Bodhichitta e o Comportamento do Bodhisattva

Versos 10 a 17

Revisão

Depois da homenagem e da promessa de escrever, Togme Zangpo passa aos estágios graduais de motivação do lam-rim, começando pela vida humana preciosa e pelas circunstâncias que nos permitem aproveitá-la melhor. Assim, aprendemos que pode ser bom deixar a terra natal e viver em reclusão.

Lembramo-nos da morte e da impermanência e de que nossa vida humana preciosa não durará para sempre, portanto, não temos tempo a perder. Mas isso não significa que devemos ser fanáticos! Aqui, meu Koan favorito se aplica muito bem: “A morte pode vir a qualquer hora. Relaxe.” Para aproveitarmos bem esta vida, devemos nos manter distantes das más influências e contarmos com amigos espirituais e mestres qualificados.

Vimos que a direção segura (refúgio) é a base do caminho espiritual budista. Ao tomarmos refúgio, estamos dando uma direção segura à nossa vida, a direção indicada pelo dharma, que nos leva ao verdadeiro cessar e ao verdadeiro caminho mental, que os budas atingiram totalmente e a arya sangha parcialmente. Essa é a direção que queremos seguir.

No nível inicial de motivação, o objetivo é renascermos nos reinos melhores, mas buscamos principalmente uma vida humana preciosa, que é o trampolim para a liberação e a iluminação, conforme indicado pelas Três Jóias. Além disso, precisamos nos abster de comportamentos destrutivos, a fim de evitarmos renascimentos piores.

No nível intermediário de motivação, trabalhamos para nos liberar do ciclo incontrolável de renascimentos. Não importa o tipo de renascimento que tenhamos, se formos controlados pelo karma e emoções perturbadoras, e se ele for repleto de ignorância e ações kármicas compulsivas, não produzirá nada além de sofrimento. Isso é o que cobrimos até o momento.

Desenvolvendo o Ideal de Bodhichitta

Continuaremos com o nível elevado de motivação, que é almejar, com bodhichitta, a iluminação completa.

(10) A prática de um bodhisattva é desenvolver o ideal de bodhichitta para liberar inúmeros seres, pois se nossas mães, que cuidaram de nós desde tempos sem princípio estão sofrendo, o que faríamos com [apenas] a nossa própria felicidade?

Afinal, o que é bodhichitta? Bodhichitta é um estado mental derivado do amor, da compaixão e de uma determinação excepcional. Amor é desejar que todos, absolutamente todos — e não só aqueles de quem gostamos e nos são próximos — sejam felizes e obtenham as causas da felicidade. Compaixão é desejar que todos estejam livres do sofrimento — não apenas o sofrimento comum, mas o sofrimento que tudo permeia — e também de suas causas. Isso inclui assumirmos a responsabilidade de ajudá-los a superar o sofrimento. Mas, para isso, precisamos do próximo passo: a determinação excepcional. Termos uma determinação excepcional significa realmente assumirmos a responsabilidade de ajudar todos os seres até que atinjam a iluminação — e não apenas temporariamente. Bodhichitta tem tudo isso como base.

Na primeira fase do desenvolvimento de bodhichitta, focamos em ajudar todos os seres que buscam a iluminação. Em seguida, vem a fase principal, na qual focamos em nossa própria iluminação. Nossa iluminação ainda não aconteceu mas pode ser inferida com base nas causas presentes, assim como podemos inferir a existência de uma futura flor com base na semente atual. Se todas as causas e condições necessárias estiverem presentes, a flor desabrochará e teremos uma flor desabrochada ao invés de uma futura flor que ainda não desabrochou. Da mesma forma, se trabalharmos com bastante afinco, e as condições para alcançarmos a iluminação estiverem presentes, nossa iluminação não mais será uma inferência em nosso continuum mental, será uma realidade presente.

O que acabei de explicar é bastante complicado e sutil, por isso precisamos ser 100% precisos com a terminologia. Caso contrário, será muito difícil sabermos o que devemos fazer quando focamos em desenvolver bodhichitta. No que exatamente devemos focar? O que aparece em nossa mente? É a nossa futura iluminação? Ela ainda não aconteceu, mas será que é não existente e, portanto, estamos focando em algo que não existe? Esta pergunta pode ficar complicada e, a não ser que saibamos exatamente no que focar, será muito difícil gerar bodhichitta. Amanhã, por exemplo, nossa futura iluminação ainda não terá acontecido, mas pode acontecer e nela podemos focar e fazer planos. Por que ela pode acontecer? Porque temos os aspectos da natureza búdica.

O ponto principal é que não estamos focando na iluminação de Buda Shakyamuni, porque essa foi a iluminação dele. E não estamos focando na iluminação como se fosse um balão no céu, no qual todos estivessem focados. Não é assim. Estamos falando de nossa própria iluminação. Focamos nos aspectos de nossa natureza búdica e, sobre esta base, imputamos nossa iluminação que ainda não aconteceu.

Podemos usar a imagem de um buda para representar esse processo, mas precisamos saber o que a imagem representa. O foco em nossa futura iluminação é acompanhado de duas intenções. A intenção de alcançar a iluminação e a intenção de ajudar todos os outros seres a fazerem o mesmo. Atualmente, eu traduzo isso como o “ideal do bodhisattva”, porque é o nosso ideal, nosso objetivo de vida: alcançar a iluminação para ajudar os demais da forma mais significativa possível, ou seja, ajudando-os a fazer o mesmo.

