Revisão
Vimos que Togme Zangpo começa seu poema apresentando os pontos principais do lam-rim, os estágios graduais do caminho. Após prestar homenagem a Avalokiteshvara, e prometer escrever o texto, ele fala da importância da vida humana preciosa e da necessidade de a aproveitarmos. Em seguida, mostra-nos que encontramos circunstâncias mais propícias à prática ao deixarmos a terra natal e nos refugiarmos em um lugar afastado. Além disso, ele fala da urgência em aproveitarmos nossa vida humana preciosa, pois ela não durará muito tempo. E, por fim, nos convida a refletir sobre a morte e a impermanência como meio de nos conscientizarmos dessa urgência.
A Importância de Termos Amigos Adequados
Chegamos ao verso 5, que fala sobre importância dos amigos adequados. É muito importante termos um apoio adequado à prática do dharma. Por isso, temos que perceber quais amigos são más influências, as “amizades destrutivas”, e quais podem nos ajudar no caminho espiritual.
(5) A prática de um bodhisattva é livrar-se das amizades destrutivas, com quem as três emoções venenosas crescem, as ações de escutar, pensar e meditar deterioram-se, e o amor e compaixão tornam-se nulos.
Amizades destrutivas, ou más influências, são basicamente as pessoas que, apesar de terem a melhor das intenções, nos afastam da prática do dharma. Ficam dizendo “Vem se divertir” ou “Porque perder tempo com prostrações, meditação e palestras sobre dharma?” Não são más pessoas, sua intenção é boa, mas não apreciam ou dão valor ao que estamos fazendo, ao caminho espiritual. Às vezes, até ridicularizam nosso caminho esperando que nos afastemos dele.
Conforme nos diz Togme Zangpo, com quem nos associamos a eles, as três emoções venenosas crescem. Esses amigos fortalecem nossa primeira emoção venenosa, que pode vir a aparecer na forma de desejo e apego por sair, beber, intoxicar-se, participar de diferentes tipos de entretenimento e assim por diante. É claro que, de vez em quando, precisamos relaxar e nos divertir. Mas alguém que nos encoraja a fazer isso o tempo todo, nos deixando sem tempo para o caminho espiritual, não pode ser uma boa influência.
Tenho um aluno que costuma se drogar e divide o apartamento com uma pessoa que tem o mesmo costume. Tentou parar diversas vezes, mas não conseguia, porque seu amigo estava sempre fumando e o encorajando a fazer o mesmo. Ele voltava a fumar porque não queria que seu amigo se sentisse rejeitado.
Portanto, é muito importante escolhermos bem os amigos, especialmente se formos passar muito tempo com eles. Por exemplo, se sairmos juntos e eles acabarem irritando-se e brigando com alguém, é muito provável que os sigamos e, com isso, acabemos reforçando a segunda das emoções venenosas, a raiva. E talvez reforcemos também a terceira emoção venenosa, a ingenuidade. Ao segui-los, esquecendo as consequências de nosso comportamento, agimos com ingenuidade. Consequentemente, as ações de escutar, pensar e meditar se deterioram. Teremos cada vez menos tempo para ir aos ensinamentos, estudar, contemplar e meditar, e nosso amor e compaixão se tornarão nulos.
Existem muitos tipos más influências. Por exemplo, existem amigos que nos levam a pichar paredes, arranhar automóveis, etc. Há também os que estão sempre falando mal dos outros, o que pode nos levar a fazer o mesmo. Quando costumamos conversar com alguém que está sempre falando de política de forma exaltada e com raiva, tendemos a agir da mesma forma.
Os amigos são cruciais, especialmente quando nossa prática do dharma ainda não está muito bem estabelecida. Se tivermos amigos como esses, precisamos nos livrar deles. Mas isso não quer dizer que os queiramos mal. Desejamos que sejam felizes, mas não precisamos sair com eles.
Essa questão complica-se quando somos casados com alguém que consideramos uma má influência e fica pior se tivermos crianças. Não é uma situação fácil. Nesse caso, precisaremos decidir o que é melhor: continuar no relacionamento ou sair. Se decidirmos sair, o mais importante é tentar fazê-lo de forma que ninguém se machuque, sem raiva. E mesmo que nosso parceiro termine sentindo raiva ou ressentimento, devemos tentar não retribuir esses sentimentos.
