Aproveitando a Vida Humana Preciosa

Versos Introdutórios e Versos 1 a 4

Introduçã

Este texto de treinamento da mente, As 37 Práticas de um Bodhisattva, foi escrito no século XIV, no Tibete, e é estudado em todas as tradições tibetanas. Seu autor, Sakya Togme Zangpo, era conhecido por ser um verdadeiro bodhisattva. Além disso, foi mestre de Rendawa, um dos principais professores de Tsongkhapa.

Togme Zangpo escreveu vários outros textos, sendo o mais famoso deles o seu comentário sobre Engajando-se no Comportamento de um Bodhisattva (O Caminho do Bodhisattva), de Shantideva. Também é responsável pelo mais antigo comentário sobre o Treinamento da Mente em Sete Pontos, de Geshe Chaykawa. Esses ensinamentos Mahayana antigos são a base para as práticas por ele destacadas. Através de seus comentários, e também do próprio texto das 37 Práticas de um Bodhisattva, podemos perceber que era realmente um especialista no caminho do bodhisattva.

O número 37 é significativo; aparece repetidas vezes na literatura budista. Por exemplo, existe um conjunto de 37 práticas de purificação. Essas práticas incluem as quatro aplicações da presença mental, o caminho óctuplo e assim por diante. São práticas muito conhecidas, que todos os que buscam a liberação, pelo caminho Hinayana, ou a iluminação, pelo caminho Mahayana, seguem. Isso explica o motivo do número 37 ter sido escolhido para essas práticas dos bodhisattvas.

O texto começa com uma homenagem, conforme a tradição indiana.

Homenagem a Lokeshavara

Lokeshvara é um outro nome para a figura búdica Avalokiteshvara. As figuras búdicas são representações das várias qualidades de um buda; neste caso, a compaixão. Quase todos os textos começam com uma homenagem aos budas ou figuras búdicas. De certa forma, a homenagem inicial indica a fonte de inspiração para os ensinamentos contidos no texto. Assim, para um textos sobre práticas de bodhisattvas, a reverência à compaixão é bastante apropriada. A homenagem, ou reverência, continua com a prostração.

Prostro-me, sempre respeitosamente, através de minhas três portas, perante os gurus supremos e o Guardião Avalokiteshvara os quais, vendo que os fenômenos não vêm e nem vão, esforçam-se apenas para o benefício dos seres errantes.

Quando nos prostramos, o fazemos através dos três portões, que são os portões, ou portas, por onde agimos, falamos e pensamos, que correspondem ao nosso corpo, fala e mente.

A quem nos prostramos? Antes de mais nada, aos supremos gurus, os professores espirituais, e depois, ao nosso Guardião Avalokiteshvara. A palavra guardião significa que, de certa forma, ele nos inspira, e essa inspiração nos protege de agir de forma egoísta, sem compaixão. Pode-se estranhar que os gurus sejam mencionados antes de Avalokiteshvara, mas existe um motivo para isso. Na maioria dos textos, existe uma razão para a ordem em que as palavras estão dispostas. É preciso muito cuidado para que essa ordem seja mantida durante a tradução. O motivo para os gurus aparecerem antes de Avalokiteshvara é que os professores espirituais são a fonte de todas as figuras búdicas — neste caso, Avalokiteshvara.

O caso do mestre indiano Naropa e seu aluno Marpa, o grande tradutor tibetano, serve como ilustração. Certo dia, Naropa manifestou toda a mandala da figura búdica Hevajra como um grande holograma de seu palácio, com todas as figuras dentro. E então, perguntou a Marpa “A quem se prostrará primeiro, a mim ou a Hevajra?” E Marpa respondeu “Bom, eu lhe vejo todos os dias, mas esta é a primeira vez que vejo Hevajra! Devo prostrar-me primeiro a ele.” Naropa estalou os dedos e a mandala desapareceu. E corrigiu Marpa, dizendo “Você acabou de cometer um grande erro, que certamente lhe trará consequências negativas. Deve lembrar-se que, sem os gurus, seria impossível você efetivar as figuras búdicas. Portanto, os gurus são mais importantes”.