Quando temos a bodhichitta totalmente desenvolvida, dizemos que ela é “livre de esforço”, ou seja, não precisamos passar por todos os estágios para gerá-la. Num estalar de dedos, temos bodhichitta total, dia e noite, não importa se estamos conscientes ou não de nosso ideal. Tudo em nossa vida, tudo o que fazemos, mesmo quando dormimos, visa a iluminação.

Nossa intenção é trabalharmos para o bem de todos, todos os seres sencientes, visando levá-los ao mais elevado, desenvolvido e onisciente estado. Um estado mental inacreditavelmente amplo e incrivelmente abrangente. Esse é o significado do termo Mahayana, o grandioso veículo mental. Essa é a mente que servirá como veículo para nos conduzir ao objetivo supremo. Queremos que esse ideal seja tão central em nossa vida, em nosso continuum mental, que, estejamos ou não conscientes, esse é o nosso objetivo de vida.

Togme Zangpo nos mostra como desenvolver o ideal de bodhichitta. Ele fala em liberarmos inúmeros seres, que são nossas mães. Diz: se nossas mães, que cuidaram de nós desde tempos sem princípio, estão sofrendo, o que faríamos com [apenas] a nossa felicidade? Essa frase refere-se ao método de causa e efeito de sete partes para gerar bodhichitta.

Primeiro precisamos desenvolver equanimidade, para não sentirmos atração por determinadas pessoas, aversão à outras e indiferença em relação a todo o resto. Queremos estar abertos a todos, e isso é muito importante quando pensamos em amor e compaixão no contexto Mahayana. Lembrem-se, não estamos falando em amor e compaixão apenas pelas pessoas que gostamos, isso não seria o amor e compaixão da tradição Mahayana. Precisamos ter o “amor grandioso” e a “compaixão grandiosa”. No contexto Mahayana, quando falamos em amor grandioso e compaixão grandiosa, o que queremos dizer é que estendemos esses sentimentos igualmente para todos. Claro que é muito difícil alcançarmos isso, especialmente porque alguns seres sencientes estão em um corpo de mosquito no momento. Por isso, precisamos compreender o renascimento. Ninguém existe verdadeiramente apenas na forma em que se manifesta no momento. Todos somos contínuos mentais individuais que estão passando por inúmeros renascimentos por causa de seu karma.

Cada continuum mental, ou melhor, cada ser, já foi nossa mãe em alguma vida, por isso Togme Zangpo os chama de “nossas mães”. Isso acontece porque o tempo é ilimitado e a quantidade de seres é limitada. Se pensarmos matematicamente, podemos demonstrar.

Meus alunos da Alemanha criaram um maravilhosa prova Prasangika. A filosofia Prasangika argumenta utilizando conclusões absurdas. Todos já foram minhas mães, não só porque o tempo é infinito e os seres são finitos, mas principalmente porque todos são iguais. Se um ser já foi minha mãe, nomeadamente nesta vida, então todos já foram minhas mães em alguma outra vida, afinal todos são iguais. Se esse não fosse o caso, e uma pessoa nunca tivesse sido minha mãe, poderíamos concluir que ninguém nunca foi minha mãe, pois todos são iguais, incluindo minha mãe nesta vida. Essa é uma prova Prasangika perfeita, mesmo que os tibetanos não a usem. Mas eles a aceitam, pois a apresentei ao professor da escola de debate de Dharamsala e ele concordou que é uma prova válida.

A seguir, o primeiro e importante passo no treinamento de causa e efeito de sete partes para desenvolvermos bodhichitta:

(1) Reconhecer que todos já foram nossas mães — precisamos nos convencer disso. Caso contrário, estaremos apenas aceitando, sem realmente compreendermos, o que faz com que o entendimento seja instável. Se um ser nunca foi minha mãe, ninguém foi minha mãe, porque todos são iguais. E se uma pessoa já foi minha mãe, então todos já foram minhas mães, pois todos são iguais. Interessante, não?

E os próximos pontos são:

(2) Lembrar-se da gentileza do amor materno — o simples fato de nossa mãe não ter nos abortado já demonstra um mínimo de gentileza. Assim, não importa o quão difícil seja nosso relacionamento com ela, temos que admitir que pelo menos este nível de gentileza ela tem. A maioria de nós não teria conseguido sobreviver não fosse pelo amor da mãe.

(3) Apreciando a bondade — costuma-se dizer “retribuir a bondade”, mas acho que essa frase pode ficar um tanto pesada para os ocidentais, que já carregam tanta culpa. O termo em tibetano significa “apreciar a bondade” ou “ser grato”. Quando realmente apreciamos a bondade com que os outros nos trataram, e realmente nos sentimos gratos, naturalmente sentimos o amor que esquenta o coração. Assim, sempre que encontrarmos algum ser, nosso coração se encherá de alegria e felicidade, igual a quando encontramos nossos filhos, e ficaríamos muito tristes se algo de ruim lhes acontecesse.

(4) Desenvolvendo amor — Desenvolver o desejo de que todos os seres sejam felizes e encontrem as causas da felicidade. Tem como base o amor que esquenta o coração.

(5) Desenvolvendo compaixão — Também tem como base o amor que esquenta o coração, mas aqui desejamos que todos os seres estejam livres do sofrimento e de suas causas, e nos dispomos a contribuir para que isso aconteça.