No entanto, acho importante ao menos tentem permanecer no relacionamento. Nem sempre conseguirão, mas podem tentar explicar ao parceiro que seu envolvimento com as atividades do dharma não significa que esteja rejeitando-o. Porém, se passarem a maior parte do tempo brigando e gritando, talvez seja melhor reconsiderar. Não é simples. E se as crianças culparem o dharma pela separação dos pais? Podem ficar com uma impressão muito negativa do dharma. Precisamos ter cuidado.
Se acabarem discutindo com o parceiro por conta do tempo que se dedicam ao dharma, é melhor, se possível, tentarem desvincular o budismo da discussão. Não é bom que a outra pessoa desenvolva uma atitude negativa com o dharma, o que também pode ter um efeito bastante negativo nas crianças. A questão não é o tipo de ensinamento que estamos seguindo, mas sim a diferença de valores e a importância que damos ao caminho espiritual. O fato de sermos budistas, hinduístas ou qualquer outra religião ocidental é indiferente. Não é essa a base da discórdia.
(6) A prática de um bodhisattva é ter mais apreço por seu venerado mestre espiritual do que por seu próprio corpo pois, ao confiarmos [nosso desenvolvimento] ao santo mestre, nossos defeitos definham e as boas qualidades se expandem como uma lua crescente.
A palavra que é traduzida como mestre espiritual significa literalmente “amigo espiritual”, alguém que seja o oposto de uma má influência. Na verdade, a palavra “espiritual” nem está no texto original. O termo usado é “um amigo para o comportamento construtivo”, onde a palavra “construtivo” é por vezes traduzida como “virtuoso”, e significa um amigo que faz com que nosso comportamento construtivo cresça cada vez mais. É um relacionamento construtivo, pois o amigo é construtivo e ficamos cada vez mais construtivos e positivos ao nos associarmos a ele.
Normalmente, esse amigo é o professor espiritual que nos conduz no caminho, que nos ensina e nos inspira a agir de forma construtiva, de acordo com o dharma. No entanto, acho que também devemos incluir nossos amigos comuns do dharma. Aqueles amigos que, por exemplo, nos convidam para meditar ou estudar e discutir um determinado tópico do dharma, que nos encorajam a fazer um trabalho voluntário, a ajudar um hospital ou algo do gênero. Não são os amigos que vão ao centro, assistem uma aula e depois vão tomar cerveja.
Agora, em qualquer tipo de amizade é preciso haver uma conexão kármica, para que nos sintamos confortáveis na presença da outra pessoa. Existem pessoas que chegam e nos convidam “vamos meditar?” ou “vamos fazer prostrações?” e, não sei porque, parece estranho. Talvez tenhamos a impressão de que eles se consideram “muito espirituais” e isso nos deixe desconfortáveis. Um verdadeiro amigo espiritual é alguém com quem nos sentimos confortáveis e relaxados, com quem as coisas fluem naturalmente e é ótimo quando fazemos coisas construtivas juntos.
Mas a ênfase neste verso é mesmo para o mestre ou mentor espiritual. E, aqui, é bom nos lembrarmos do que Sua Santidade o Dalai Lama costuma dizer, que não devemos nos basear apenas no nome do professor. Existem vários professores com muitos títulos e discípulos, mas não significa que sejam qualificados; precisamos sempre analisar a qualificação do professor. Sua Santidade refere-se principalmente ao caso dos tulkus, ou seja, lamas reincarnados que carregam o título de Rinpoche. Existem vários que, lógicamente, são muito famosos por conta de seu predecessor, mas não realizam muitos estudos e práticas nesta vida. E, mesmo quando o professor é bastante qualificado, não significa que seja o professor ideal para nós. De novo, precisamos avaliar o tipo de relacionamento kármico que temos com ele ou ela.
