originado automaticamente, aos agregados como sendo estes um “eu” verdadeiramente existente, seria então como apegar-se à ideia de que uma corda enrolada é uma cobra. Esse apego não está baseado na crença em alguma doutrina filosófica que aprendemos, mas é simplesmente um apego que se origina automaticamente e ocorre com todos os seres. Esse apego que se origina automaticamente cria todos os tipos de emoções e atitudes perturbadoras, que fazem com que acumulemos vários potenciais negativos, que por sua vez fazem com que vários impulsos cármicos surjam, perpetuando a nossa imersão no samsara.
Existe o “eu” que deseja ser feliz e o “eu” que não deseja sofrer, e é claro que existe o “eu” que sente fome e deseja beber um chá ou comer uma fatia de pão. Esse tipo de “eu” é cognoscível de forma válida como sendo simplesmente o objeto ao qual a palavra “eu” se refere, rotulado de forma válida com base no processo de criar rótulos. Esse tipo de “eu” existe convencionalmente. Mas as coisas não aparentam ser dessa forma para nós. O “eu” que vivencia e utiliza coisas não parece ser simplesmente o objeto ao qual a palavra “eu” se refere. Ao invés disso, temos a impressão de que se trata de algo que estabelece sua própria existência, que a base para o rótulo “eu” estabelece sua própria existência. O apego a essa aparência enganosa como sendo algo que de fato existe cria em nós um senso muito forte de um “eu” que existe independentemente. Com base no apego a esse “eu”, também nos apegamos às coisas como se elas fossem inerentemente “minhas”. A partir desses conceitos de “meu” e “minha”, pensamos em termos de “meu inimigo”, “meu amigo”, e assim por diante. Por isso, temos apego e aversão; por conseguinte, cometemos todos os tipos de ações destrutivas que acumulam força cármica negativa. Portanto, essa forma de apegar-nos às coisas como tendo uma existência auto-estabelecida – não simplesmente como algo ao que as palavras se referem – é o que causa todos os nossos problemas.
Podemos começar a ver como a mente está interpolando, adicionando algo que não existe à realidade. É assim que pensamos que uma pessoa é muito atraente. A mente interpola na pessoa uma aparência maravilhosa – muito atraente ou sexualmente desejável. Essa interpolação projeta uma irrealidade completa na pessoa. Com base nisso, sentimos um grande apego e muita atração. Quando ocorre o oposto, nossa mente projeta em uma pessoa que consideramos nosso inimigo algo extremamente feio ou repulsivo; e reagimos à ideia que projetamos na pessoa. Com base nisso, nós nos tornamos hostis, cometemos todos os tipos de ações destrutivas em relação à pessoa, e criamos força cármica negativa. Como resultado do potencial negativo e dos impulsos destrutivos que se originam a partir disso, vagamos incontrolavelmente no samsara. Se conseguirmos compreender a ausência dessa forma impossível de existir que interpolamos e projetamos nos objetos, seremos livres de todos os problemas incontrolavelmente recorrentes do samsara.
Baseados nesse forte apego a um “eu” verdadeiramente existente, dividimos o mundo em “eu” e “todos os outros” e, com base nisso, acumulamos todos os tipos de atitudes negativas. Ainda assim, quando sentimos muita raiva por, digamos, alguém que se chama Tashi, podemos parar e analisar: “Quem é esse Tashi que me faz sentir tanta raiva? É o corpo dele? É a mente dele? Se for o corpo dele, é a cabeça, seus pés, ou seus braços, ou seu nariz?”. De repente, quando começamos a investigar dessa forma, nós nos surpreendemos. Temos que parar, recuar um passo, pois descobrimos que não estamos conseguindo achar o tal Tashi que nos faz sentir tanta raiva! Investigar o motivo de nossa raiva é um método muito eficiente. Portanto, se tivermos a presença mental de analisarmos esse tipo de situação dessa forma, pode ser uma grande ajuda.
A Necessidade de Constatarmos a Falta de uma Identidade Verdadeiramente Estabelecida ou de uma “Alma” como Caminho para Reverter a Inconsciência
O texto descreve como, quando estamos apegados ao “eu”, estamos totalmente imersos na busca egoísta da felicidade e continuamos no círculo vicioso do samsara. Os objetos de nosso apego e aversão parecem não existir simplesmente como algo ao que os nomes ou rótulos se referem. Por isso, reagimos com apego e aversão, por termos certeza de que as coisas têm uma existência auto-estabelecida, e existem da forma enganosa como parecem existir.
Temos que identificar esse apego à existência verdadeiramente estabelecida de forma muito clara, já que se trata da fonte de todos os nossos problemas. É imperativo livrar-nos dele, desenraizá-lo de nosso contínuo mental, e entender que o objeto implícito ao qual estamos apegados não existe em absoluto. A raiz do samsara é a inconsciência que se origina automaticamente, com a qual nos apegamos à ideia de que as coisas existem de uma forma completamente errônea. É essencial que nos livremos dela e comecemos a pensar de forma exatamente inversa.
Nós nos apegamos à ideia de que as coisas têm uma existência auto-estabelecida, mas quando analisamos o objeto implícito em nosso apego, esse apego à existência verdadeiramente estabelecida refere-se realmente a algo existente? Existe de fato um objeto verdadeiramente existente lá fora, com sua existência auto-estabelecida? Percebemos que esse apego à existência verdadeiramente estabelecida se refere a algo que não existe de maneira alguma; e assim acabamos por parar de pensar dessa forma, entendendo que não se trata de algo real. Em outras palavras, a forma como as coisas existem é que, em última análise, não podem ser encontradas.
