Situações Críticas e Realização da Vacuidade

Versos 18 a 24

Revisão

Temos esta vida humana inacreditavelmente preciosa, que serve como base para atingirmos a liberação e iluminação. Um renascimento como este é muito raro. Além disso, passa muito rápido e pode acabar a qualquer momento, portanto, precisamos aproveitá-lo. Para isso, Togme Zangpo nos aconselha a vivermos em isolamento, afastados da terra natal, a fim de conseguirmos progredir no caminho.

À medida que progredimos, nosso nível de motivação, segundo a classificação do lam-rim, vai se desenvolvendo, do mais básico ao mais avançado. Não adianta termos uma motivação avançada porém superficial, é preciso sermos sinceros e estarmos seguros do que queremos.

Primeiro, almejamos renascimentos melhores, ou mais especificamente, renascimentos humanos preciosos, a fim de continuarmos no caminho. Com a morte e a impermanência em mente, e conscientes de que é muito difícil atingirmos a iluminação em apenas uma vida, buscamos conseguir mais vidas humanas preciosas. Para isso, precisamos nos certificar de que temos boas influências em nossa vida, nos livrar das más influências e confiar nos mentores espirituais qualificados.

A seguir, damos uma direção segura às nossas vidas, tomando refúgio no Buda, dharma e sangha. Seguimos a direção do verdadeiro cessar e dos verdadeiros caminhos mentais que os budas realizaram, e a sangha faz parte disso. E para nos assegurarmos de que não teremos renascimentos piores, procuramos nos abster de comportamentos destrutivos.

Mesmo que venhamos a ter novas vidas humanas preciosas, ou mesmo um renascimento em reinos celestiais, nos reinos dos deuses, essas vidas ainda serão repletas de sofrimento. Afinal, ainda estaremos no samsara e qualquer prazer ou felicidade será passageira, não durará e não nos deixará satisfeitos.

Esse é um ponto muito importante, porque com o nível inicial de motivação é muito fácil nos apegarmos à vida humana preciosa. Podemos rezar apenas para termos renascimentos maravilhosos em que possamos estar com nossos amigos e professores espirituais e estudar esse lindo e maravilhoso dharma. Mas isso ainda é apego ao samsara, e no samsara os prazeres terminam em sofrimento da mudança. Além disso também temos o sofrimento que tudo permeia, todos os momentos são repletos de confusão, o faz com que os altos e baixos do samsara se perpetuem.

Por mais difícil que seja almejarmos com sinceridade, do fundo do coração, um renascimento humano precioso, é ainda mais difícil trabalhar com honestidade, e sem apego à vida humana, para nos liberarmos do samsara. Não devemos de forma alguma trivializar a renúncia, o desapego ao samsara. Não importa o quão maravilhosos sejam nossos amigos e mentores espirituais, são todos impermanentes. Não dá pra ficar pra sempre com as pessoas. Milarepa não conseguiu ficar pra sempre com Marpa. Ele teve que deixá-lo; essa é a parte ruim do apego.

Buscamos uma vida humana preciosa como um degrau para a liberação ou iluminação, ou, como disse Togme Zangpo, como uma embarcação que servirá para atravessarmos o oceano do samsara. Mas não podemos nos apegar à nossa embarcação. Quando chegarmos ao nosso destino, temos que deixá-la, sem maiores dilemas.

O nível de motivação avançado é ainda mais difícil. Uma vez que tenhamos atingido a liberação, é fácil simplesmente relaxarmos e aproveitarmos a experiência de felicidade imaculada. Mas no nível avançado, pensamos em todas os seres, todas as nossas mães, e, com bodhichitta, almejamos trabalhar mais. Com bodhichitta, a realização da vacuidade e as seis atitudes de vasto alcance, trabalhamos para atingirmos a iluminação e ajudar a todos os seres.

Precisamos ir além dos dois extremos do samsara e nirvana, o que é muito difícil e requer que reconheçamos que a vida humana preciosas e a liberação são apenas paradas em nosso caminho para a iluminação. Não há como atingirmos a iluminação sem passarmos por isso.