(6) Desenvolvendo uma determinação excepcional — decidirmos, de uma vez por todas, tomar para nós a responsabilidade de levar todos os seres à iluminação.

Com base nas seis causas anteriores, temos o sétimo ponto, o resultado:

(7) Desenvolvendo bodhichitta.

Uma vez que somos todos interconectados, se nossas mães estiverem sofrendo, como disse Togme Zangpo, o que faríamos com apenas a nossa felicidade? Precisamos usar a felicidade constante do estado iluminado, que atingiremos ao nos tornarmos budas, para ajudar os outros e não para simplesmente relaxar na beira da piscina com uma bebida gelada na mão.

Igualando-nos aos Outros e Trocando de Lugar com Eles

No próximo verso, Togme Zangpo nos mostra outro grande método para desenvolvermos bodhichitta, que é nos igualarmos aos outros e depois mudarmos nossa atitude em relação a nós e a eles.

(11) A prática de um bodhisattva é trocar, com pureza, sua felicidade pessoal pelo sofrimento alheio, porque (todo) o sofrimento, sem exceção, vem de desejarmos nossa própria felicidade, enquanto um buda totalmente iluminado nasce da atitude de desejar o bem aos outros.

Primeiro temos que equalizar nossa atitude em relação aos demais. Essa prática baseia-se na mesma equanimidade utilizada no primeiro método de desenvolvimento de bodhichitta, onde deixamos de sentir atração por alguns e aversão ou indiferença por outros. Mas, aqui, vamos um pouco adiante, nos igualamos aos outros. Isso significa que nós e todos os demais somos iguais em querermos felicidade e não querermos infelicidade. E mais, todos temos o direito a essa felicidade e a não sermos infelizes, independente do que fazemos. Então, porque cuidar apenas de nossa própria felicidade? Em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva, Shantideva diz:

(VIII.95) Uma vez que a felicidade é algo desejado por todos, que tanto eu quanto os outros desejamos ser felizes, o que há de tão especial a meu respeito para que eu cuide de mim e não dos outros?
(VIII.96) E uma vez que ninguém gosta de sofrer, nem eu e nem os outros, o que há de tão especial a meu respeito para que eu cuide de mim e não dos outros?

Quando assim igualamos todos os seres, passamos a formar um único corpo de vida, da mesma forma que as diversas partes do nosso corpo formam um único corpo. Shantideva nos dá uma bela explicação:

(VIII.91) Assim como o corpo deve ser cuidado como um todo, apesar de suas diversas partes, como a mão e assim por diante, os seres sencientes, apesar de suas diferenças, são todos iguais a mim no que diz respeito à felicidade e ao sofrimento, portanto, formamos um todo.

Não podemos dizer que uma parte do corpo necessite de mais cuidados do que outra, que é mais importante que uma determinada parte não sinta dor. Todas as partes são iguais. Então não podemos dizer que uma mão, por exemplo, só deveria cuidar de mãos. Se um de nossos pés estivesse com dor porque pisou em um espinho, nossa mão imediatamente o ajudaria. A mesma lógica se aplica ao cuidado com os outros.

Shantideva colocou da seguinte forma:

(VIII.99) Se quem tem de cuidar de um sofrimento é aquele a quem ele pertence, porque a mão cuida do sofrimento do pé se ele não a pertence?
(VIII.100) Apesar de não fazer sentido, é assim que funciona, por causa do conceito de um “eu”. Bom, mas é claro que devemos descartar ao máximo o que não faz sentido no que se refere ao [“todo” formado por] eu e os outros.

A questão toda está na base sob a qual rotulamos o “eu”. Será que o rotulamos com base na mão ou em todo o corpo? Será que o estamos rotulando com base apenas na nossa pessoa? Será que podemos rotulá-lo tendo qualquer um ou mesmo a todos como base? Shantideva diz:

(VIII.92) Apesar da minha própria dor não machucar o corpo dos outros, [para mim] ela é insuportável, por ser a dor do “eu” e por causa do meu apego ao “eu”.
(VIII.93) Da mesma forma, apesar da dor dos outros não me atingir, é a dor de um “eu”, por isso também é difícil de suportar, por causa do apego a um “eu”.

Shantideva explica que, no momento, estamos baseando nosso conceito de “eu” em pedaços de corpos de outras pessoas, algo que se desenvolveu a partir do óvulo e espermatozóide de duas outras pessoas. Não foi de nosso próprio óvulo e espermatozóide, certo?

Basicamente, o que estamos fazendo é cuidar de algo que veio do corpo de outras pessoas, então qual é a diferença entre isso e cuidar de qualquer outro corpo que veio do corpo de outras pessoas? Qual é a diferença entre limpar nosso próprio nariz com a mão ou limpar o nariz de um bebê? Estamos dispostos a fazer os dois, se necessário. Mas será que isso seria diferente de limpar o nariz de um bêbado caído na rua? Shantideva coloca da seguinte forma:

(VIII.111) Por uma questão de familiaridade, consideramos “eu” as gotas de sêmen e sangue de outras pessoas, apesar desse “eu” não existir como uma “coisa”,
(VIII.112) Então, por que também não considerar o corpo de outra pessoa como “eu”? Afinal, não é difícil verificar que aquilo que considero meu corpo não é “meu”.

