Este artigo analisa se há alguma diferença entre nos visualizarmos como uma figura búdica e imaginar que somos o Mickey. Isso pode parecer engraçado, mas, na prática tântrica, muitas vezes chegamos a um estágio onde questionamos o que estamos fazendo. Trabalhamos com visualizações fantásticas, que, se não tivermos uma boa base, podem começar a parecer loucura, especialmente se dissermos aos outros o que estamos fazendo. Pode parecer: “Estou imaginando que sou uma fada, que vou para a terra da fantasia e levarei todos comigo”! As pessoas provavelmente vão querer nos internar num manicômio. Portanto, aqui analisaremos esse tópico que trata de figuras búdicas e Mickey Mouse em profundidade.
Imaginando-se uma Figura Búdica
Uma das características mais marcantes do tantra é o que chamamos de “yoga da deidade”, onde nos imaginamos como uma figura búdica. Normalmente se traduz esse termo [imaginação] como “visualização” ao invés de imaginação, apesar de não estarmos apenas nos visualizando. Acho a palavra “imaginar” ótima, pois é realmente isto que fazemos: imaginamos que somos um buda na forma de uma figura búdica. E não imaginamos apenas que a nossa aparência é igual à da figura búdica, mas também que falamos, pensamos, ajudamos os outros e experimentamos o puro desfrutar com todos nossos sentidos, como o faz a figura búdica. Também imaginamos que temos todas as suas qualidades, como o mesmo amor e compaixão por todos os seres e uma profunda compreensão de tudo. Claro que para fazermos isso e termos sucesso na prática precisamos ter treinado antes cada uma dessas qualidades fazendo práticas do (caminho do) sutra. Juntar todas elas na yoga das deidades é, portanto, como ensaiar ser um buda de verdade. Ensaiando agora, geramos causas poderosas para atingir a iluminação. Esse método extremamente eficiente é conhecido como “praticar as causas que são as mais parecidas com o resultado”.
O que traduzo como “figura búdica” é a palavra tibetana “yidam”, que algumas vezes diz-se ser “um tipo especial de deidade” – não é uma deidade normal, como as deidades dos hindus ou os deuses gregos. Mas, assim como uma deidade, essas figuras têm qualidades extraordinárias, que vão muito além das de um ser humano normal. A palavra tibetana “yidam” significa literalmente uma figura com a qual criamos um vínculo forte para a nossa mente. Criamos um vínculo forte com uma figura búdica, em particular para nos tornarmos um buda com a aparência física dessa figura. A figura pode ser masculina, como Avalokiteshvara (Tchenrezig, em tibetano), feminina, como Tara, ou mesmo um casal, como Kalachakra.
Nossa questão, portanto, é: qual a diferença entre praticantes do tantra que se imaginam como um buda na forma de uma figura búdica e pessoas que deliram imaginando que são o Mickey?
Refúgio e Comportamento Ético
Primeiramente, como praticantes do tantra (e estamos falando de praticantes autênticos, que praticam adequadamente) temos uma direção segura em nossa vida (normalmente chamada “refúgio”). O que isso significa? Antes de mais nada, significa que temos uma visão realista das quatro nobres verdades:
- Reconhecemos quais são os verdadeiros sofrimentos.
- Sabemos quais são as verdadeiras causas do sofrimento.
- Reconhecemos que é possível conseguir um verdadeiro cessar das causas.
- Compreendemos os verdadeiros caminhos mentais que nos levarão a isso.
A mais profunda Joia do Dharma, ou Refúgio no Dharma, é o verdadeiro cessar e os verdadeiros caminhos mentais – a terceira e a quarta nobres verdades. Os budas são aqueles que têm os verdadeiros cessares e os verdadeiros caminhos mentais totalmente presentes em seus contínuos mentais. A Sangha de Aryas é a comunidade de seres nos quais alguns verdadeiros cessares e alguns verdadeiros caminhos mentais estão presentes, mas não todos.
Como praticantes budistas do tantra, temos que dar um significado positivo (uma direção segura) às nossas vidas. Reconhecemos os diversos problemas que temos e as suas causas, e praticamos métodos que levarão a um verdadeiro cessar dessas causas, e, portanto, dos problemas. Sabemos bem que há um caminho para sair do sofrimento, e assim, temos muita segurança do que estamos fazendo. Sabemos também que não estamos sós, que existem outras pessoas trabalhando na mesma direção, e seres que já atingiram isso, total ou parcialmente.
Quando seguimos essa direção significativa e segura, a primeira coisa que fazemos é evitar comportamentos destrutivos, pois geram infelicidade e o assim chamado “sofrimento do sofrimento”. Como praticantes do tantra, enquanto nos imaginamos como budas na forma de figuras búdicas, também nos engajamos em comportamentos éticos, tanto em nossa imaginação quando na vida diária. Fazemos isso sabendo que as causas de todos os nossos problemas e sofrimentos são internas. Eles são causados por nosso comportamento kármico compulsivo e destrutivo, que, por sua vez, é acionado por nossas emoções destrutivas e derivado da nossa falta de consciência e confusão a respeito do efeito de nosso comportamento e também da realidade. É isso que temos que trabalhar para vencer; podemos nos livrar de tudo isso, para sempre.
Por outro lado, pessoas loucas normalmente procuram por um bode expiatório para seus problemas. Elas culpam seus pais, ou a sociedade, tornando-se paranoicas. Elas não reconhecem que o que fazem, ou seja, seu comportamento afetará seu futuro e aquilo que vivenciarão. Normalmente, quando alguém acha que é o Mickey, não é com a intenção de usar isso para comportar-se de maneira ética, ou para atingir a iluminação e a liberação e se livrar de todos os problemas.