Será que nos sentimos confortáveis em sua presença? Afinal, ensinamentos podem ser obtidos em livros. Claro que o professor pode responder perguntas, por exemplo, mas seu papel principal é inspirar-nos. Atualmente, a maioria dos grandes mestres espirituais viaja com frequência e tem muitos alunos, o que faz com que seja difícil obtermos atenção personalizada. Devemos nos esforçar para estabelecer um relacionamento próximo, mas mesmo que não consigamos, ainda assim o mestre pode nos inspirar. E não devemos simplesmente esperar o guru cair do céu. É totalmente improvável que apareça um dizendo “Venha meu querido. Estava lhe esperando. Venha comigo.”
Quando nos associamos a um santo mestre, diz Togme Zangpo, nossos defeitos definham. Aqui, a palavra “santo” significa apenas alguém que é muito respeitado, e o termo “confiar-se” é muito importante, mas de difícil compreensão. Em geral, esse termo é traduzido como “devotar-se”, devotar-se ao guru, mas acho que a palavra devoção pode causar muitos equívocos, pois, pelo menos no inglês, significa basicamente adorar cegamente o professor. O termo original é um verbo utilizado não só com professores espirituais, mas também com médicos. Quer dizer que confiamo-nos aos seus cuidados. Ou seja, que confiamos neles porque examinamos suas qualificações e sentimos que são competentes e podem nos ajudar. Quando estamos doentes e confiamos no médico, confiamo-nos a ele e aos seus cuidados, fazemos tudo o que ele manda. O mesmo se aplica ao professor espiritual. E assim como não veneramos o médico, também não veneramos o professor.
É uma situação delicada, pois, frequentemente, muitas emoções afloram no relacionamento com o professor espiritual e, apesar de o amarmos muito, não significa que temos que nos apaixonar por ele ou ela. Quando o relacionamento é saudável, sentimo-nos revigorados e nossa mente fica livre de emoções destrutivas, o que é muito interessante. As emoções ficam mais claras e as emoções destrutivas se acalmam, como barro assentando-se na água, e nosso estado emocional deixa de ser obscuro. Mas não devemos nos apegar ao professor por causa disso. Não temos que sentir desejo ou que precisamos desesperadamente dele. Não temos que sentir ciúmes de seus outros alunos ou ficarmos bravos e desapontados quando ele não tem tempo para nós. E não devemos ser ingênuos ao ponto de achar que o professor é um deus, que nunca precisa de descanso ou conforto.
Como diz o texto, nossos defeitos definham. As emoções perturbadoras se acalmam e, aos seguirmos seus ensinamentos, nossos defeitos vão lentamente definhando. Claro que tudo isso depende do nosso grau de maturidade ao conhecermos o professor. Não devemos achar que logo no começo ele fará uma mágica e nossas emoções perturbadoras se acalmarão. O esforço deve ser nosso, e isso depende de nossa maturidade em estabelecer um relacionamento saudável com ele. Um relacionamento doentio pode ter muitas consequências desagradáveis.
A última linha diz que as nossas boas qualidades se expandem como uma lua crescente. Quando convivemos com o professor, realmente começamos a desenvolver boas qualidades. Nossa personalidade melhora ao ajudarmos, sermos generosos e assim por diante. Nossa boas qualidades crescem. A medida que seguimos seus ensinamentos, nosso amor, compaixão e compreensão naturalmente aumentam.
No que diz respeito aos professores espirituais, o texto diz para ter mais apreço por seu venerado mestre espiritual do que por seu próprio corpo. Mas o que isso significa? Em um certo nível, significa que devemos nos preocupar mais com o conforto do mestre do que com o nosso. Devemos estar dispostos a ajudá-lo e, principalmente, ajudá-lo a ajudar os outros, mesmo que estejamos cansados e isso não nos for conveniente. No meu caso, com meu professor Serkong Rinpoche, isso significava ir frequentemente de Dharamsala para Delhi a fim de pegar todos os vistos para suas viagens.
Direção Segura (Refúgio)
No verso 7, Togme Zangpo descreve como podemos aproveitar a vida humana preciosa. No âmbito inicial de motivação do lam-rim, nosso objetivo é melhorar as vidas futuras, mas primeiro precisamos dar uma direção segura à esta vida, o que também é chamado de tomar refúgio. Essa é a base para todos os níveis da prática budista.