Conforme disse Shantideva, o sofrimento deve ser eliminado, mas não por ser meu ou de outro ser. O sofrimento deve ser eliminado simplesmente porque é sofrimento e machuca. Shantideva diz que o sofrimento não tem dono. Assim como podemos cuidar do “eu” que tem como base um único corpo, também podemos cuidar do “eu” que tem como base o corpo de todos os seres.

(VIII.102) Como o sofrimento não tem dono, não existe diferença entre o sofrimento [de um ser e de outro]: se existe sofrimento, ele tem que ser eliminado. Porque impor restrições?
(VIII.94) Portanto, o sofrimento dos outros é algo que deve ser eliminado por mim, porque é sofrimento, o sofrimento de um “eu”. Assim, os outros seres devem ser ajudados por mim, porque são seres sencientes, parte do corpo de um “eu”.

Quando praticamos tonglen, o dar e receber, indicado no texto pela frase “trocando nossa felicidade pessoal pelo sofrimento alheio”, recebemos o sofrimento dos outros como se fosse nosso, e doamos nossa felicidade como se estivéssemos doando felicidade a nós mesmos. Se não tivermos uma compreensão da vacuidade e do rotulamento mental de um “eu” convencional dentro do contexto desta prática, podemos ter problemas. Que tipo de problemas? O problema que vem de basearmos nossa prática no equivoco da existência um “eu” sólido, independente e estabelecido por si só. Se praticarmos dessa forma, poderemos ficar com complexo de mártir, de termos que ser aquele que tira o sofrimento do universo, como em “Salvarei a todos!”, e isso pode gerar um enorme medo, afinal, também pensamos “Eu não quero sentir a dor que ele sente ao morrer de câncer”. Neste caso, nosso pensamento está fixado em um “eu” muito sólido, separado de todos os outros, e certamente não vamos querer o sofrimento de alguém que está morrendo.

Mas, se compreendermos a vacuidade do “eu”, e considerarmos um “eu” convencional expandido, que tem como base todos os seres, essa troca do que é nosso pelo que é do outro ficaria clara e bastante razoável. Só dá medo se pensarmos no “eu” sólido. Esse é um ponto muito importante da prática de nos igualarmos e trocarmos de posição com o outro.

Porque pensar em todos os seres e em sua felicidade ao invés de pensarmos em nós e na nossa felicidade? Togme Zangpo diz que é porque nosso sofrimento, sem exceção, vem de desejarmos nossa própria felicidade. Quando agimos de forma destrutiva, o fazemos porque queremos nossa própria felicidade. Por exemplo, podemos pensar: “Não gosto desse besouro voando perto de mim. Tenho medo e quero ser feliz sem sua presença. Ele é uma forma inaceitável de vida”. E, assim, decidimos matá-lo, tendo como base o pensamento egoísta de preocupação com nosso próprio bem estar. Outro exemplo de preocupação exclusiva com a própria felicidade é roubar, por querer o que o outro tem, ou mentir, por querer que as coisas fossem conforme as imaginamos, ou ter um caso com o parceiro alheio, porque estamos preocupados com a própria felicidade. Podemos analisar assim cada uma das dez ações destrutivas. Não é muito difícil perceber que elas surgem da nossa preocupação com a própria felicidade e por não nos importarmos com a felicidade dos outros.

Mesmo quando agimos construtivamente, se o fizermos pensando na própria felicidade, essa ação só servirá para perpetuar nosso samsara. Por exemplo, posso ser gentil porque quero que gostem de mim ou porque quero me sentir necessário ou qualquer outra coisa do gênero. Isso também é pensar apenas na nossa própria felicidade. Na terminologia budista, dizemos que é uma “atitude autocentrada”.

O texto explica que um buda totalmente iluminado nasce da atitude de desejar o bem-estar dos outros. Se nos abstermos de ações destrutivas, como a ação de matar o besouro, por exemplo, estaremos pensando na felicidade desse outro ser. Se nos abstermos de roubar um objeto, estaremos pensando na felicidade do dono do objeto. E podemos analisar dessa maneira todas as dez ações construtivas. Todas tem como base o pensamento centrado na felicidade alheia e, assim, progrediremos até desenvolvermos bodhichitta. E como alguém se torna um buda? Por ter bodhichitta. Bodhichitta tem como base a preocupação com os demais.

Revisando rapidamente os dois métodos para gerar bodhichitta: temos o sistema de causa e efeito de sete partes, que tem como base considerarmos todos os seres como nossas mães e temos o de nos igualar e trocar de lugar com os outros. Uma vez que tenhamos desenvolvido bodhichitta com base nesses dois métodos, teremos desenvolvido o estado de aspiração de bodhichitta. Aspiramos alcançar a iluminação para beneficiar todos os seres, e por isso tomamos os votos de bodhisattva e nos engajamos no tipo de comportamento que nos levará à iluminação.

Comportamento de Bodhisattva: Lidando com Mal que nos Infligiram

O comportamento do bodhisattva engloba diversos aspectos, e um dos mais importantes é a forma de lidarmos com o mal que nos foi infligido. A maneira básica descrita por Togme Zangpo é através do tonglen, o dar e receber. Esse é um dos métodos mais fundamentais para transformar situações negativas em positivas, e é um tópico muito discutido em vários textos de treinamento mental (lojong). Lembre-se que Togme Zangpo escreveu um comentário sobre O Treinamento da Mente em Sete Pontos, de Geshe Chekawa; logo, encontraremos aqui muitos similaridades, e também com os Oito Versos para o Treinamento da Mente, de Langri Tangpa, que é uma base para o treinamento da mente em sete pontos.