Hoje em dia, podemos ler, ouvir e aprender facilmente sobre os estágios do caminho. Mas não é só porque aprendemos sobre esses estágios que os internalizamos e que será fácil sentimos os sucessivos níveis de motivação. Isso leva muitos anos! Sentir, com sinceramente, esses níveis de motivação é um feito muito grande, até mesmo sentir a motivação inicial.

Isto é repetido o tempo todo: que a única forma de progredir é ouvir, estudar e refletir sobre os ensinamentos. Só assim conseguiremos entendê-los e integrá-los à nossa vida através da meditação. Esse processo nos levará a realmente sentir esses níveis de motivação e não apenas conhecê-los superficialmente.

Em seguida, vimos dois métodos para desenvolvermos bodhichitta, e depois começamos a explicar o comportamento do bodhisattva, começando com formas de lidar com o mal que nos é afligido. Por vários versos, Togme Zangpo nos mostra a importância de termos paciência e não ficarmos com raiva, além da prática do dar e receber. Nessa prática, recebemos o sofrimento dos outros e lhes damos os potenciais positivos que desenvolvemos através de ações construtivas. Ao invés de respondermos às pessoas que nos prejudicam com críticas e pensamentos negativos, destacamos suas boas qualidades. Um outro método é considerar essas pessoas nossos professores, que nos permitem reconhecer e corrigir nossas falhas.

Duas Situações Críticas na Prática do Dharma

A sessão seguinte trata de duas situações críticas na prática do dharma, às quais temos que estar muito atentos: quando as coisas vão muito mal e quando as coisas vão muito bem. Quando as coisas vão mal, nos desencorajamos, e quando vão bem, ficamos excessivamente entusiasmados e arrogantes. Reagimos exageradamente às oito coisas transitórias da vida, ou seja, aos “oito dharmas mundanos”. Ficamos muito chateados com fatos negativos e muito animados com fatos positivos.

(18) A prática de um bodhisattva é: mesmo se não tiver um sustento e for constantemente insultado pelas pessoas, ou se tiver uma terrível doença ou for atormentado por espíritos, aceitar, em contrapartida, as forças negativas e o sofrimento dos seres errantes e não se desencorajar.

Temos aqui, mais uma referência à prática do tonglen, de tomar o sofrimento dos outros e dar-lhes nossa felicidade. Imaginem que fossemos muito pobres, doentes, constantemente insultados e desprezados por outras pessoas e assombrados por fantasmas, se ficássemos pensando apenas em nós mesmos, nossa visão seria muito limitada. Seríamos tomados pelo pensamento “pobre de mim” e, além das dificuldades normais, ainda sentiríamos um tremenda infelicidade. Por outro lado, se pensássemos em todos os que passam pelos mesmos problemas e ampliássemos nossa visão para além do “pobre de mim”, para todos os seres, a forma como viveríamos esse sofrimento seria muito diferente.

Alguns de nós, provavelmente já experimentaram algo parecido quando eram adolescentes. Se fossemos adolescentes e nossos pais fossem alcoólicos, por exemplo, provavelmente acharíamos que éramos a única pessoa no mundo com esse problema. Nos sentiríamos isolados, sozinhos e extremamente infelizes. Mas quando tomamos consciência de que muitas outras pessoas passam pelo mesmo problema, nosso escopo fica muito maior. Podemos ir a um grupo de apoio, onde várias pessoas têm o mesmo problema, e passamos a pensar no problema de todas. Assim, não nos sentimos mais sozinhos e buscamos uma solução para todas as pessoas. Nossa forma de vivenciar o problema muda muito!

Expandimos nosso escopo ao nos imaginar trocando de lugar com os outros. Para isso, precisamos estar interessados em eliminar o sofrimento e em expandir a base sobre a qual rotulamos o “eu” — de um indivíduo para todos os indivíduos. Além disso, precisamos aceitar as forças negativas e o sofrimento dos seres errantes; só então, não nos desencorajaremos. O que nos desencoraja não é pensar em todos os seres, o que nos desencoraja é pensar “pobre de mim”.