(7) A prática de um bodhisattva é tomar a direção segura das Joias Supremas, buscando a proteção daqueles que nunca nos enganarão — afinal, a quem os deuses mundanos podem proteger, se eles mesmos ainda estão confinados na prisão do samsara?
Prefiro usa o termo “direção segura” ao invés de “refúgio” pois refúgio me parece um tanto passivo. Quando tomamos refúgio, parece que estamos recebendo algo, e não é o caso. Na verdade, para darmos uma direção segura à nossa vida, precisamos agir. E a direção segura é indicada pelas Três Jóias. Ao pensar nas Três Jóias, ou nas Três Raras e Supremas Jóias, pensamos no Buda, no dharma e na sangha.
Nosso principal objetivo é o dharma. A verdadeira Jóia do Dharma combina a terceira e a quarta nobres verdades no continuum mental de qualquer ser altamente realizado, de um arya a um buda. É isso que nos dá a direção segura. Um arya alcançou parcialmente, e um buda alcançou totalmente, o estado mental livre de obscurecimentos, emoções perturbadoras e falta de consciência (ignorância). Esse é o verdadeiro cessar, a terceira nobre verdade. E a quarta nobre verdade nos apresenta o verdadeiro caminho mental que conduz à liberação ou iluminação. Esses estados mentais são a compreensão da quarta nobre verdade, mais especificamente, a vacuidade. Eles geram o verdadeiro cessar, mas também são o resultado do verdadeiro cessar. É para essa direção que queremos ir. Queremos alcançar esse verdadeiro caminho e o verdadeiro cessar. Essa é a direção segura que tomamos.
Na verdade, a sangha não refere-se aos membros de um centro de dharma; essa é uma utilização ocidental do termo. A Jóia da Sangha refere-se aos aryas, ou seja, àqueles que têm uma cognição não conceitual da vacuidade e, portanto, alcançaram, mesmo que parcialmente, o verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho mental. Não importa se são monásticos ou leigos.
As Três Jóias causais são o Buda, o dharma e a sangha, conforme explicamos anteriormente. São aqueles que alcançaram o verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho mental, e cujas atitudes são a causa de nossa inspiração de seguir essa direção segura. Mas também podemos tomar o que chamamos de “direção resultante”, que é a mesma direção segura das Três Jóias, mas refere-se àquilo que nós próprios obteremos quando nos tornarmos um arya e depois um buda.
Quando Togme Zangpo afirma que devemos buscar a proteção daqueles que nunca nos enganarão, refere-se às Três Jóias. As Três Jóias nunca nos enganam. Mas como será que nos protegem? De novo, a ênfase aqui não deve estar em um ser todo poderoso que protegerá, contanto que estejamos abertos e nos rendamos à sua proteção, e então estaremos salvos. Devemos trabalhar para atingir esse verdadeiro cessar e verdadeiro caminho mental e, só então, estaremos protegidos do sofrimento. Em outras palavras, no final, somos nós que nos protegemos. Nunca seremos enganados, pois, se alcançarmos o verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho mental, como os budas e aryas, esses estados mentais nos protegerão do sofrimento. Nos livraremos para sempre das causas do sofrimento.
Por outro lado, o deuses mundanos não podem nos oferecer esse tipo de ajuda. O texto questiona: a quem os deuses mundanos podem proteger quando eles mesmos ainda estão confinados na prisão do samsara? Os deuses mundanos — ou mesmo o deus mundano moderno, o dinheiro — não conseguem nos proteger de coisa alguma. Percebemos que pessoas ricas às vezes sofrem mais conforme vão ficando mais ricas. Ficam muito preocupadas com a maneira como devem investir seu dinheiro e com os impostos, além de ficarem com medo de serem roubadas. E mais, suspeitam que as pessoas gostem delas apenas pelo seu dinheiro. É impressionante a quantidade de pessoas muito ricas que são muito infelizes. É lógico que os deuses mundanos não conseguem nos proteger, afinal, ainda estão confinados na prisão do samsara. Eles estão confinados e conectados por toda sorte de emoções perturbadoras e fazem nossas emoções perturbadoras aumentarem.