(12) A prática de um bodhisattva é: se alguém, sob domínio de um desejo muito forte, nos roubar ou fizer com que alguém roube toda a nossa riqueza, dedicar a essa pessoa seu [próprio] corpo, recursos e ações construtivas dos três tempos. 

Se nosso objetivo for realmente desenvolver bodhichitta, a fim de conduzirmos todos os seres à iluminação, e se realmente estivermos dispostos a dar-lhes toda essa felicidade, de certa forma, já lhes demos. Talvez não lhes tenhamos dado fisicamente ou neste exato momento, mas em nossa mente já lhes demos tudo o que pode ser dado.

Portanto, se alguém nos tomasse ou roubasse alguma coisa, ou se fizesse com que alguém roubasse, por estar sob o domínio do desejo, só levaria o que já lhe pertence.

Shantideva diz algo parecido:

(III.12ab) Uma vez que dei este corpo a todos os que possuem corpos limitados, a fim de que façam com ele o que bem entenderem,
(III.14ab) Que façam o que quiserem com [meu] corpo, contanto que isso não lhes cause mal.

Então, se alguém nos tomasse algo, não haveria problema, pois, mentalmente, já lhes demos tudo. Conforme disse Togme Zangpo, lhes dedicamos nosso corpo, recursos e ações construtivas dos três tempo. Aqui, “dedicar” significa pensar “você roubou meu dinheiro, aproveite bem. Quero que seja feliz e espero que isso lhe traga felicidade.” Tomamos da pessoa qualquer consequência negativa que possa advir de sua ação, e lhes damos felicidade.

Novamente nos lembramos do que disse Togme Zanpo, que toda a infelicidade vem de pensarmos apenas em nós mesmos e toda a felicidade vem de pensarmos nos outros. Quando eu morava em Dharamsala, na Índia, tinha um jardim de flores, e um dia umas crianças pegaram todas as flores do meu jardim. Como sou um ser samsárico, fiquei com um pouco de raiva e com vontade de sair gritando e correndo atrás delas. Então tentei lembrar deste conselho e perceber que não fazia sentido ficar repetindo “que todos os seres sejam felizes, que todos atinjam a iluminação” durante minhas práticas e meditações, e ficar bravo por terem levado minhas flores. Só fiquei zangado e triste porque estava pensando apenas em mim. Eram minhas flores e eu queria apreciá-las. Mas quando comecei a pensar “que vocês se alegrem com as flores”, passei a pensar na felicidade alheia, e isso pacificou minha mente.

Lembre-se da parte em que falamos sobre nos igualarmos e trocarmos de lugar com os outros: qual seria a diferença entre nós apreciarmos as flores e as crianças apreciarem as flores? Portanto, as desejamos ainda mais felicidade e dedicamo-lhes nosso corpo, recursos e ações construtivas dos três tempos — presente, passado e futuro.

Todos esses versos, que falam de outras pessoas nos fazendo mal, têm o objetivo de nos ajudar a não ter raiva. Um bodhisattva não ficaria bravo com os outros, porque raiva é basicamente querer que o outro não seja feliz. Queremos nos livrar da pessoa, e também queremos que ela pare de fazer o que está fazendo. É claro que não querer que o outro seja feliz é o oposto de querer que ele seja feliz, não é? A raiva acaba com a força positiva que desenvolvemos através de várias ações construtivas, e a enfraquece de forma que demore a amadurecer e seu fruto seja menor. Precisamos desenvolver paciência. Se tivermos paciência, não ficaremos com raiva. E a melhor maneira de desenvolver paciência é praticando tonglen, o dar e receber.

(13) A prática de um bodhisattva é: mesmo não tendo cometido o mínimo deslize, se alguém tentar cortar nossa cabeça, tomar para si as consequências negativas de seu ato, através do poder da compaixão.

Esse verso dá o exemplo extremo de alguém que tenta cortar nossa cabeça, mas a mensagem é que não devemos ficar com raiva, mesmo quando nos machucam intensamente sem que tenhamos culpa. Ao invés disso, devemos praticar tonglen pensando no sofrimento e nas consequências negativas que a pessoa experimentará com resultado de cortar nossa cabeça, ou o que quer que tenha feito. Então fazemos a prática de tomar para nós as consequências negativas através do poder da compaixão, ou seja, do desejo de que estejam livres do todo sofrimento.

É muito interessante analisarmos os ensinamentos sobre karma considerando os fatores que fazem com que ele amadureça com mais força. Nos ensinamentos, existe uma lista de coisas que fazem com que as consequências de nossas ações sejam mais pesadas. “Pesadas” é o termo literal. Um dos itens listados considera o grau de sofrimento que as ações destrutivas infligem no objeto da ação. Se causar muito sofrimento, as consequências são mais pesadas, e se não causar muito sofrimento, são mais leves. Normalmente, utiliza-se como exemplo a diferença entre torturar alguém até a morte ou matar rapidamente.