Esse caso nos mostra claramente que não devemos simplesmente venerar as figuras búdicas, ou os gurus, como se fossem santos. Os gurus, sozinhos, não conseguem nos salvar. Mas, se seguirmos suas instruções, tendo-os como inspiração, podemos conseguir a liberação e a iluminação através de nosso próprio esforço.

A seguir, o texto descreve uma característica dos gurus supremos e de Avalokiteshvara, isto é, eles percebem que todos os fenômenos não vêm e nem vão, em uma referênciaaos ensinamentos sobre a vacuidade, que compreendem perfeitamente. Eles veem claramente que nada pode existir de uma maneira impossível, incluindo maneiras impossíveis de ir e vir, algo que o grande mestre indiano, Nagarjuna, também apontou no verso de homenagem de Versos Raiz do Caminho do Meio:

Prostro-me ao Buda totalmente iluminado, o melhor de todos os professores, o que nos ensinou a originação dependente, o que é livre de fabricações mentais, pacificado, não tem fim, não tem surgimento, não pode ser aniquilado, não permanece, não vem e não vai, e não é vários ou um.

Podemos relacionar esse verso às nossas próprias emoções perturbadoras, e à todo o sofrimento e problemas por elas causados. Quando examinamos nossos problemas, percebemos que não existem como entidades inerentes e concretas. Eles não vêm e vão, feito bolas de ping pong lançadas na mente para causar problemas. Todos os nossos problemas e emoções perturbadoras surgem e perduram na dependência de causas e condições e, removendo as causas e condições, nos livramos deles. Se esses estados mentais perturbadores existissem de maneira sólida e independente, não poderíamos fazer nada a respeito deles. Qualquer coisa que tentássemos fazer não teria efeito, pois teriam surgido por conta própria e assim permaneceriam. Para sermos capazes de ajudar os outros seres, precisamos perceber que as emoções perturbadoras, e todos os demais fenômenos, são desprovidas de uma existência verdadeira, um ir e vir independentes.

Compreendendo isso, os gurus supremos e Avalokiteshvara esforçam-se apenas para beneficiar os seres sencientes. Nosso esforço em ajudar só será realmente eficaz quando tivermos essa compreensão da vacuidade, ou seja, da natureza da realidade. Se nossa compreensão de como as pessoas e seus problemas existem não estiver de acordo com a realidade, como poderemos efetivamente ajudá-las? Acabaremos por lhes causar ainda mais problema e confusão.

Quando o texto diz que se esforçam apenas para o benefício dos seres errantes, isso significa que ajudar os outros é seu único propósito. Eles não estão preocupados com seus objetivos egoístas, sua única intenção é trabalhar para o benefício dos demais. Por isso, referimo-nos aos gurus supremos, e não a qualquer guru, pois existem muitos professores espirituais que, apesar de ajudarem os outros, também estão buscando seus próprios objetivos egoístas.

Na frase: para o benefício dos seres errantes, “seres errantes” somos todos nós, muitas vezes também chamados de “seres sencientes”. Vagamos perdidos, de um renascimento repleto de sofrimento e problemas a outro. Trabalhar para o benefício desses seres significa ajudá-los a alcançar seu objetivo espiritual, seja ele a liberação ou a iluminação.

O segundo verso introdutório diz:

Os Budas totalmente iluminados, fonte de benefícios e felicidade, surgiram da realização do dharma sagrado. E mais, como isso aconteceu por eles conhecerem suas práticas, devo explicar a prática dos bodhisattvas.

Este é o verso onde o autor promete escrever, onde ele afirma que vai explicar. Isso é um padrão em qualquer texto indiano ou tibetano. Esse verso começa com budas totalmente iluminados, fonte de benefícios e felicidade, significando que, através de seus ensinamentos, os budas nos concedem o benefício de atingirmos a liberação de todo o sofrimento, ou a iluminação e a felicidade que a acompanha. Uma vez iluminados seremos capazes de beneficiar os demais.