No âmbito inicial de motivação do lam-rim, nosso principal objetivo é melhorar as vidas futuras. Não é que queiramos ir para o céu ou coisa parecida. O que queremos é continuar a ter nascimentos humanos preciosos até atingirmos a liberação ou iluminação. Diz-se que aquilo que separa uma pessoa espiritualizada de outra qualquer é que ela está trabalhando para as vidas futuras. Isso as diferencia em termos de dharma, mas outras religiões também ensinam que devemos trabalhar para o pós-vida, para renascer no paraíso. A existência além desta vida não é exclusividade budista, só passa a ser quando a colocamos no contexto da direção segura.
O que visamos é a liberação e iluminação, ou, para ser mais preciso, o verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho mental. Queremos continuar tendo uma vida humana preciosa como base para atingirmos a liberação e iluminação. Não é só praticar para ir para o céu. A menos que tenhamos essa motivação inicial, não podemos considerar que nosso desejo pela iluminação seja sincero, pois é muito improvável que consigamos nos iluminar em apenas uma vida. Levará muito tempo. Portanto, precisamos de muitas vidas humanas preciosas.
Para que possamos trabalhar com o objetivo de obter uma vida humana preciosa, é óbvio que precisamos acreditar em renascimentos, caso contrário, como poderíamos querer a liberação dos renascimentos? E uma vez que queremos a liberação do ciclo de renascimentos incontroláveis, precisamos trabalhar duro para compreender os ensinamentos budistas sobre renascimento. Eles não são simples; pelo contrário, são muito sofisticados. Tudo depende de entendermos como o “eu” existe e o funcionamento da causa e efeito. Sem uma certa compreensão da vacuidade do “eu” e do sistema de causa e efeito, fica muito difícil entender os ensinamentos budistas sobre renascimento.
Evitando o Comportamento Destrutivo
Para nos assegurarmos de que nossas vidas futuras serão humanas e preciosas, precisamos prestar atenção nas causas e efeitos, especialmente no que diz respeito ao nosso comportamento. Togme Zangpo fala sobre evitarmos comportamentos negativos:
(8) A prática de um bodhisattva é nunca cometer qualquer ação negativa, mesmo que isso lhe custe a vida, pois O Sábio declarou que os sofrimentos extremamente difíceis de suportar, dos renascimentos em estados piores, são o resultado de ações negativas.
Este verso é sobre o karma, que logicamente é um tópico muito complexo. Mas aqui podemos generalizar: Quando agimos destrutivamente, geramos infelicidade e, quando agimos construtivamente, geramos felicidade. Para ser mais específico, o que precisamos fazer para assegurarmo-nos de que não teremos renascimentos piores é evitar agir de forma destrutiva. Agir de forma destrutiva gera muita força negativa no continuum mental e essa força, ou potencial, nos leva a renascimento piores, dos quais é difícil escapar.
Mas o que queremos dizer com ações negativas, ou destrutivas? O que seria o oposto disso? O que seria construtivo? Costuma-se explicar que comportar-se construtivamente significa abster-se de comportar-se destrutivamente. Mas precisamos compreender muito bem o que é isso. Por exemplo, podemos detestar caçar e pescar e, por isso, nunca praticar essas atividades. No entanto, o fato de não participarmos de uma caçada ou pescaria não significa, necessariamente, que estamos nos abstendo de uma ação destrutiva, mesmo que realmente não estejamos agindo dessa forma. Um exemplo que ilustra bem o que é abster-se de uma ação destrutiva é o exemplo do mosquito. Quando um mosquito fica voando perto da gente, nossa vontade é de matá-lo, mas nos abstemos, pois queremos evitar a consequências kármicas. Pensamos na força negativa que geraríamos ao responder dessa forma — querendo destruir — a algo que nos incomoda. O comportamento construtivo seria abster-se de matar e buscar uma forma mais pacífica de tirar o mosquito do quarto.