No caso do exemplo do autor, sobre “cortar cabeças”, se alguém quisesse nos executar ou matar em uma limpeza étnica, ficaríamos com muita raiva e, portanto, sofreríamos muito. Assim, a consequência para a outra pessoa seria muito mais pesada. Ao passo que, se simplesmente cortassem nossa cabeça, morreríamos rapidamente. Mas, voltando ao verso que fala da situação de sermos roubados, se ficarmos aborrecidos e com raiva, sofreremos muito mais. Poderíamos tentar planejar uma vingança e, por causa das emoções destrutivas que geraríamos, sofreríamos ainda mais, no presente e no futuro. Com isso, as consequências para a outra pessoa seriam mais pesadas. Mas, e se ao invés de ficarmos com raiva, pensássemos na pessoa com compaixão? Nesse caso, desejaríamos que a consequência de sua ação fosse a mais leve possível. Por causa de nossa compaixão, a situação mudaria, não só para nós, mas também para o outro.

Por isso é tão importante “esquecermos” quando alguém nos faz algo negativo. Por exemplo, pode ser que alguém nos empreste dinheiro e não pague. Existem situações em que a pessoa simplesmente não vai pagar. Nessas situações, simplesmente esqueça! Mas lembre-se que isso é bem diferente do conceito ocidental de perdão, que implica em um certo sentimento de superioridade, uma atitude do tipo “Está bem, vou perdoar esse pobre coitado”. A noção ocidental de perdão também está baseada no conceito de culpa, de que a outra pessoa é culpada mas nós a perdoamos. Além disso, identificamos a outra pessoa como “a culpada”, que nós, com toda nossa nobreza, perdoamos. Aqui, tendo como base o sentimento de compaixão, percebemos que, quanto mais raiva tivermos, e quanto mais chateados ficarmos, mais a outra pessoa irá sofrer. Por isso, e por queremos que ela seja feliz, procuramos não ficar com raiva e desejar ainda mais felicidade a ela.

Mesmo que ainda não sejamos bodhisattvas, devemos tentar ao máximo pôr isso em prática.

(14) A prática de um bodhisattva é: se alguém proclamar, em milhares, milhões ou bilhões de mundos, todo tipo de coisas desagradáveis a seu respeito, retribuir falando das boas qualidades dessa pessoa, com uma atitude amorosa. 

Quando outras pessoas nos insultam ou dizem coisas que não gostamos, é muito importante não revidarmos. Se ficarmos sempre criticando e falando mal dos outros, vão achar que somos fofoqueiros e não confiarão em nós quando precisarem de ajuda, pois ficarão se perguntando o que falaremos delas. Por isso, Langri Tangpa escreveu nos Oito Versos para o Treinamento da Mente:

(5) Quando os outros, por inveja, me tratarem injustamente, com repreensões, insultos e mais, que eu aceite a derrota e ofereça-lhes a vitória.

E mais, Shantideva nos mostrou que todos têm boas qualidades. Ele escreveu muitos versos questionando o por quê de não querermos nos alegrar com as boas qualidades das outras pessoas, se queremos que elas se alegrem com as nossas. E todos fazemos isso. Vejam o que ele disse:

(VI.79) Quando suas qualidades são enaltecidas, você deseja que as outras pessoas fiquem felizes por você, mas quando são as qualidades delas que são enaltecidas, você não quer ficar feliz.
(VI.80) Tendo desenvolvido o ideal de bodhichitta, desejando [levar] felicidade a todos os seres sencientes, porque ficar com raiva da felicidade que eles conseguem sozinhos?

Se nos alegrarmos com a felicidade alheia, ficaremos mais felizes. Se desenvolvermos sentimentos negativos e negarmos as qualidades dos outros, o que ganharemos? Apenas infelicidade. Qual é o nosso estado mental quando criticamos os outros? É um estado mental infeliz. Alegrar-se com as boas qualidades alheias, mesmo que pequenas. É um estado mental bem mais feliz! E as pessoas também se beneficiam muito com isso: ficam mais confiantes, nos respeitam, confiam e se abrem conosco, e isso nos permite ajudá-las.

Se pensarmos na propaganda negativa que os chineses fazem do Dalai Lama, veremos que ele é um grande exemplo disso. Eles dizem muitas coisas negativas, e para o mundo todo! Mesmo sabendo que o que dizem não é verdade, Sua Santidade nunca critica ou fala mal do governos chinês. Ao invés disso, ele fala das coisas positivas que a China pode oferecer ao Tibete, não as nega. É uma atitude muito diferente do terrorismo ou dos movimentos insurgentes que visam destruir um governo que acham ruim.

O ponto aqui é não falar das qualidades negativas dos outros, mesmo que eles falem das nossas, e enfatizar suas boas qualidades, com uma atitude amorosa, com o desejo de que sejam felizes. Todas as pessoas têm boas qualidades, portanto, devemos nos alegramos com a felicidade que essas qualidades trarão às suas vidas. Se não conseguirmos aquentar uma pessoa falando mal de nós, nunca aguentaríamos o que Sua Santidade aguenta, um pais inteiro falando mal dele! Isso ilustra bem o seu comportamento de um bodhisattva.

(15) A prática de um bodhisattva é: se alguém expuser seus defeitos ou falar mal [de você] no meio de um grupo de muitos seres errantes, cumprimentá-lo respeitosamente e identificá-lo como seu professor espiritual.

Langri Tangpa usa uma analogia parecida:

(6) Mesmo que alguém que eu tenha ajudado, ou por quem tenha grandes expectativas, me prejudique de forma totalmente injusta, que eu o veja como um professor sagrado.