Renúncia
A próxima diferença está no que chamamos de “renúncia”, que é a determinação de nos livrarmos de nossos problemas e de suas causas, tanto os desta vida quanto os de vidas futuras. Logicamente, isso significa que estamos dispostos a abrir mão de nossos problemas e de suas causas.
Algumas pessoas podem contestar, dizendo: “bom, isso não é escapismo? Será que não estamos fugindo da realidade ao renunciar a esta vida ou às condições gerais da vida?” A resposta é não, não é escapismo, de modo algum. Renunciar é ver a vida normal exatamente como ela é. Nascemos, ficamos doentes, envelhecemos e morremos; e nesse meio tempo não conseguimos o que queremos e encontramos situações que não gostaríamos de encontrar. Mesmo quando as coisas vão bem, nos sentimos frustrados e nunca ficamos satisfeitos. Sempre queremos mais. Tudo muda o tempo todo – tudo é totalmente instável.
Com renúncia, levamos todos esses problemas a sério, gerando um forte sentimento de “Chega! Não quero mais aceitar isso. Vou buscar uma solução”. Já temos a base da direção segura e, portanto, temos confiança de que existe uma solução para os nossos problemas. Existe uma saída, pois podemos nos livrar dos problemas e de suas verdadeiras causas para sempre. Nos recusamos a nos envolver apenas com as futilidades desta vida e de vidas futuras, e tomamos essa direção segura. Assim, como uma forma construtiva de encarar e resolver nossos problemas, trabalhamos para atingir os verdadeiros cessares e os verdadeiros caminhos mentais que nos levam à liberação e à iluminação.
Pessoas loucas que pensam que são o Mickey estão apenas escapando da realidade. Elas não estão encarando seus problemas, mas sim escapando para uma outra realidade, que não tem nenhuma relação com esta vida. Visualizações tântricas são métodos para lidarmos com a vida comum de uma forma criativa e construtiva. Pessoas loucas não lidam com suas vidas.
A Forma de uma Figura Búdica como Precursora da Forma de um Buda
Agora, podemos nos perguntar: Imaginar que somos o Mickey ou imaginar que somos um buda na forma de Avalokiteshvara não é igualmente um delírio? Novamente, não; existe uma grande diferença.
Na prática tântrica, imaginamos coisas que ainda não aconteceram, ou seja, coisas que ainda não vivenciamos, mas que podemos vivenciar com base no que chamamos de “aspectos da natureza búdica”. Esses aspectos são parte de nosso contínuo mental e todos nós os possuímos. Nosso contínuo mental é uma sequência ininterrupta de momentos consecutivos de experiência.
Por exemplo, toda criança tem o aspecto da natureza búdica de ter uma forma física, de ter a habilidade de se comunicar, de conhecer coisas, de fazer coisas, de apreciar coisas e muitas boas qualidades como amor e inteligência, apesar de não estarem totalmente desenvolvidas. Uma criança, pode imaginar-se na forma adulta, com a aparência de um adulto e falando, pensando, compreendendo, agindo e apreciando as coisas como um adulto, e também com as boas qualidade amadurecidas de um adulto. Apesar de ainda não ser um adulto (isso é uma ocorrência que “ainda não está acontecendo”), ela pode imaginar que é um adulto no momento presente. Isto porque, seu corpo e outras qualidades de criança, que são uma ocorrência que está acontecendo no presente, poderão desenvolver-se no corpo e qualidades de um adulto. Fazemos algo parecido no tantra.
Quando nos imaginamos aparecendo, falando e assim por diante como uma dessas figuras búdicas, sabemos que sermos um buda e termos essa aparência não está acontecendo no presente. É uma ocorrência que ainda não está acontecendo. Sabemos que, no momento, somos apenas um ser limitado imaginando que aparece dessa forma. Mas temos total convicção de que, se fortalecermos suficientemente nossas redes de força positiva e consciência profunda (mérito e sabedoria) dedicadas a atingir a iluminação, ser um buda e aparecer como uma figura búdica eventualmente será algo que estará acontecendo no presente. Temos todo o material de trabalho para isso; só precisamos purificá-lo e cultivá-lo mais.
Pessoas loucas certamente não acham que possuem todos os aspectos que as permitirão tornar-se um Mickey Mouse no futuro e que, agora, estão apenas fingindo ser o Mickey. Elas realmente acham que são o Mickey.
Múltiplas Faces, Braços e Pernas
Podemos contestar: “Não é um delírio imaginar que temos tantas faces, braços e pernas?” Avalokiteshvara tem quatro braços e Kalachakra tem 24! Isso não é tão louco quanto achar que somos o Mickey?”
Não, de jeito nenhum. Todos esses braços, faces e pernas representam diferentes aspectos do caminho espiritual, ou seja, aquilo de que precisamos realizar e obter para nos tornarmos budas. Os quatro braços de Avalokiteshvara, por exemplo, representam as quatro atitudes incomensuráveis do amor, compaixão, alegria e equanimidade. Nos imaginar com quatro braços, portanto, é um habilidoso método para treinarmos manter as quatro atitudes incomensuráveis em mente e estarmos atento ao que eles representam – todas as quatro, simultaneamente e de forma integrada. É justamente por esse ser um método hábil para ajudar as pessoas a atingirem a iluminação, que os budas se manifestam assim. Como praticantes do tantra, podemos também nos imaginar aparecendo dessa forma para ajudar tanto a nós quanto aos outros no caminho para a iluminação. Certamente não estamos praticando para virar uma atração de circo!