Mas como os budas tornaram-se fonte de benefícios e felicidade? Realizando (efetivando) o dharma sagrado. Ao falarmos dharma sagrado, estamos nos referindo à Joia do Dharma, à terceira e quarta nobres verdades. A terceira nobre verdade, no contexto deste verso, refere-se ao verdadeiro cessar de todos os problemas e suas causas no continuum mental de um buda, e a quarta nobre verdade apresenta o verdadeiro caminho, ou o verdadeiro caminho mental. A compreensão da natureza da realidade age como caminho para esse verdadeiro cessar, e também resulta desse cessar. Aqui, estamos descrevendo um estado em que todo o sofrimento, os problemas, as emoções perturbadoras e as limitações são removidos. Além disso, todas as realizações são obtidas. Um buda totalmente iluminado efetivou tudo isso, ou seja, ele ou ela realmente fez isso acontecer em seu continuum mental.

Os budas não foram sempre iluminados, eram como nós. Trabalharam duro para remover toda a confusão, emoções perturbadoras e sofrimento que lhes obscurecia a mente. É crucial sabermos que essas “máculas efêmeras” são apenas como nuvens que obscurecem a mente. Elas não pertencem, de forma alguma, à natureza da mente, pois é possível removê-las completamente.

Claro, para compreendermos e nos convencermos de tudo isso, é necessário muito estudo e reflexão. Mas, realmente precisamos nos convencer de que é mesmo possível nos livrarmos de toda a confusão através da compreensão correta e, assim, nos liberarmos ou iluminarmos. Precisamos entender que não são só as outras pessoas que conseguem fazer isso, nós também somos capazes de desenvolver essa compreensão correta e sempre mantê-la. Todos nós podemos nos livrar da confusão de nossa mente e, como um buda, chegar a um verdadeiro cessar de tudo isso através da quarta nobre verdade, ou seja, do verdadeiro caminho mental.

Mas como o Buda conseguiu? Primeiro, o Buda descobriu e se informou (ouviu) sobre as práticas. Depois, as contemplou, ponderou e analisou, até entender correta e completamente e, por fim, meditou para integrá-las e efetivá-las. Conforme disse Togme Zanpo, é muito importante lembrarmos que o Buda só conseguiu tudo isso porque conheciam suas práticas. Precisamos aprender as práticas dos bodhisattvas, isto é, o que precisamos praticar para nos tornarmos budas. Uma vez que o estado búdico depende disso, Togme Zangpo explicará as práticas para que possamos aprendê-las. Assim, poderemos pensar a respeito delas, tentar compreendê-las, meditar e finalmente colocá-las em prática.

Uma Vida Humana Preciosa

Assim como no lam-rim, os ensinamentos sobre os estágios graduais do caminho, aqui, o autor também começa falando sobre como utilizarmos nossa vida humana preciosa, a base para atingirmos a liberação ou iluminação completa.

Assim, Togme Zangpo começa o primeiro dos 37 versos:

(1) A prática do bodhisattva é: agora que obtivemos essa excelente embarcação (o nascimento humano), com folgas e oportunidades e difícil de encontrar; escutar, pensar e meditar continuamente, dia e noite, para livrar a si e aos outros do oceano do samsara incontrolavelmente recorrente.

Se você está lendo isto, é porque obteve um renascimento humano precioso, algo a que Togme Zangpo considera uma excelente embarcação; termo que também é utilizado no texto Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva, de Shantideva.

(VII.14) Sentado no barco de um renascimento humano, atravesse o poderoso oceano do sofrimento! Uma vez que esse barco é tão difícil de encontrar, seu idiota, não é hora para dormir!

Assim como podemos usar um navio para cruzar o oceano, também podemos usar nosso nascimento humano como um navio para atravessar o oceano do samsara, rumo ao outro lado: a liberação. “Samsara” refere-se ao ciclo de renascimentos incontroláveis, repletos de problemas e confusão. Mas, o que caracteriza este grandioso navio que é o renascimento humano precioso? O conjunto de oito folgas e dez oportunidades.

A palavra “folga” quer dizer um descanso. Conforme explicava Geshe Ngawang Dhargyey, um de meus professores, é muito bom considerarmo-nos turistas em um curto renascimento humano, de férias dos renascimentos piores. Estamos de folga, mas sem dúvida voltaremos a esses estados piores. Não vou descrever a lista completa das oito folgas e dez oportunidades mas, de maneira geral, oportunidades são qualidades ou aspectos que enriquecem e proporcionam tremendas oportunidades à prática espiritual. Se tivéssemos nascido em estados piores (renascimentos inferiores), ou como humanos em lugares onde o dharma não estivesse disponível, ou onde as práticas espirituais fossem perseguidas, certamente não teríamos tempo ocioso para seguir um caminho espiritual. Se tivéssemos nascido uma barata, o que poderíamos fazer, uma vez todos que nos vissem provavelmente tentariam nos esmagar?