Quando, preocupados em eliminar o sofrimento, pensarmos que todos os seres são uma base apropriada para o rótulo “eu”, é importante que tenhamos a compreensão da vacuidade do “eu”. Não é como se ao invés de termos um pequeno “eu” sólido agora tivéssemos um enorme “eu” sólido, que engloba a todos. Isso não tem nada a ver com o que estamos almejando, e seria um grande erro. Não é que agora “eu sou todas as pessoas e vou tomar o mundo!” Se pensarmos assim, ficaremos ainda mais desencorajados.

No entanto, podemos expandir o âmbito da base sobre a qual rotulamos o “eu” convencional. Por exemplo, podemos rotular o “eu” convencional usando como base nós mesmos como indivíduos. No caso do Patrício, por exemplo, ele poderia dizer, e seria verdade, “eu sou Patrício e estou trabalhando para superar o sofrimento do Patrício.” E também poderia dizer “Sou um morador de Xalapa” ou “Sou um morador do México”. Todas essas bases são válidas para rotularmos o “eu”. Seria apropriado trabalhar para eliminar o sofrimento das pessoas desta cidade ou país. Mas ele poderia estender ainda mais a sua base de designação, para “eu sou um ser humano” ou “eu sou um ser senciente” e, assim, trabalhar para eliminar os problemas que afligem a todos os seres.

Quando trabalhamos para melhorar o meio ambiente e eliminar a poluição, não estamos trabalhando para resolver apenas o nosso problema, porque esse é um problema que aflige todos os habitantes do planeta, inclusive os animais. Similarmente, podemos praticar trocar de lugar com os outros trocando com quem nos identificamos e para quem trabalhamos para eliminar o sofrimento e trazer felicidade. Essa é maneira como Sua Santidade o Dalai Lama explica a validade de expandirmos nossa preocupação a todos os seres. “Sou um ser senciente preso ao samsara” — está correto, não está? Então seria apropriado dizer que quero ajudar todos os seres sencientes a saírem do samsara porque eu sou um desses seres. É uma maneira muito boa de abordarmos o tonglen.

Obviamente, é uma enorme incumbência liberar todos os seres senciente do universo e levá-los à iluminação. Mas, digamos que nossa tarefa fosse um pouco menor; se pensássemos em termos do “eu” sólido, ainda assim nos desencorajaríamos. “ Eu jamais conseguiria fazer isso!” Mas, sem o equívoco de achar que existe um “eu” sólido, separado de tudo o mais é possível simplesmente fazer o que tem de ser feito. Acredito que esta é a chave para assumirmos tamanha incumbência: Simplesmente fazermos o que tem de ser feito.

Eu moro na Alemanha, e a imagem que me vem à mente é das cidades totalmente destruídas após a Segunda Guerra Mundial. Fico tentando imaginar como eles conseguiram reconstruir essas cidades! Digamos que fossemos um morador de Dresden, que foi totalmente destruída por incêndios; será que cuidaríamos apenas de nossa casinha? Não, isso não faria sentido, não em uma cidade sem qualquer infraestrutura. Não daria pra viver assim, pois somos totalmente interconectados. Então, as pessoas simplesmente fizeram o que tinha que ser feito, trabalharam juntas sem se intimidar pelo pensamento “E agora? Como poderemos reconstruir a cidade?” Elas simplesmente reconstruíram, e gradualmente conseguiram terminar. Outra situação crítica é nosso ego inflar e ficarmos prepotentes quando coisas maravilhosas acontecem conosco. É disso que o próximo verso trata:

(19) A prática de um bodhisattva é: mesmo se for docemente elogiado, cumprimentado por muitos seres errantes, ou se tiver obtido [riquezas] comparáveis à fortuna de Vaishravana (O Guardião da Riqueza), nunca ser dissimulado, nunca dizer que a prosperidade mundana não tem essência. 