Transformando a Autoimagem
Imaginar-nos como budas, com a forma de uma figura búdica, é transpor nossa aparência convencional e nosso apego a existir da maneira convencional. Em outras palavras, para praticar com seriedade precisamos desistir de nossa autoimagem ilusória, de alguém que é realmente e imutavelmente de uma determinada maneira ou de outra. Ninguém existe assim, pois isso é impossível.
Nossa autoimagem e aparência convencional não se restringem à nossa aparência física. “Aparência”, aqui, significa o que aparece, o que surge. Nossa forma física, a forma como falamos, pensamos, sentimos e entendemos, além das qualidades que temos, como egoísmo ou compaixão, tudo isso surge e aparece. A forma convencional disso tudo constitui nossa aparência convencional, e os aspectos com os quais identificamos, como sendo o “verdadeiro eu”, constituem nossa autoimagem convencional. É isso que purificamos e transformamos com o tantra.
Não faz diferença alguma se nossa autoimagem convencional é negativa ou positiva. Podemos achar que somos uma pessoa feia, gorda, terrível e que ninguém nos ama, ou que somos um jovem que será eternamente bonito ou um presente de Deus para o mundo. Em qualquer dos casos, realmente achamos que somos assim e que sempre seremos assim, aconteça o que acontecer. No jargão budista, nos apegamos a essa autoimagem como sendo nossa “verdadeira identidade”; nos apegamos a ela como sendo aquilo que “realmente” somos. Precisamos vencer esse apego convencional.
Quando substituímos nossa aparência convencional e nossa autoimagem pela aparência “pura” de um buda na forma de uma figura búdica, também estamos substituindo o apego convencional à nossa aparência como sendo nossa verdadeira identidade. Substituímos a confusão do apego por uma compreensão clara da vacuidade de nossa própria identidade e de todas as aparências, autoimagens e identidades. Vacuidade significa a total ausência de um eu ou qualquer outra aparência existindo e sendo estabelecida de uma forma impossível – e, lembrem-se, “aparência” aqui refere-se a aparecermos como uma pessoa feia e gorda ou como um presente de Deus para o mundo ou como Avalokiteshvara ou Tara.
Percebemos que qualquer autoimagem sólida que tenhamos, seja ela convencional ou pura, é um delírio, pois não existem identidades concretas, imutáveis – a pessoa que “realmente” somos, autoestabelecida pelo poder de algo concreto e encontrável dentro de nós e independente de tudo mais. O tipo de pessoa que somos, nossa aparência e assim por diante, surge na dependência de um enorme conjunto de causas, condições, partes e rótulos mentais. Pelo fato dessas causas e condições estarem sempre mudando, nossa aparência física, o que fazemos e o que dizemos também estão constantemente mudando. Não é que exista um verdadeiro “eu” dentro de nós, que é sempre o mesmo, independente de nossa aparência superficial ou do que fazemos; e certamente não existe um “eu” sólido, encontrável, que existe sem nenhuma aparência. O fato é: não existe qualquer tipo de “eu” sólido, independente da aparência que possamos imaginar que ele tem.
Distinguindo o “Eu” Falso do “Eu” Convencional
Como praticante do tantra, distinguimos entre o que chamamos de falso “eu” e o “eu” convencional. Basicamente, nós existimos (o “eu” convencional), mas não existimos como um falso “eu”. O falso “eu” é pura fantasia e não corresponde a nada que seja real.
Convencionalmente, o “eu” está sempre mudando, e é imputado em um contínuo individual e ininterrupto de aparências que surgem – aparências de objetos, sentimentos, emoções e pensamentos e aparências de fazer, dizer e pensar coisas. Ele é imputado tanto no surgimento quanto na experiência subjetiva dessas aparências, e também nas próprias aparências. Isso tudo é inseparável. Para simplificar, podemos falar do “eu” convencional como algo imputado em um contínuo individual de aparências de corpo, fala e mente.
Mas o que significa “algo imputado”? Considere o exemplo do movimento. Movimento é algo imputado na dependência de haver um objeto cuja localização está em um contínuo individual de posições sequenciais. Todos podemos ver o movimento de um objeto que se move, mas não é possível encontrar esse movimento como uma “coisa” concreta dentro do objeto, qualquer que seja a posição do objeto. No entanto, isso não significa que o movimento não existe. Convencionalmente, existe movimento, mas simplesmente não conseguimos identificar o movimento em um objeto em um determinado momento no tempo; afinal, apenas um único momento ocorre de cada vez, e para se ter movimento, são necessários vários momentos.
Similarmente, o “eu” é algo imputado na dependência de haver um contínuo individual de aparências de um corpo, fala e mente que estão em constante mudança durante toda uma vida – e durante todas as vidas passadas e futuras também. Apesar de ser imputado na dependência de tal contínuo, não é possível encontrar-se o “eu” como “algo” (o falso “eu”) concreto dentro de um momento de aparecimento de um corpo, fala ou mente. Assim como no caso do movimento, convencionalmente existe um “eu”; só que não conseguimos apontar para ele. Ele não está em nenhuma célula do corpo, em nenhuma ação do corpo, não está no som de nenhuma palavra da fala ou em algum pensamento, emoção, compreensão ou qualquer outro lugar. E mesmo assim, se nos perguntarem: “Quem está aparecendo?” Teremos que responder: “Sou eu!” Não é outra pessoa e também não é ninguém. Esse é o “eu” convencional.