Não há nenhuma sustentação por parte dos objetos quando nossa mente projeta e se dirige às coisas como se houvesse algo nelas estabelecendo sua própria existência. Imaginem se estivéssemos sentados aqui acreditando no equívoco aterrorizante de que um tigre feroz está na mata logo atrás de nós. Teríamos que investigar se o tigre está ou não está na mata. Só conseguiremos nos livrar desse pensamento obsessivo investigando se o tigre de fato está lá ou não está. Logo, descobriremos que ele não está na mata e, com base nessa descoberta, nos livraremos de nossa paranoia. Se não investigarmos, se só sentarmos e tentarmos esquecer o tigre, o pensamento aterrorizante voltará sorrateiramente à nossa consciência em algum momento. Portanto, quando nossa mente se dirige aos objetos como se eles tivessem uma existência auto-estabelecida, é muito importante investigar se há algo por parte do objeto que sustente isso.
Por outro lado, se pensarmos que todos os pensamentos conceituais são totalmente incorretos, que todos eles projetam algo impossível e, portanto, precisamos nos livrar de todos eles já que são todos errôneos, cairemos então na posição incorreta do monge chinês, Hoshang. O mais importante é reconhecermos qual é o objeto da refutação e, depois de refutá-lo, nos livrarmos dele – não se trata de nos livrarmos de todos os pensamentos. Ainda que seja verdade que precisamos de um entendimento e uma cognição não-conceitual da realidade; ainda assim, o entendimento não-conceitual tem que ter como base as verificações que fazemos através do processo conceitual de análise. Não estamos buscando por um estado geral e não-conceitual, o que seria muito vago. Primeiro, temos que olhar para o objeto que estamos analisando, e perceber através de um processo analítico que a forma como o entendemos até hoje se refere a algo que não existe em absoluto. Dessa forma, ganhamos um entendimento não-conceitual, tendo verificado primeiro através de um processo conceitual.
A Forma de Meditar sobre a Falta de uma Identidade Verdadeiramente Estabelecida ou uma “Alma”
Do ponto de vista da Prasangika, não há diferença no nível de sutileza da falta de uma identidade verdadeiramente estabelecida, ou “alma”, em pessoas ou em fenômenos. Não há diferenciações em relação a qual dos dois é mais ou menos profundo. No entanto, quando realmente constatamos a perspectiva correta da realidade, há uma ordem no que se refere a qual das duas constatamos primeiro? Sim, há uma ordem. Embora não haja diferença no que se refere à falta de identidade verdadeiramente estabelecida, há uma diferença no que se refere a qual é mais fácil e qual é mais difícil de entender. Primeiro, ganhamos um entendimento em relação à falta de uma identidade verdadeiramente estabelecida nas pessoas, pois se trata de uma base mais fácil para examinar a vacuidade; depois prosseguimos com o exame da falta de uma identidade verdadeiramente estabelecida em todos os fenômenos.
Isso explica como devemos meditar na bodhichitta mais profunda, a mente que se expande rumo à verdade mais profunda. “Mais profunda” refere-se ao estado final, ou real, das coisas – o entendimento da verdadeira natureza da realidade em termos da ação, da base da ação, da pessoa que realiza a ação, e assim por diante. Por exemplo, quando olhamos para uma flor e a analisamos, é claro que a flor veio das sementes e requer água e luz solar, e assim por diante, para crescer. Mas se de repente entrarmos em um local e olharmos para uma flor, pode parecer que ela está ali por conta própria, sem ter passado por todos esses processos. No entanto, quando a flor começa a murchar e se desintegrar, é uma demonstração clara de que a existência não era auto-estabelecida, como parecia ser, mas que era o resultado de um processo de causas do qual ela dependia para estabelecer sua existência. Pela natureza de sua originação dependente, ela envelheceu, se desintegrou e secou.
A natureza mais profunda da flor é que esta não pode ser encontrada como tendo uma existência auto-estabelecida. Em outras palavras, a verdade mais profunda não é a aparência superficial da flor, mas o fato mais profundo da realidade dela. Quando falamos da verdade convencional ou superficial em relação a alguma coisa, o termo se refere à verdade que oculta algo mais profundo. A verdade convencional das coisas – a aparência de todas as variedades de coisas e seres envolvidos em problemas, e assim por diante – é o que oculta a verdade mais profunda delas. Quando nossos corações se expandem rumo à verdade convencional de todas as assim chamadas “coisas que existem convencionalmente”, ou objetos que ocultam algo mais profundo, isso é chamado de “bodhichitta convencional”. Quando os nossos corações se expandem rumo à verdade definitiva, o que se refere à verdade mais profunda, isso é chamado de “bodhichitta mais profunda”.
Da mesma forma, quando expandimos a nossa mente rumo ao dharmakaya, um Corpo que Tudo Abrange, que é a realidade de todos os fenômenos – e quando pensamos no dharmakaya dessa forma – podemos remover todas as máculas que obscurecem a verdadeira natureza da realidade. Ao removê-las, chegamos ao verdadeiro dharmakaya. Portanto, temos uma prática que combina a expansão da mente rumo à verdade convencional e à mais profunda – uma prática que combina a bodhichitta convencional com a mais profunda. Cultivamos uma mente que busca abranger todos os seres, e com o poder acumulado por essa prática, removemos as várias máculas e conseguimos ver a verdadeira natureza da realidade.