Acho que dá pra entender que esse último comportamento construtivo é bem mais difícil que o primeiro. Podemos usar um outro exemplo: digamos que alguém nos ofereça um tipo de bolo que não gostamos. Não seria necessário esforço algum de nossa parte para não comê-lo, afinal, não gostamos mesmo. Entretanto, se nos oferecessem um bolo que gostamos, nosso bolo favorito, seria muito mais difícil não comê-lo, mas também seria muito mais construtivo.
Portanto, comportar-se construtivamente é abster-se de agir negativamente quando nossa vontade é de agir assim, quando esse é nosso hábito ou tendência. E o motivo para não agirmos é a consciência das consequências kármicas, de nossa experiência futura, e não apenas porque “eu quero ser um bom budista”. Nos abstemos de agir negativamente por pensarmos nas consequências de uma determinada ação em nossa experiência futura.
Frequentemente lemos frases como esta: nunca cometer qualquer ação negativa, mesmo que isso lhe custe a vida. O que posso dizer é que é difícil aceitarmos isso! Pensando bem, quantos de nós já nos encontramos nesse tipo de situação? Eu moro na Alemanha, e às vezes pergunto aos meus amigos alemães: Como será que agiríamos se tivéssemos que nos alistar no exército de Hitler pois, caso contrário, nos matariam? O que você faria? Essa seria realmente uma questão de vida ou morte. Na época da guerra do Vietnam, os americanos que não queriam se alistar fugiam para o Canadá, mas na Alemanha nazista, se você não se alistasse era morto. O que você faria? Temos que pensar muito seriamente nisso quando dizemos “mesmo que isso nos custe a vida” . É um ideal maravilhoso, mas será que conseguiríamos seguí-lo? Eu não sei.
Algumas pessoas tiveram a sorte de serem enviadas para a cozinha ao se alistarem, para serem cozinheiros. Os nazistas precisavam de gente para cozinhar, lavar roupa e coisas do gênero. Mas, e se lhe mandassem para o campo de batalha? Bom, um soldado nem sempre atira bem, você poderia errar os tiros. Mas, e se aqueles que estivessem atirando em você acertassem? De novo, apesar do ideal ser muito nobre, temos que realmente nos questionar para saber se conseguiríamos evitar ações altamente destrutivas caso nos custasse a vida. Ou seja, se estaríamos dispostos a sacrificar nossa própria vida. Seria uma conquista e tanto.
Certamente existem pessoas dispostas a morrer ou serem torturadas por seus princípios. Penso nos vários monges e monjas do Tibete, que se dispuseram a serem torturados por 20 ou 30 anos em campos de concentração para não delatar Sua Santidade o Dalai Lama. É mais ou menos isso a que nos referimos aqui. Será que temos a força e os princípios para agir assim? Essa é uma pergunta que, como se diz aqui no ocidente, requer uma “busca profunda na alma”!
Trabalhando para a Liberação
O nono verso nos leva ao nível intermediário de motivação do lam-rim, que é trabalhar para atingir a liberação:
(9) A prática de um bodhisattva é interessar-se pelo estado supremo e imperturbável da liberação, uma vez que os prazeres dos três planos de existência compulsiva são fenômenos que perecem em um mero instante, como o orvalho nas pontas das folhas de grama.
O termo “existência compulsiva” refere-se ao samsara: a existência contínua através de renascimentos incontrolavelmente recorrentes e compulsivos. Existem três planos onde podemos nascer: (1) o plano dos objetos sensoriais desejáveis (2) o plano das formas etéreas, ou seja, muito sutis, e (3) o planos dos seres sem forma, seres que não tem um corpo grosseiro e que permanecem em estados meditativos muito profundos.
Para a maioria de nós, é difícil pensar sobre todos esses planos de existência e os diferentes renascimentos que podemos ter. Temos dificuldade em compreender a existência de seres presos em reinos onde não existe nenhum tipo alegria, como os seres dos infernos e os fantasmas famintos. Existem também os reinos das criaturas rastejantes, os animais, dos seres divinos ou celestiais, os deuses, e dos pré-deuses ou quase deuses, os assim chamados “anti-deuses”, que são invejosos, briguentos e querem ser deuses. Acho que uma forma de entender um pouquinho melhor isso tudo é pensar no espectro de experiências que podemos ter.