Agora uma questão mais profunda: o que estabelece a existência de algo convencional que chamamos de movimento ou de “eu”? Em outras palavras, o que explica o fato de todos poderem ver tanto o movimento como o eu? Não há nada encontrável dentro de um momento de um objeto localizado em diferentes lugares consecutivamente ou dentro de um momento de um contínuo individual de aparências de corpo, fala e mente.
Tudo o que podemos dizer é que existe o conceito de “movimento”, com a palavra “movimento” sendo usada para designá-lo, e que esse conceito serve para rotular um objeto que está em diferentes localizações em momentos sequenciais. Portanto, convencionalmente, o movimento é apenas aquilo a que o conceito ou palavra se refere, tendo como base um objeto que está em diferentes lugares consecutivos. Entretanto, ainda assim não conseguimos achar esse “movimento” convencionalmente existente. Mas isso não invalida sua existência convencional ou nossa percepção válida dele.
Da mesma forma, tudo o que podemos dizer é que existe o conceito de um “eu”, com a palavra “eu” sendo usada para designá-lo, e que esse conceito serve para rotular um contínuo de aparências sem começo e sem fim de um corpo, fala e mente, e também a experiência subjetiva dessas aparências. Convencionalmente, o “eu” é aquilo a que esse conceito ou palavra se refere, que tem como base o contínuo individual. E mesmo assim não conseguimos achar esse “eu” convencionalmente existente. Mas isso não invalida sua existência convencional ou nossa percepção válida dele.
Resumindo, quer estejamos analisando o nível convencional ou o nível mais profundo, nunca conseguiremos encontrar ou identificar esse “eu” convencional. Não obstante, quando não estamos analisando-o: “Aqui estou eu. Estou sentado aqui. Estou falando com você.” Não é nenhum dos dois extremos: não é que não haja alguém falando com você, e também não é que haja um falso “eu” sólido sentado em algum lugar dentro da minha cabeça e falando com você.
Como praticantes do tantra, compreendemos tudo isso e praticamos com base nisso. Quando substituímos nossa aparência convencional pela de um buda que aparece na forma de uma figura búdica, desconstruímos e descartamos qualquer apego à nossa aparência convencional ou pura como sendo o falso “eu”, que existe de maneira sólida. Entendemos que o “eu” convencional é algo que surge meramente na dependência [de vários fatores], e é igualmente imputado em ambos os tipos de aparências de corpo, fala e mente, [convencional ou pura], e em ambos os casos rotulamos igualmente com o conceito “eu” e designados com a palavra “eu”.
Uma pessoa louca, que imagina ser o Mickey Mouse, não compreende nada disso. Ela nega a existência convencional de si mesma em sua aparência convencional e identifica seu falso “eu” com o Mickey Mouse.
Imputação Válida
Agora, podemos perguntar: será que o “eu” convencional é validamente e igualmente imputável em nossa aparência comum e em nossa aparência pura, e será que é validamente e igualmente imputável em ambas as aparências com o conceito “eu”, e será que pode ser igualmente designado em ambas as aparências pela palavra “eu”? Para simplificar, vamos nos referir a todas essas três relações usando a palavra “imputação”. A resposta mais simples a essas perguntas é sim, ambas as aparências são válidas.
O “eu” convencional é algo imputado em um contínuo individual de aparências momentâneas de um corpo, fala e mente e na experiência subjetiva de corpo, fala e mente que se segue, sequencialmente, de acordo com um processo causal. Ao longo desse contínuo, nosso “eu” convencional é algo que pode ser validamente imputado nas aparências de corpo, fala e mente que surgem e são subjetivamente vivenciadas no momento presente, mas também é algo que pode ser validamente imputado nas aparências que surgiram e foram vivenciadas quando éramos um bebê. Aquilo também era o “eu”. Da mesma forma, o “eu” pode ser validamente imputado, se vivermos suficientemente, nas aparências de corpo, fala e mente que surgirão e serão subjetivamente vivenciadas quando envelhecermos.
Claro, estamos sempre mudando – certamente não somos os mesmos de quando éramos bebês – mas existe um contínuo do “eu” convencional. Os vários potenciais e tendências desenvolvidos nesse contínuo mental através dos hábitos, junto com circunstâncias e condições sempre mutantes, fazem com que surjam todas essas aparências. Mas será que podem realmente fazer surgir a aparência do “eu” convencional como um buda na forma de uma figura búdica, e não apenas em nossa imaginação? Essa é a questão.
Aspectos da Natureza Búdica
Para responder essa questão, precisamos analisar mais de perto os aspectos da natureza búdica, que são parte integrante de nosso contínuo. Alguns mudam o tempo todo, e a vacuidade de nosso contínuo (o fato de que ele não existe de verdade como algo sólido, independente de tudo mais) é o que permite que eles mudem. Esses aspectos, que estão constantemente mudando, incluem: aparecer e agir com um corpo, comunicar com a fala e pensar, sentir e entender com a mente. Em resposta às circunstâncias externas, as aparências mudam; e o que afeta internamente as mudanças nas aparências, e no que elas fazem, são nossas redes de potenciais positivos e consciência profunda, ou “coleção de méritos e sabedoria. Se analisarmos melhor como as redes funcionam, podemos entender melhor as mudanças.