Nossa vida é cheia de oportunidades. Temos ensinamentos disponíveis, professores espirituais, livros, pessoas que sustentam os centros de dharma, e tantas outras coisas que nos permitem seguir um caminho espiritual. Esse tipo de situação é muito, muito difícil de encontrar. Comparado ao número de insetos e outros animas que existem neste mundo, sem falar dos seres de reinos que não podemos ver, o número de seres humanos é muito pequeno. E, mesmo entre humanos, quantos têm acesso ao dharma? Talvez esse número esteja crescendo com a internet, mas, ainda assim, entre os que têm acesso, quantos estão realmente interessados? Quantas pessoas olham um site de dharma mas saem logo em seguida? Quantos consideram o dharma importante o suficiente para dar-lhe um lugar central em suas vidas? Quantos realmente se esforçam para aprender, refletir e meditar? Muito poucos. A maioria das pessoas, mesmo quando se interessam, não dedicam o tempo necessário e também não dão a prioridade necessária.

A melhor forma de aproveitarmos essa vida humana preciosa, difícil de ser encontrada é escutando, pensando e meditando continuamente, dia e noite. Precisamos aprender o dharma, ou seja, ouvir e depois estudar. No começo, todos os ensinamentos eram transmitidos oralmente, nada era escrito, por isso ainda usamos o termo “ouvir o dharma” nos textos. No entanto, atualmente isso significa que devemos simplesmente ler e estudar. Precisamos aprender, é assim que tudo começa, pois conforme escreveu Togme Zangpo, para efetivarmos a prática do dharma, precisamos primeiro conhecer as práticas.

E não precisamos apenas aprender o dharma, precisamos certificarmo-nos da autenticidade e confiabilidade de sua fonte. Para não nos confundirmos e nos desviarmos do caminho, precisamos escolher muito bem quem irá nos ensinar e o que iremos estudar. É uma tarefa difícil, uma vez que existem muitos livros e professores que não são confiáveis. Sua Santidade o Dalai Lama sempre explica que, mesmo sem saber o que se passa na cabeça de um professor, podemos ao menos avaliar seu comportamento no nível convencional, ou seja, mundano. Podemos avaliar como ele ou ela age, relaciona-se com seus alunos e conduz sua vida. Um dos votos do bodhisattva é jamais fazer algo que leve as outras pessoas a perderem a fé no dharma. Portanto, se um professor agir de forma desprezível, estará quebrando seus votos de bodhisattva.

Também precisamos avaliar os livros e páginas da internet, pois nem todas são autênticas e têm boas traduções. Precisamos comparar os textos e ver se fazem sentido, além de pedir a opinião das pessoas em quem confiamos. Uma vez estabelecida a autenticidade de nossas fontes e professores, precisamos pensar a respeito do que nos foi ensinado, a fim de conseguirmos realmente entender. Isso não é uma tarefa rápida, leva tempo. Se tentarmos meditar a respeito de alguma coisa, mas sem a devida compreensão do assunto, cheios de dúvidas, só produziremos mais confusão.

This is why debating is a strong tool for learning in the Buddhist tradition; it is intended to prepare us for meditation, by clearing away any and all doubts about any particular topic. We are never going to challenge our own understanding very strongly ourselves, whereas other people will challenge it without relent, and that’s why debate with others is very important

Por isso o debate é uma ferramenta tão utilizada para o aprendizado na tradição budista. Seu objetivo é preparar-nos para a meditação, esclarecendo todas as nossas dúvidas sobre qualquer assunto. Nunca desafiaremos profundamente nosso próprio entendimento; mas os outros sim, desafiarão sem dó nem piedade. Por isso o debate é tão importante. Todos os alunos têm que debater; ninguém pode apenas sentar e dormir na aula. Em um debate no estilo tibetano, os pares de alunos debatem todos ao mesmo tempo, um ao lado do outro e falando bem alto. Isso os força a desenvolver concentração. Sem uma boa capacidade de concentração, é impossível debater no estilo tibetano. E, depois, podemos empregar essa concentração na meditação.