Quando os outros nos criticam e expõem nossos defeitos, na verdade, estão nos ajudando, pois estão nos mostrando o que podemos corrigir. Afinal, um bom amigo é aquele que nos diz que estamos agindo como idiotas quando realmente estamos. Quando estávamos na escola, se os professores não tivessem apontado nossos erros, se sempre tivessem dito “Nossa, muito bom o que você escreveu!”, nunca teríamos aprendido e melhorado. Portanto, podemos considerar que aqueles que expõem nossos defeitos são como professores espirituais que nos ajudam a corrigi-los.

Quando as acusações são falsas, temos a oportunidade de verificar se são realmente falsas. Mesmo quando nossas falhas são expostas em meio a vários seres sencientes, devemos considerar a pessoa que as expôs um professor. Se realmente quisermos ser capaz de ajudar os outros, é crucial não escondermos nossas falhas e defeitos ou fazer de conta que temos boas qualidades quando não as temos. Alguém que aponta nossos erros em meio a um grupo de pessoas nos dá a oportunidade de sermos honestas com os demais.

Por exemplo, se somos o professor e um aluno nos corrige, ao invés de sentirmos vergonha, devemos agradecê-lo. Não precisamos pensar “Que horror! O que as outras pessoas pensarão de mim?” Podemos dizer “Obrigada! Me enganei.” Assim, nossos alunos nos respeitarão ainda mais. Às vezes, Sua Santidade o Dalai Lama comete algum engano ao ensinar. Mas ele reconhece e ri, dizendo “O que acabei de dizer está errado”. Ele não faz um drama e nem fica achando “Oh, fiz uma coisa horrível!”

Quando falamos em identificá-lo como professor espiritual, “identificar” é frequentemente traduzido como “reconhecer”. Mas “identificar” significa ver uma determinada característica e especificar essa característica identificadora. A pessoa em questão pode ter vários tipos de características que a faz ser muitas coisas, mas uma das coisas que podemos identificar é que ela está agindo como um professor no momento em que aponta nosso erro. Portanto, essa é uma identificação correta, pois a pessoa realmente tem a característica de nos ajudar a aprender.

(16) A prática de um bodhisattva é: se uma pessoa a quem cuidamos e estimamos como nosso próprio filho considerar-nos um inimigo, ter uma afeição especial por ela, como a de uma mãe por um filho acometido por uma doença

Imagine que seja tarde da noite e dizemos ao nosso filho pequeno que vá dormir, mas ele fica muito zangado e começa a gritar “Eu te odeio!” Será que acreditamos na criança e ficamos chateados com ela? Será que pensamos “Oh, meu filho não gosta mais de mim!” Claro que não, sentimos afeição e continuamos a agir pensando no bem da criança. Desligamos a televisão e a levamos pra cama. E se ela estiver doente e passar a noite chorando? Será que ficamos zangados e passamos a considerá-la uma inimiga? Claro que não, sentimos ainda mais amor e afeição.

O mesmo acontece com qualquer pessoa a quem cuidamos e ajudamos, mas que agora nos trata mal, fica zangada e nos considera um inimigo. Nesse caso, o ideal seria considerá-la da mesma forma como consideramos uma criança doente, porque ela realmente está doente, com algum tipo de distúrbio emocional.

(17) A prática de um bodhisattva é: se um indivíduo igual ou inferior nos insultar, tomado por arrogância, recebê-lo respeitosamente na coroa da cabeça, respeitosamente, como [recebemos a] um guru. 

Quando os outros, por arrogância, nos insultam, é importante não sermos arrogantes também e não gritarmos de volta, especialmente quando ocupam uma posição hierárquica igual ou inferior à nossa. Isso nos remete aos ensinamentos de Shantideva sobre como superar a arrogância e a inveja. Quando percebemos que estamos sendo arrogantes, ele nos sugere tentar olhar a situação sob o ponto de vista da outra pessoa. Ela pode pensar: “Quem ele acha que é?” Desfrutamos de muitas coisas boas na vida e não as compartilhamos com os outros, e ainda por cima os desdenhamos. É natural que pensem mal de nós.

(VIII.141) “Ele é respeitado, mas eu não; eu não tenho a riqueza que ele tem. Ele é elogiado; mas eu sou menosprezado, ele tem felicidade, mas eu tenho sofrimento;
(VIII.142) “Eu faço todo o trabalho, enquanto ele tem uma vida boa. Ele é considerado superior, enquanto eu sou considerado inferior, desprovido de boas qualidades.
(VIII.143) “Mas como pode alguém que não tem boas qualidade fazer qualquer tipo de trabalho? Portanto, todos possuímos boas qualidades! (Inclusive,) existem pessoas que o consideram inferior e pessoas que me consideram superior.
(VIII.144) “Coisas como o declínio de minha disciplina ética e visão de mundo são consequências das emoções perturbadoras, e não do meu controle sobre elas. Preciso ser curado, tanto quanto possível: aceito até a dor [envolvida na cura].
(VIII.145) “Mas (além de) ele não me tratar como alguém que precisa ser curado, porque ainda me olha com ar de superioridade?

Esse é o tipo de ensinamento que Shantideva nos deixou sobre trocarmos de lugar com os outros. Mesmo que uma pessoa em posição inferior nos insulte e seja arrogante, é importante lembrarmo-nos desses ensinamentos e não agir da mesma forma. Ao invés disso, devemos receber essa pessoa na coroa de nossa cabeça, respeitosamente, como a um guru. Ou seja, ao invés de também sermos arrogantes, devemos respeitá-la, como respeitaríamos nosso guru, pois ela está nos ensinando algo; está nos ensinando a não sermos arrogantes.