Quando fazemos, dizemos ou pensamos alguma coisa, geramos uma força potencial em nosso contínuo mental. O acúmulo dessas forças forma uma rede que gera resultados. De acordo com as circunstâncias, essa rede de potenciais gera as aparências de corpo, fala e mente e a repetição de padrões prévios de comportamento físico, verbal e mental. Quando derivam de comportamentos construtivos, como ajudar alguém com amor e compaixão, esses potenciais são positivos, e quando derivam de comportamentos destrutivos, como gritar com alguém com raiva, são negativos.
Quando esse potencial não é dedicado a algum objetivo, ou quando é dedicado a um objetivo mundano, como ficar rico ou ser querido, ele gera aparências convencionais de corpo, fala e mente. Esse é o caso tanto para os potenciais positivos como para os negativos. Entretanto, quando o potencial positivo é dedicado para atingir-se a iluminação, ele pode gerar o corpo, fala e mente de um buda. Se algum potencial positivo for gerado enquanto nos imaginamos um buda na forma de uma figura búdica, ele pode gerar o corpo, a fala e a mente de um buda na forma da figura búdica que imaginamos.
Outro fator crucial, contudo, é nossa compreensão da vacuidade. Agir, falar e pensar com um entendimento correto da vacuidade gera uma rede de consciência profunda [sabedoria]. Por outro lado, agir, falar e pensar com ignorância e apego a uma existência verdadeiramente estabelecida gera a tendência de nos mantermos apegados e o hábito de nos apegarmos, o que impede nossa iluminação.
Na prática do tantra, portanto, nos imaginamos como um buda na forma de uma figura búdica que age, fala e pensa de maneira positiva; e continuamos a nos imaginar dessa forma enquanto ajudamos os outros. Devemos fazer isso com um entendimento correto da vacuidade e dedicando a força positiva à nossa iluminação. Fazer isso gera redes de força positiva e consciência profunda que ocasionam a iluminação. Assim como baterias que são totalmente carregadas até atingirem seu potencial, essas redes fazem com que nossos aspectos de corpo, fala e mente da natureza búdica apareçam como um buda de verdade na forma de uma figura búdica, e também nos fazem agir como um buda.
O fato de realmente aparecermos assim pode certamente acontecer quando todas as causas estiverem presentes, assim como certamente podemos aparecer como uma pessoa velha se vivermos o suficiente para envelhecer. Em ambos os casos, quer sejamos uma pessoa idosa ou um buda, ainda assim seremos o “eu” convencional. Por isso, é valido imputarmos o “eu” convencional na nossa forma, que ainda não surgiu, de um buda aparecendo como uma figura búdica
Resumindo, quando olhamos os aspectos conhecidos como “natureza búdica”, vemos que é absolutamente possível termos a experiência de ser um buda no futuro. Com o tantra, imaginamos que já somos um buda e, portanto, estamos colocando o rótulo “eu” em algo que, na nossa mente, representa o buda (que ainda não somos) que vamos nos tornar. Sabemos que ainda não chegamos lá, mas a prática contínua agirá como causa para nos tornarmos um buda na forma de uma figura búdica.
Agora, pessoas loucas não têm nada disso. Elas realmente acham que são Mickey Mouse ou Napoleão ou Cleópatra ou até mesmo Avalokiteshvara, Buda ou Jesus Cristo. Podemos ficar totalmente loucos e achar que somos uma deidade ou um buda que existe de maneira sólida, mas isso é uma loucura completa. Podemos até levar isso ao nível ridículo de pensar que podemos atravessar paredes e coisas do gênero – e acabar batendo contra a parede. Portanto, no tantra, é absolutamente crucial estarmos ciente da realidade do que estamos fazendo, caso contrário, podemos ficar loucos.
Ao mudarmos de uma autoimagem negativa para uma positiva, o fazemos com base na compreensão da realidade das autoimagens. Ao invés de termos uma autoimagem negativa, no que se refere a quem somos ou às nossas características -- sermos idiotas ou incapazes de entender as coisas –, a transformamos em uma positiva. Continuamos compreendendo as coisas, continuamos a ter clareza mental e estamos cheios de compaixão. Usamos o tantra como um método para desenvolver essas qualidades, e estamos totalmente cientes de que elas ainda não estão presentes, mas que se desenvolvermos suas causas podemos ter todas essas qualidades totalmente presentes. Pessoas loucas não têm nada disso.
Cultivando a Dignidade de Ser um Buda na Forma de uma Figura Búdica
Quando falamos em ter a dignidade ou o orgulho da deidade, não estamos nos referindo ao orgulho ou à arrogância que vêm da confusão. É simplesmente que nos sentimos como a deidade. Para deixar mais claro, imagine que você é Avalokiteshvara e sinta: “Isso é quem sou, isso é quem sou”. Mesmo sabendo que ainda não chegamos lá, imaginamos que já chegamos, como um método, e temos o orgulho ou dignidade de ser quem somos. Rotulamos “eu” naquilo que estamos visualizando – e não só fisicamente – mas incluímos todas as qualidades de Avalokiteshvara: compaixão infinita e equânime por todos os seres.
É uma técnica realmente maravilhosa, pois essa dignidade – prefiro traduzir como “dignidade” ao invés de “orgulho” – evita que ajamos feito idiotas ou com crueldade. Como Avalokiteshvara não ajudaria essa pessoa? Como Avalokiteshvara estaria muito cansado ou ocupado para ajudar? Como Avalokiteshvara não se importaria? Quando temos nossa autoimagem convencional, deludida, não conseguimos fazer nada, somos incapazes. Sequer tentamos. Mas se fossemos Avalokiteshvara, mesmo que não pudéssemos ajudar os outros, adoraríamos poder. E ainda teríamos compaixão, o desejo de livrar os outros do sofrimento e de suas causas. Essa dignidade de ser Avalokiteshvara evita que tenhamos um coração frio e fechado. É realmente fantástico, é um lindo método. Pessoas loucas não têm nada disso.