Durante um debate, é inevitável que um aluno diga uma estupidez e alguém ria. Isso é muito bem para superar o apego ao ego, o que também é de muita importância durante a meditação. Se meditarmos com o ego, pensando “Nossa, como eu medito bem!” ou “Olha, sou capaz de repetir isso cem mil vezes”, só estaremos alimentando-o, ao invés de nos livrar dele. Mesmo que não tenhamos a oportunidade de debater, precisamos sempre pensar e questionar o dharma. É muito importante que sempre o questionemos! O que eu percebi é que traduzir, escrever e transcrever textos são formas excelentes de pensar sobre os ensinamentos. Afinal, é necessário que se compreenda o texto para conseguir explicar ou traduzir.

Portanto, precisamos meditar. Meditar significa transformar uma compreensão em um hábito benéfico ou uma atitude mental, através da constante repetição. Quando aprendemos a tocar piano, precisamos praticar. Se praticarmos o suficiente, conseguiremos tocar naturalmente, sem ter que pensar onde fica cada nota. Da mesma forma, quando meditamos sobre o amor, a compaixão, a vacuidade e assim por diante, essas qualidades passam a se manifestar de forma espontânea.

Precisamos fazer isso continuamente, dia e noite, conforme enfatiza Togme Zangpo. Também podemos entender que palavra “continuamente” significa sem distrações mentais. Precisamos fazer isso dia e noite, ou seja, sempre que tivermos uma oportunidade de ouvir o dharma devemos aproveitá-la. Essa deve ser nossa principal prioridade. Não precisamos nos sentar formalmente em um lugar especial para pensar no dharma, podemos fazê-lo a qualquer hora e em qualquer lugar. No chuveiro, enquanto comemos, não importa, podemos sempre usar nosso tempo para pensar sobre algum aspecto do dharma. Obviamente, não podemos fazer isso em todos os momentos da nossa vida, não seria natural. O ponto que quero enfatizar é que não precisamos de uma sessão de meditação, de um quarto especial ou de uma decoração especial com toda a parafernália que acreditamos que um espaço de meditação tem que ter. Não precisamos de qualquer dessas coisas. Milarepa certamente não tinha tudo isso, e nem nós.

Não devemos limitar a meditação a algo que só deve ser feito na almofada de meditação. A fila do caixa e o engarrafamento também são ótimos lugares para meditar e praticar paciência. Muitas pessoas praticam as meditações budistas de amor e compaixão apenas com pessoas visualizadas, mas não são capazes de fazer com pessoas de verdade. Isso é um grande erro. Precisamos aplicar todos os bons hábitos, que tentamos desenvolver com a meditação, à situações reais, com pessoas reais, dia e noite, conforme nos aconselhou Togme Zangpo.

Qual o motivo ou objetivo de fazermos isso? Togme Zanpo diz que é para livrar a si e aos outros do oceano do samsara incontrolavelmente recorrente. Nos livrar do samsara significa buscar a liberação e a iluminação, a fim de conseguirmos livrar os demais seres do mesmo oceano. O palavra “oceano” nos conecta a outro termo que o autor usou no começo do texto: a grande embarcação que é a vida humana preciosa.

Aproveitando a Vida Humana Preciosa

Togme Zangpo continua, explicando as circunstâncias mais favoráveis para aproveitarmos nossa vida humana preciosa:

(2) A prática do bodhisattva é deixar sua terra natal, onde o apego aos amigos o deixa agitado como a água, a raiva aos inimigos o queima como o fogo e a ingenuidade, que o faz esquecer o que deve ser adotado e o que deve ser abandonado, o encobre com escuridão.

Quando permanecemos em nossa terra natal, no lugar onde crescemos — que pode ser nosso vilarejo, cidade ou país — nossos hábitos negativos e emoções perturbadoras costumam dominar as experiências e relacionamentos. Se possível, é aconselhável deixarmos a terra natal por um período, sairmos de um ambiente dominado por nossos hábitos negativos, para tentarmos ganhar uma perspectiva maior sobre a vida. Podemos ir para um centro de retiros, nos inscrever em um programa intensivo de estudo do dharma, viajar para a Índia ou Nepal, o que seja. São muitas as possibilidades.