Por exemplo, no que diz respeito à visão, nós, humanos, só conseguimos ver uma determinada faixa do espectro de luz. Não conseguimos ver o ultravioleta e o infravermelho. Mas pode ser que existam outras formas de vida que conseguem. Por exemplo, muitos animais conseguem ver no escuro. Os cachorros conseguem escutar muito mais sons do que nós. Por analogia, se olharmos o espectro de felicidade e infelicidade, prazer e dor, vemos que os seres humanos ficam inconscientes quando a dor atinge um determinado nível. E quando o prazer atinge um determinado nível, acabamos com ele, como no caso do prazer supremo do orgasmo. Corremos para obtê-lo mas, basicamente, isso o destrói ou dá um fim a ele. Quando investigamos uma coceira, quando realmente a analisamos, objetivamente, percebemos que na verdade é um prazer e não uma dor. É um prazer muito intenso, é prazer demais, e por ser tão intenso, coçamos. Temos que destruí-lo.
Se existem formas de vida capazes de experimentar diferentes partes do espectro de luz e som, porque não haveria de existir formas de vida capazes de experimentar níveis maiores de prazer e dor, ou felicidade e infelicidade? No nosso caso, é apenas uma questão da forma que tomaremos em nosso renascimento futuro, isso determinará qual parte desse espectro poderemos experimentar. E o que importa não é onde essas formas de vida estão ou qual é a sua aparência, isso não tem tanta importância, é trivial. O importante é não reduzi-las a estados psicológicos humanos, e perceber que a mente é capaz de experimentar uma escala muito mais ampla de prazer e dor, e felicidade e tristeza, do que nosso aparato humano permite.
O importante é que queremos nos liberar disso, pois, independente da faixa de prazer e dor, ou felicidade e infelicidade, que sejamos capazes de experimentar, não dura. Essas experiências e formas de vida surgem da confusão e só geram mais confusão, a não ser que sejamos um arhat. Por conta dessa natureza autoperpetuadora do samsara, nossa experiência de prazer e dor, felicidade e infelicidade, aumenta e diminui constantemente, e não temos a mínima ideia do que virá a seguir. Nosso objetivo é o estado inalterável da liberação, um estado que não se altera. Então, teremos sempre a felicidade que não é misturada com confusão, que não aumenta nem diminui.
A percepção de que todos os prazeres a que temos acesso nesses três planos existenciais são fenômenos que perecem em um mero instante, como o orvalho nas pontas das folha de grama, nos ajuda a almejar a iluminação. Os prazeres nunca duram, nunca sabemos o que vem depois, e nada nos satisfaz verdadeiramente. Para atingirmos a liberação, precisamos nos livrar dessa falta de consciência com que vivemos, essa confusão. Se nos livrássemos disso, nos livraríamos das emoções e atitudes perturbadoras que derivam dela, e não ativaríamos mais nossas tendências e potenciais kármicos. Não geraríamos mais o karma produzido pela ação compulsiva e impulsiva, e não mais experimentaríamos a “felicidade maculada” e a infelicidade que é o fruto do amadurecimento dos potenciais kármicos.
Para nos livrarmos da falta de consciência e alcançarmos a liberação, precisamos seguir os três treinamentos elevados. O primeiro é o treinamento em autodisciplina ética elevada. Começamos contendo o corpo e a fala simplesmente porque a mente é mais difícil. Se conseguirmos conter o corpo e a fala, evitando ações destrutivas, nos fortaleceremos para conseguirmos conter a mente através da concentração elevada. Com a concentração elevada, trabalhamos para controlar o falatório mental, o torpor, etc.
Claro que é crucial nos abstermos do comportamento mental destrutivo, que nos leva a pensar, por exemplo, “tenho que ter o que todo mundo tem”. Ficar planejando como conseguiremos alguma coisa é parte da cobiça. Também precisamos nos abster de pensar com malícia, planejando vinganças. Se conseguirmos, talvez consigamos evitar a distração mental. A parte mental é muito mais difícil que a física e a verbal. Mas, uma vez que tenhamos treinado a concentração elevada, podemos aplicá-la para ao treinamento em consciência discriminativa elevada. Ou seja, podemos usar essa concentração para focar na vacuidade, que é o que realmente vai nos libertar para sempre da falta de consciência (ignorância).