Nossa Aparência de Figura Búdica é Como uma Ilusão
Para a nossa mente não iluminada, as coisas parecem ser verdadeiramente estabelecidas, porém, essa aparência é como uma ilusão. A palavra “como” aqui é muito importante, porque implica que as coisas não existem como aparecem, assim como uma ilusão, que aparece como sendo real, mas não corresponde a nada que seja real. Até mesmo a nossa aparência de figura búdica enquanto ainda não somos iluminados é como uma ilusão. Nós entendemos isso, mas pessoas loucas acreditam na ilusão. Elas não reconhecem que as coisas são apenas como uma ilusão; nisso está a grande diferença.
Motivação
Outra diferença importante é a motivação. Na prática do tantra, nossa motivação é bodhichitta, ou seja, nosso objetivo é nos iluminarmos futuramente para podermos ajudar os outros da melhor maneira possível. A figura búdica que imaginamos ser representa esse objetivo, e imaginamos que tudo o que fazemos é para beneficiar os outros. Nossa motivação de bodhichitta é baseada em compaixão e amor universais.
Imaginar-nos como uma figura búdica o tempo todo – ou o máximo de tempo que conseguirmos – nos ajuda a permanecer focados com bodhichitta em nosso objetivo: a iluminação. O único motivo pelo qual nos imaginamos assim é porque queremos ser capazes de ajudar os outros o máximo possível – bodhichitta – e isso nos ajuda a vencer o egoísmo e a preocupação autocentrada. Por outro lado, uma pessoa que cria uma fantasia com base na confusão demonstra uma preocupação ainda maior consigo mesmo, pois permanece em seu próprio mundinho e não tem nenhuma motivação de atingir a iluminação ou ajudar os outros.
Práticas Preliminares
Como praticantes do tantra, nos engajamos em práticas preliminares para purificar obstáculos e potenciais kármicos negativos e gerar a força positiva que garantirá nosso sucesso na prática. Existem muitas práticas de purificação, como prostrações e a meditação de Vajrasattva (que implica em reconhecermos nossas próprias falhas, resolver não as repetir, com base no arrependimento, reafirmar nossa direção segura e significativa na vida e aplicar medidas que compensem nossas falhas), e também práticas para gerar força positiva, como guru-yoga e o oferecimento de mandalas. Com tudo isso, nos preparamos bem para as visualizações do tantra. Pessoas loucas não se preparam para imaginar-se como Mickey Mouse.
Iniciação
O próximo ponto é que o yoga da deidade só pode ser praticado se tivermos recebido uma iniciação. Durante a iniciação, imaginamos alguns processos, conforme a descrição e atuação do mestre espiritual, e esses processos ativam nossos aspectos da natureza búdica para que manifestem a aparência da figura búdica.
A iniciação nos liga a uma linhagem de milhares de anos de práticas de pessoas que fizeram a mesma coisa que estamos fazendo. Ela nos dá a tranquilidade e a garantia de que estamos seguindo um método que vem sendo testado há muito tempo e que funciona – nada está sendo inventado – então não precisamos achar que estamos loucos. Estamos obtendo uma permissão para praticar, e esse evento espiritual especial marca o início de nossas práticas.
Pessoas loucas não têm nada disso, e geralmente sentem-se totalmente sozinhas.
Relacionamento com um Mestre Espiritual
Após a iniciação, a prática de yoga da deidade é feita com a orientação e supervisão de um mestre spiritual (guru), para que não haja dúvidas. É como seguir uma prescrição médica e o professor pode responder todas as suas perguntas. O professor ou professora também serve como um exemplo vivo daquilo que estamos tentando ser e, portanto, nos inspira a seguir seus passos.
Uma pessoa louca, bom, mesmo que vá à Disneylândia e peça a alguém vestido de Mickey sua permissão para também tornar-se um Mickey e para que a ensine a comportar-se como um Mickey – isso seria loucura! Não é a mesma coisa.
Votos, Compromissos e Confidencialidade
Em uma iniciação, tomamos vários conjuntos de votos. Alguns dizem respeito ao nosso comportamento ético e outros (como o voto de bodhisattva) são para evitar com que façamos, digamos ou pensamos algo que possa comprometer nossa capacidade de ajudar os outros. Em alguns casos, também tomamos os votos tântricos de evitar fazer algo que comprometa o sucesso da nossa prática tântrica. Além disso, assumimos o compromisso de fazer várias práticas meditativas diárias pelo resto de nossa vida.
Manter com pureza os votos e compromissos assumidos requer forte disciplina; precisamos levá-los muito a sério para conseguir mantê-los através de um esforço consciente. Pessoas loucas não têm consciência alguma do que estão fazendo, certamente não tomaram nenhum voto para moldar seu comportamento e não se comprometeram a praticar diariamente ser o Mickey Mouse.
Os praticantes do tantra são fortemente instruídos a manter sua prática confidencial e secreta, pois é um assunto pessoal. Não devem fazer disso uma grande coisa e certamente não devem divulgar isso na media social. Pessoas loucas geralmente contam tudo para todo mundo, são arrogantes em relação ao que fazem, e divulgam livremente suas fantasias. Lembro-me de uma mulher em Dharamsala, Índia, que ficou completamente perturbada achando que era Tara. Ela tirou toda sua roupa e ficou correndo pelo mercado dizendo ser Tara. Não é isso que fazemos na prática correta do tantra.