Quando permanecemos na terra natal, o apego aos amigos nos deixa agitados como a água. Pense em uma folha que cai na água e pode ser levada para qualquer lugar. Da mesma forma, quando somos apegados a amigos que nos chamam para ir beber, por exemplo, simplesmente os seguimos, como folhas levadas pela água. Quando os amigos nos oferecem um cigarro ou bebida alcoólica aceitamos, por apego a eles. Não queremos desapontá-los, queremos que gostem de nós, que não pensem que somos esquisitos. Queremos pertencer, e não perder nossos amigos. Essas coisas acontecem, e nos impedem de “permanecermos em nossa base”, como dizem os tibetanos, referindo-se à prática do dharma.

A raiva aos inimigos nos queima como fogo. As pessoas que mais nos conhecem são as que mais nos irritam, não são? Principalmente quando não fazem o que queremos ou da maneira que queremos. “Meu amigo não ligou” ou mesmo “Meu carro não pegou”, esse tipo de coisa. Ficamos com raiva, pois temos expectativas em relação às pessoas e objetos familiares, achamos que têm que estar sempre à disposição e fazer o que queremos.

A terceira atitude venenosa, uma das desvantagem de permanecermos em nossa terra natal, é a ingenuidade. Ela nos faz esquecer o que devemos adotar e o que devemos abandonar, e nos encobre na escuridão. A frase “o que deve ser adotado e abandonado” refere-se às ações construtivas, que devem ser adotadas, e as negativas, que devem ser abandonadas. Quando estamos com amigos ou pessoas que nos irritam, tendemos a esquecer o que estamos tentando adotar, ou cultivar. Do que desejamos que nossa mente esteja livre? Raiva, apego, etc. Quando somos tomados pela ingenuidade, não sabemos o que faz bem e mal a nós e aos outros. Essa ingenuidade nos encobre com escuridão, é como se tivéssemos um saco na cabeça.

(3) A prática do bodhisattva é amparar-se na solitude. Ao se livrar dos objetos nocivos, as emoções e atitudes perturbadoras são gradualmente contidas; sem distrações, as práticas construtivas naturalmente aumentam; e adquirindo clareza de consciência, a confiança no dharma cresce.

Essa circunstância é a que mais contribui para aproveitarmos nossa vida humana preciosa. Quando deixamos a terra natal, devemos procurar viver em um lugar afastado e tranquilo. Se formos iniciantes, e deixarmos nossa terra para viver em uma cidade grande, agitada e barulhenta, isso não ajudará. Só quando estivermos muito bem treinados e formos bodhisattvas avançados é que podemos viver em uma cidade muito agitada e barulhenta. Aliás, esse era um dos treinamentos tradicionais na Índia, para quem alcançava um certo nível de estabilidade na prática. Nesse ponto, os yoguis iam literalmente “viver em uma encruzilhada”, em uma encruzilhada bem barulhenta. Esse era um grande desafio, que os ajudava a avaliar a estabilidade de sua prática e realizações. Mas isso é bem mais a frente. No começo, é importante vivermos afastados.

Esses dois versos lembram muito o que Shantideva escreveu em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva:

(VIII.37) Portanto, deixe-me viver em solitude, em adoráveis e encantadoras florestas, sem muitos problemas, feliz e contente, acalmando todas as distrações.
(VIII.38) Abandonando todas as outras intenções, com um único intuito, me esforçarei em estabelecer minha mente em absorção concentrada e domá-la.

Quando vivemos isolados, o que podemos esperar? Bom, livrando-nos de objetos nocivos, as emoções e atitudes perturbadoras são gradualmente contidas. Objetos nocivos são as coisas às quais temos muito apego ou que nos irritam muito. Também pode ser excesso de comida, álcool ou drogas, tudo o que nos deixa intoxicados e entorpecidos. Livrarmo-nos das coisas que fazem com que as emoções perturbadoras surjam, mesmo não sendo uma solução definitiva, ajuda. As emoções e atitudes perturbadoras começam a ser bloqueadas e gradualmente diminuem.