Não importa se somos ou não insultados por pessoas em posição igual ou inferior, o importante é termos uma atitude de respeito por elas. Afinal, estão nos ajudando a alcançar a iluminação e ajudar os outros. Precisamos pensar “É por causa da minha compaixão, amor e ajuda a elas que serei capaz de atingir a iluminação e beneficiar os demais. Portanto, merecem muito respeito.”

Quando falamos em inspiração para atingir a iluminação, essa inspiração vem de duas direções, de cima e de baixo. De cima, vem das Três Joias e de nossos mestres espirituais, já que nos inspiram com seus exemplos. Mas também nos inspiramos nos seres sencientes em sofrimento, pois ao vê-los, nosso amor e compaixão faz com que aspiremos atingir a iluminação para conseguirmos ajudá-los melhor.

Shantideva diz que os budas e os seres senciente são iguais se pensarmos que é devido à sua gentileza que conseguiremos atingir a iluminação. Por isso, Shantideva nos pergunta o motivo de mostrarmos respeito apenas pelos budas e gurus e não pelos sofredores seres sencientes. Ele escreveu:

(VI.113) Uma vez que o atingimento da iluminação depende tanto dos seres sencientes quanto do Triunfante, por que não respeitamos os seres sencientes como respeitamos o Triunfante?

Perguntas

Quando percebemos que estamos ficando com raiva, o melhor a fazer seria sair da situação e esperar a raiva acalmar, para só mais tarde tentar livrar-se dela?

Sim, esse é um bom passo, e tem a ver com o que disse Togme Zangpo, que um bodhisattva deve deixar sua terra natal, onde a raiva, o apego e a ingenuidade o incomodam tanto. Ao tentarmos sair de uma situação onde não conseguimos lidar com a raiva, estamos fazendo a mesma coisa. É bom nos acalmarmos e nos recompormos. Provavelmente, a outra pessoa também estará aborrecida e com raiva, e pouco inclinada a acalmar-se e resolver a situação pacificamente. Precisamos esperar que ela também se acalme e que ambos tenhamos um estado mental mais conducente a resolver o conflito.

Estou um pouco confuso a respeito da referência a pessoas inferiores, no verso 17, pois já havíamos falado que as pessoas são absolutamente iguais. O que significa alguém ser inferior?

É verdade, todos são iguais, mas no sentido de que todos querem ser felizes e ninguém quer ser infeliz, e todos têm o direito de ser feliz e estar livre do sofrimento. Todos foram igualmente gentis conosco quando foram nossas mães, por exemplo. Segundo Shantideva, os Budas e todos os seres sencientes são igualmente gentis conosco, portanto, merecem o mesmo respeito. No entanto, Shantideva deixa bem claro que Budas e seres sencientes não são iguais em todos os aspectos. O amor, compaixão e sabedoria dos budas estão além de nossa imaginação. Eles são iguais apenas quando consideramos que dependemos igualmente dos dois para atingirmos a iluminação — os budas são o exemplo do que objetivamos alcançar e os seres sencientes são àqueles por quem objetivamos alcançar a iluminação.

No entanto, no oitavo capítulo, sobre estabilidade mental, Shantideva fala em trocarmos de lugar com os outros, e usa temos como superiores, iguais e inferiores. Precisamos superar a arrogância em relação aos que são inferiores, aos que têm menos dinheiro, por exemplo, e precisamos superar a competitividade agressiva com aqueles que estão em posição de igualdade. Mantendo o exemplo do dinheiro, achamos que temos que competir para ter mais dinheiro que eles. E temos que superar a inveja dos que são superiores, que tem mais dinheiro, por exemplo. Na verdade, essa ideia de inferior, igual e superior é usada no nível convencional, e geralmente refere-se a qualidades como riqueza, poder, status, força física, beleza, etc.

No verso 12, que fala de roubo, ele se refere apenas ao karma da pessoa que nos rouba ou também ao nosso próprio karma, gerado por reagimos de uma determinada maneira?

Shantideva disse que a pessoa gera consequências negativas por agir com base no “eu”, porque ele roubou de “mim”, por exemplo. Quando desenvolvemos paciência, tendo a pessoa que nos roubou como base, estamos gerando felicidade. Ela está causando seu próprio sofrimento, por estar agindo com base no “eu”, e nós estamos gerando felicidade por estarmos agindo com base no “outro”, então, porque fazê-la sofrer ainda mais ao nos zangarmos? Tendo seu “eu” como base, ela terá um renascimento pior; e, tendo a ela como base, atingiremos a iluminação. É estranho, não é? Porque ficarmos com raiva dela?

Podemos olhar a situação sob outro ponto de vista, como o que encontramos em A Roda de Armas Afiadas, um outro texto de treinamento mental. Segundo esse texto, devemos nos conscientizar de que cometemos ações negativas no passado, ao roubar de outras pessoas, e agora isso está retornando a nós. Esta é uma outra forma de transformarmos a situação. Então, repetindo, quando alguém nos rouba, pensamos que nossos próprios potenciais negativos estão amadurecendo ou que estamos gerando potenciais positivos ao não ficarmos com raiva da pessoa.

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