Perguntas
Do ponto de vista budista, por que não conseguimos levar nossas memórias de ensinamentos espirituais de uma vida para outra? Isso tornaria nossa prática muito mais eficiente.
Primeiro, existem pessoas que realmente se lembram de algumas coisas. O que carregamos são, principalmente, as tendências muito fortes. Por exemplo, se praticarmos muito, se criarmos hábitos bem fortes, eles farão com que seja muito fácil encontrarmos o dharma em uma futura vida humana preciosa. Quando estudarmos, teremos apenas que nos lembrar do que já sabíamos. Ou seja, bastará alguém nos dizer uma única vez e já entenderemos. Meu professor, Serkong Rinpoche, era um dos professores de Sua Santidade o Dalai Lama e disse-me que nunca tinha que repetir qualquer coisa para ele. Só precisavam ensiná-lo uma vez e ele já aprendia.
Isso acontece conosco quando estudamos um idioma quando jovens ou crianças e nunca mais usamos. Estudei chinês quando era jovem, mas parei há uns 40 anos atrás. Era bastante fluente, mas agora não lembro quase nada. No entanto, basta alguém me dizer o nome de alguma coisa que logo lembro e já sei. Para a maioria de nós isso é o máximo que podemos esperar. Mas, logicamente, existem alguns lamas que conseguem lembrar-se e recitar algo que memorizaram em uma vida passada, sem que ninguém lhes tenha ensinado nesta vida, mas isso é muito raro.
Parece que muitos de nós ocidentais encontramos o dharma quando já somos relativamente velhos. Claro que o ideal seria termos tempo para primeiro aprender e entender os diferentes tópicos e explicações e então meditar sobre eles, mas geralmente temos urgência em lidar com nossas emoções e não sabemos como. Não compreendemos as diversas questões apresentadas nos ensinamentos e não temos contato com um professor. Como lidar com essa situação?
Atualmente temos muito mais livros que a 40 ou 50 anos atrás. Mesmo que não tenhamos professores, temos vários bons livros à disposição. Além disso, temos a internet e sites como este, com diversos ensinamentos e áudios em uma variedade de idiomas.
Claro que a maior parte do material está em inglês, então, se não soubermos inglês, seria bom aprender. Mas existe ainda mais material em tibetano, portanto, mesmo quem fala inglês ainda está perdendo muita coisa. Claro, se levarmos a sério a ideia de nos iluminarmos, precisaremos nos esforçar muito. Parte desse esforço pode estar em aprender outro idioma.
Com o dharma, estamos tentando treinar nossa personalidade, e uma das coisas que temos que treinar é a perseverança para trabalhar duro. Não é fácil atingir a liberação ou iluminação, e ninguém vai nos entregar isso de bandeja. Qualquer biografia dos grandes mestres tibetanos mostra que tiveram que enfrentar grandes dificuldades para estudar o dharma. Então porque seria diferente conosco? Ocidentais tendem a ter baixa autoestima, desencorajam-se logo. Por isso, é importante encorajá-los, dar-lhes ensinamentos sobre a natureza búdica, do tipo “vai que você consegue!”. Mas minimizar a quantidade de trabalho necessário não nos ajudará! Nossas emoções perturbadoras e hábitos negativos são muito fortes; se olharmos com honestidade veremos. Não tem saída. Já temos muita sorte de não termos que ir andando do Tibete à Índia só para receber ensinamentos. Tudo o que precisamos fazer é ligar o computador e nos conectarmos à internet. Olhando por esse ângulo, não existe desculpa!
Uma das histórias mais inspiradoras é a biografia de Marpa, o tradutor. Em sua primeira viagem à Índia ele aprendeu o idioma e traduziu muitos textos. Mas na viagem de volta ao Tibete, seu barco virou ao cruzar o Rio Ganges e ele perdeu todas as suas traduções. Marpa teve que voltar e traduzir tudo novamente. Quando nosso HD pifar, podemos nos lembrar de Marpa!