Acho que sabemos disso por experiência própria. Se decidirmos nos divorciar mas tivermos que ver o(a) ex todos os dias, será muito difícil. A raiva e as emoções perturbadoras surgirão o tempo todo. No entanto, se deixarmos de vê-lo(a) por um longo tempo, lentamente a força de nossa raiva e maus sentimento diminuirá, não é? O mesmo se aplica ao apego a alguém que nos deixa. Se tivermos de ver a pessoa o tempo todo, o apego e a mágoa permanecerão ali, mas com a distância, gradualmente se dissolvem.

Quais serão as outras vantagens do isolamento? Togme Zangpo diz que ao nos livrarmos das distrações, nossas práticas construtivas naturalmente aumentam. Se nos livrarmos totalmente do e-mail, celular, filmes, entretenimento, clube, festas e televisão, não teremos distrações. Naturalmente, usaremos nosso tempo de forma mais construtiva. Esse é o nosso objetivo ao buscar o isolamento. E o mesmo se aplica à música. Existem muitas pessoas que são totalmente viciadas em música, que andam por aí com seus iPods e acham difícil ficar sem música, mesmo que por uns instantes. O que isso faz é basicamente nos impedir de pensar unifocadamente em qualquer coisa que seja. Mas, sem essas distrações, temos a oportunidade de realmente encarar nossa mente e tentar entender o que se passa.

Também é engraçado olharmos esse inacreditável fenômeno que é o uso ininterrupto do celular. Sempre que vejo as pessoas sentadas no ônibus ou trem, fica claro que a maioria não consegue ficar sentada sem distrações. Todas estão brincando com seus celulares ou outros aparatos eletrônicos. É muito esquisito. Se nos livrarmos dessas distrações, nossas práticas construtivas aumentarão naturalmente, pois teremos mais tempo.

A última frase é: Adquirindo clareza de consciência, a confiança no dharma cresce. Quando estamos isolados, nossa consciência e compreensão ficam mais claras, pois estamos longe dessas distrações e objetos prejudiciais. Com mais tempo e menos distração, somos capazes de examinar nossas dúvidas e realmente focar no dharma. Então, nossa certeza e confiança cresce. Vale muito a pena.

No entanto, é preciso saber que apenas deixar a terra natal e isolar-se não é garantia de que as emoções perturbadoras e distrações diminuirão. Podemos ficar muito apegados a pequenas coisas, como nossa almofada de meditação, por exemplo, ou irritados com um simples mosquito ou, se nosso retiro for em grupo, com as pessoas que tossem e se mexem durante a meditação. Apesar de ser mais provável que as emoções perturbadoras diminuam nesse tipo de ambiente, onde os objetos, que normalmente as estimulam, estão ausentes, não devemos contar apenas com o isolamento. Para garantir que não vamos sucumbir às emoções perturbadoras, contemplamos a morte e a impermanência.

Morte e Impermanência

(4) A prática de um bodhisattva é desistir de se preocupar exclusivamente com a vida atual. Amigos e parentes, que estão há muito tempo juntos, irão cada qual para o seu lado; riqueza e posses adquiridas com esforço terão que ser deixadas para trás; e a consciência, o hóspede, deve partir do corpo, sua hospedaria.

Temos esse renascimento humano precioso e devemos tentar aproveitá-lo ao máximo. Como? Para começar, precisamos pensar além da vida atual. Mesmo que nos retiremos para um lugar isolado, podemos continuar a pensar e nos preocupar com os amigos e posses, além de várias outras coisas. Togme Zangpo diz que precisamos nos livrar de qualquer preocupação com esta vida, o que significa desistir de se preocupar exclusivamente com a vida atual. Conforme explica Sua Santidade o Dalai Lama, não seria realista, e provavelmente seria impossível, dizermos que estamos 100% desprovidos de preocupações com esta vida. Afinal, precisamos nos sustentar e, se tivermos família, sutentá-la também. O melhor, segundo Sua Santidade, é 50/50. 50% de preocupação direcionada a coisas mundanos, desta vida, e 50% direcionada aos objetivos espirituais além desta vida.