Recapitulando
Resumindo, o yoga da deidade é feito dentro de um contexto muito amplo, onde:
- Queremos nos livrar de nossos problemas
- Damos uma direção segura à nossa vida como uma forma de superarmos nossos problemas
- Seguimos os princípios de causa e efeito de nosso comportamento, para abordar nossos problemas e suas causas
- Renunciamos à nossa autoimagem convencional ilusória e usamos uma imagem pura a fim de sermos capazes de ajudar os outros e de manter o foco na iluminação
- Entendemos que a imagem não é real, que é como uma ilusão, porém é válida, pois podemos obtê-la no futuro
- Recebemos autorização e iniciação para fazer a prática, nos preparando para isso com práticas preliminares
- Recebemos orientação de um mestre espiritual qualificado que tenha uma experiência bem-sucedida na prática
- Nos ligamos a uma longa linhagem de pessoas que fizeram com sucesso a prática e alcançaram a iluminação com ela e, assim, ganhamos confiança
- Mantemos a disciplina através de votos de compromisso e vários votos de disciplina ética e interação com os outros
- Mantemos nossa prática confidencial e privada e somos humildes quanto a isso.
No geral, pessoas loucas não fazem nada disso.
Essa é a apresentação das diferenças entre nos imaginar como um buda na forma de uma figura búdica no contexto de uma prática tântrica correta e pessoas loucas que imaginam ser o Mickey Mouse.
Se, mais tarde, em nossa prática tântrica, começarmos a questionar: “O que eu estou fazendo? Isso é loucura!” Temos que repassar essa lista para nos certificarmos que possuímos todos os fatores listados ou se alguns estão faltando ou estão fracos.
Yoga da deidade é um método para atingirmos a iluminação. Portanto, é lógico que precisamos entender que é absolutamente possível atingirmos a iluminação. Todos os pontos acima são muito importantes, pois se não soubermos exatamente o que estamos fazendo, não nos tornarmos uma pessoa louca que acha que é o Mickey Mouse, mas nos tornaremos uma pessoa louca que acha que é Avalokiteshvara ou Tara. E o yoga da deidade se tornará um caminho para a insanidade, ao invés de um caminho para iluminação.
Todos os textos dizem que as práticas tântricas são perigosas, e existe uma razão para isso! O ponto principal é que as práticas devem ser feitas dentro do contexto de todas essas variáveis que listamos aqui. Caso contrário, será fácil nos desviarmos do caminho. Por isso é tão importante termos a orientação e inspiração de um mestre espiritual qualificado que nos ajude a permanecer no caminho correto.
Perguntas
Essas figuras búdicas são realmente seres ou são criações da nossa mente. Por exemplo, Avalokiteshvara é mesmo a manifestação da compaixão?
Essa é uma questão muito complexa. Segundo a tradição, algumas figuras búdicas, como Avalokiteshvara e Tara, são realmente seres vivos que têm seu próprio contínuo mental. Tara, por exemplo, foi uma bodhisattva que jurou sempre aparecer na forma feminina até tornar-se uma buda, para inspirar e encorajar as mulheres mostrando que elas também podem atingir a iluminação. Um buda pode, logicamente, manifestar-se da forma que quiser para beneficiar os seres, inclusive na forma de Tara. Mas isso não quer dizer que o contínuo mental desse buda se torna o contínuo mental de Tara. Os contínuos mentais permanecem sempre individuais, eles nunca se fundem.
Existem outras figuras que podem não ter necessariamente seu próprio contínuo mental, mas um buda pode manifestar-se usando essa forma, como no caso de Kalachakra. Não existem relatos de Kalachakra como um indivíduo, mas o Buda manifestou-se nessa forma para ensinar o Kalachakra Tantra. Isso é no que diz respeito a um buda.
No que diz respeito a nós como praticantes, o anuttarayoga tantra, a mais alta classe do tantra, fala de um nível mais sutil de mente e energia, que todos os seres têm, inclusive quando são iluminados. Essa energia sutil pode ser moldada para aparecer em qualquer forma. Quando os budas se manifestam usando a forma de uma das figuras búdicas, eles usam a sua própria energia mais sutil para isso. No nosso nível de prática, não conseguimos manifestar nossa energia mais sutil em qualquer que seja a forma e, nos níveis mais avançado, mesmo quando conseguimos nos manifestar com uma determinada forma, não conseguimos mantê-la o tempo todo. No nosso nível, quando nos imaginamos nessas formas, elas são meras representações daquilo que ainda não alcançamos.
A questão mais interessante é: será que tudo isso é só imaginação? O que significa ser só imaginação? Se a prática tântrica lhe é familiar, você deve se lembrar que temos na sadhana (uma sadhana é uma prática de meditação para nos transformarmos em uma figura búdica) uma parte onde nos visualizamos na forma do que chamamos de “figura de vinculação forte”, algumas vezes traduzida como “ser com o qual nos comprometemos”, com uma mandala de vinculação ao nosso redor. Em seguida invocamos o que chamo de “ser de consciência profunda”, também chamado de “ser de sabedoria”, para nos fundirmos com ele.
Eu sempre achei, e acho que muitas outras pessoas também, que a figura de vinculação é aquela com a qual formamos um vínculo forte para obtermos a forma. E também sempre achei que ela era essencialmente imaginária, enquanto a figura de consciência profunda era a figura real que vinha dos campos búdicos. Mas meu professor, Serkong Rinpoche, disse que em um determinado estágio do caminho, acho que no segundo estágio, o caminho da aplicação, você pode, na verdade, receber ensinamentos de uma pintura, uma estátua e também do ser de vínculação e de consciência profunda. Portanto, não é só a nossa imaginação; quando se alcança um determinado nível, a figura pode funcionar como um buda de verdade.