Uma maneira de conseguirmos parar de nos preocupar exclusivamente com esta vida é pensar que nossos amigos e parentes, que estão há muito tempo juntos, irão cada qual para o seu lado. Quando pensamos sobre a impermanência, isso é tão verdadeiro! No texto Treinamento, em Verso, em Meditação e Impermanência, o grande mestre tibetano, Gungtang Rinpoche, ilustra esse ponto belíssimamente.

(11) Amigos, parentes, assistentes e seguidores são como folhas que terminam caindo no mesmo lugar depois de um forte vento. Após um breve momento, espalham-se por toda montanha e vale. O fim de tudo aquilo que se junta é jamais juntar-se novamente.

Nós, e todos os nossos entes queridos, somos como folhas que caíram de uma árvore e foram varridas pelo vento. Por um curto período de tempo, viajamos juntos, com o vento do karma, mas eventualmente o vento faz com que as folhas se espalhem, voando em diferentes direções.

Riqueza e posses, adquiridas com esforço, terão que ser deixadas para trás. Quando morremos, não podemos levar coisa alguma. Aqueles que têm pais ou parentes falecidos devem ter percebido que, depois que morrem, seus pertences, mesmo os que mais gostavam, frequentemente acabam no lixo. Se tivermos dinheiro, o que pode acontecer é nossos parentes virarem inimigos e brigarem por ele. Lógico que não faz muito sentido direcionarmos todo nosso esforço para obter dinheiro e posses que simplesmente irão para o lixo ou causarão discórdia. Shantideva coloca isso muito bem:

(III.11cd) Considerando-se que inevitavelmente teremos que doar [nossos bens, quando morrermos], é melhor doá-los [agora] para os seres sencientes.

Antes de morrer, enquanto ainda temos tempo, precisamos doar todas as nossas posses para aqueles que realmente precisarão delas.

Percebi isso com meu próprio professor, Serkong Rinpoche. Ele parecia estar bem ciente de quando morreria e, antes de falecer, doou uma enorme quantidade de bens. Doou seus livros, por exemplo, entre eles a coleção dos trabalhos de Tsongkhapa, para um monastério. Também doou seus objetos ritualísticos mais preciosos. Claramente seguiu este conselho de que riqueza e posses, adquiridas com esforço, devem ser deixadas para trás.

Então vem a última linha, que diz que a consciência, o hóspede, deve partir do corpo, sua hospedaria. Shantideva usou a mesma analogia:

(VIII.33) Assim como os que viajam pelas estradas abrigam-se em algum lugar, os que viajam pelas estradas da existência compulsiva abrigam-se em um novo renascimento.

Os dois versos precisam ser adequadamente entendidos. Não estamos falando aqui do “eu sólido”, esse “eu” que parece estar sentado dentro do corpo, como uma entidade que o habita, utiliza, aproveita e depois que terminou cai fora. Estamos dizendo que os impulsos kármicos de nosso continuum mental farão com que tomemos, como base física, diferentes tipos de corpos em diferentes vidas, e que este corpo em particular, o corpo desta vida, é apenas temporário. Shantideva fala muito nisso quando trata da superação do apego ao corpo.

Depois de morrermos, por exemplo, se mantiverem nosso corpo por alguns dias, ninguém irá querê-lo por perto, pois começará a apodrecer e cheirar mal. Todos irão querer se livrar dele, então o que há de tão maravilhoso nesse corpo? Não são só os nossos pertences que vão para o lixo, nosso corpo também. Este corpo, ao qual temos tanto apreço, também irá para o lixo. As pessoas vão querer enterrá-lo ou queimá-lo o quanto antes, como lixo. Isso é a realidade. Não é muito glamorosa ou romântica, mas é assim! Como disse Shantideva:

(VIII.29) Quando no cemitério, devo comparar meu corpo com as outras pilhas de ossos, e ver que a decomposição também está em sua natureza.
(VIII.30) Este meu corpo também apodrecerá e, por cheirar mal, nem mesmos os chacais vão querer se aproximar.

Quando nos conscientizarmos de nossa vida humana preciosa, e de que nosso corpo, posses, família e amigos são todos temporários, deixaremos de nos preocupar exclusivamente com eles. Assim, poderemos aproveitar a oportunidade que nos foi dada, essa vida humana preciosa, e fazer o que for preciso para facilitar nosso estudo e prática do dharma.

Top