Então será que essas figuras búdicas são imaginárias ou reais? E o que queremos dizer com “real”? É complicado! É como no caso das estátuas ou thankas (pinturas), para as quais temos o que chamamos de “rabney” em tibetano, que algumas vezes é traduzido como “consagração”. Nesse ritual, o aspecto de consciência profunda é invocado e funde-se com a estátua ou pintura, e, portanto, prostrar-se ou fazer oferendas a esses objetos é como fazer para o próprio buda. No texto Engajando-se no Caminho do Bodhisattva, o mestre indiano Shantideva disse que o potencial positivo que se acumula fazendo oferendas para a stupa (monumento relicário) de um buda é o mesmo que se acumularia fazendo oferendas para o próprio buda. Então será que isso é venerar um ídolo? Na verdade, não. Precisamos entender que quando se está em um nível avançado é possível receber ensinamentos de qualquer coisa, até mesmo do vento.
Portanto, em um determinado nível, as figuras búdicas representam algo que ainda não aconteceu, mas que pode acontecer. Em outro, elas são um nível diferente em que nossa energia sutil pode manifestar-se. E ainda em outro, estamos imaginando-as. Mas existe mais um nível, onde podemos até receber ensinamentos delas como receberíamos de um buda. E algumas figuras são baseadas em seres verdadeiros que possuem seus próprios contínuos mentais, e outras não.
Será que existe algum problema em nos visualizarmos na forma das figuras búdicas que nos são mais familiares, como Jesus ou Maria, ao invés de na forma tradicional das figuras búdicas indianas com as quais é difícil nos identificarmos?
Em geral, isso não é uma boa ideia, pois é um tanto desrespeitoso às outras religiões, como o cristianismo, por exemplo. Mesmo se mantivermos nossa prática em segredo e não falarmos para ninguém, é quase como se estivéssemos convertendo Jesus e Maria em budistas. Isso não significa que não podemos visualizar Jesus e Maria na nossa frente e nos inspirar com suas boas qualidade, e até mesmo imaginar ondas de inspiração partindo deles e vindo em nossa direção na forma de luzes coloridas. O que seria inapropriado e desrespeitoso seria nos imaginar como Jesus ou Maria.
Você mencionou que existem figuras búdicas, manifestadas pelo Buda, que possuem seu próprio contínuo mental individual, como Tara, e outras que não, como Kalachakra. O Mickey Mouse também não tem seu próprio contínuo mental, e nunca viveu. Então qual a diferença entre o Buda manifestar-se como Kalachakra ou como Mickey Mouse?
Novamente, esse é um tópico complexo. A manifestação do Buda como Kalachakra foi um método hábil que ele usou para que outros atingissem a iluminação. Os vários braços e faces representam os vários aspectos do que estamos purificando, o caminho que purifica e o resultado, que é a realização.
Outro aspecto é que em diversos momentos da história, quando várias figuras búdicas foram muito popularizadas, elas ficaram insípidas e a prática menos eficiente. Em tais épocas, o Buda manifestou-se em visões puras para vários mestres altamente realizados e com formas diferentes das figuras búdicas clássicas. Então, foram desenvolvidas novas práticas tântricas, com base nessas figuras recém reveladas.
Mickey Mouse é um exemplo um pouco difícil, então vamos usar Branca de Neve. Se alguém alegar que teve uma visão do Buda na forma da Branca de Neve com os sete anões, e que agora ensina o Tantra da Branca de Neve, todo mundo vai achar que a pessoa enlouqueceu.
O teste para sabermos se um ensinamento derivado de uma visão pura é válido é: yoguis qualificados o praticaram e alcançaram os resultados que se deve alcançar com tal prática. Ou seja, eles atingiram a iluminação. Por exemplo, o Buda manifestou-se como Tara em pelo menos 21 formas, conhecidas como as “21 Taras”. É possível que alguém tenha uma visão pura do Buda manifestando-se como Tara na forma da Branca de Neve em uma mandala com os sete anões, representando as sete joias dos aryas, e com a cor branca de Branca de Neve representando purificação. É um pouco forçado, mas não deixa de estar dentro do reino das possibilidades, do que é consistente com a tradição budista. Porém, seria necessário haver uma razão muito boa para Tara manifestar-se como Branca de Neve!
Podemos analisar assim só por diversão. Mas lembrem-se, pessoas loucas não achariam que são budas manifestando-se na forma de Branca de Neve como um meio hábil para ajudar outras pessoas a atingirem a iluminação. Elas realmente acreditam que são a Branca de Neve! Existe uma grande diferença!
Resumo
O tantra é muitas vezes comparado a um bambu: ou você sobe até o topo ou escorrega até o chão. A prática do tantra precisa estar firmada em uma base sólida de conhecimento e experiência no budismo; caso contrário, arriscamos usar essas práticas de uma forma que só aumentará, ao invés de diminuir, nossas fantasias.
O yoga da deidade pode ser parecido com imaginar que somos o Mickey Mouse, mas as diferenças são claras. O yoga da deidade fornece métodos para superarmos nossa autoimagem convencional, ilusória, e substituí-la com algo totalmente puro que podemos usar para nos levar até nossa iluminação futura, que ainda não está acontecendo.