Podemos ficar muito ricos ou famosos e muitas pessoas nos elogiarem dizendo que somos maravilhosos e que nosso trabalho é incrível, algumas podem até mesmo se curvar perante nós. Para não ficarmos presunçosos, Togme Zangpo diz que precisamos perceber que isso tudo não tem essência. Fama e elogios podem, inclusive, ser um obstáculo. Vejam os atores e cantores muito famosos; eles não conseguem nem sair de casa sem serem incomodados por dezenas de paparazzi querendo sua foto. E ainda têm os fãs que gritam e correm atrás deles, tentando até rasgar suas roupas!! É horrível!

Mesmo quando somos conhecidos apenas em uma determinada área, quanto mais famosos formos, mais demandas haverão sobre o nosso tempo. Haverá mais trabalho, mais emails, mais obrigações e convites, e tudo isso pode acabar nos assoberbando. Não conseguiremos fazer nada do que queremos porque todo mundo demandará nosso tempo, não teremos um tempo nosso. Se formos extremamente ricos, sempre haverão pessoas nos incomodando, tentando tomar nosso dinheiro. E podemos achar que ninguém gosta realmente da gente, que querem nossa amizade apenas pelo dinheiro.

Para não ficarmos prepotentes, precisamos reconhecer as desvantagens dos elogios, da fama e do dinheiro, sem falar que tudo isso não tem essência. Além de não gerarem felicidade genuína, não duram. Assim como ganhamos, podemos perder. É como o exemplo budista de seres divinos que nascem em reinos celestiais e depois caem.

Para não nos desencorajarmos quando as coisas vão mal, tomamos o sofrimento e cultivamos compaixão por aqueles que têm problemas semelhantes. Quando as coisas vão bem, é importante não sermos presunçosos, ver que existem desvantagens e que nada disso tem essência. E quando temos dinheiro, fama e várias circunstâncias favoráveis, devemos reconhecer que isso também apresenta vantagens. Podemos, e devemos, usar essas vantagens para beneficiar os outros, ao invés de nos tornarmos prepotentes. Tendo dinheiro, podemos ajudar muitas iniciativas espirituais, por exemplo.

Superando a Hostilidade e o Apego

Outras situações difíceis que um aspirante a bodhisattva tem que enfrentar são as que envolvem hostilidade e apego. Togme Zangpo dedica alguns versos a isso.

(20) A prática de um bodhisattva é domar seu continuum mental com as forças armadas do amor e da compaixão, porque, se não tivermos subjugado o inimigo — que é a nossa própria hostilidade, mesmo que subjuguemos um inimigo externo, outros surgirão. 

Shantideva também usa a imagem de que o verdadeiro adversário é o adversário interno, ou seja, nossas emoções perturbadoras, e coloca a paciência como uma forma de superarmos a raiva e a hostilidade. O amor, a compaixão e a paciência são todas forças opositoras à raiva. Shantideva disse que não há como cobrirmos todo a terra com couro para não ferirmos nossos pés nos espinhos. Na verdade, só o que precisamos fazer é cobrir nosso próprio pé com couro. Assim, poderemos ir a qualquer lugar sem nos machucar. Da mesma forma, nunca seremos capazes de nos livrar de todos os inimigos externos, mas se nos livrarmos do inimigo interno, da raiva, poderemos ir a qualquer lugar sem nos machucarmos.

O verdadeiro inimigo são os obstáculos internos — nossas próprias emoções destrutivas — e as forças opositoras são as forças armadas que lutam contra elas. O Buda era da casta dos guerreiros, por isso temos muitas imagens marciais no budismo, o que frequentemente choca as pessoas. Muitos mestres indianos, como Shantideva, continuaram a usar a analogia das batalhas. E mestres tibetanos, como Togme Zangpo, fazem o mesmo, usando analogias como a das forças armadas do amor e da compaixão.

Acho que as analogias marciais podem ser particularmente úteis quando lidamos com nossas próprias emoções perturbadoras, porque realmente é como se estivéssemos travando uma batalha. É uma batalha interna e precisamos lutar muito. É perigosa, e algumas vezes nos machucamos. Se nos engajarmos em práticas de purificação, todo tipo de coisas desagradáveis podem surgir, mas se quisermos nos livrar das emoções perturbadoras mais entranhadas, precisamos lidar com todas.

Se formos lutar, precisamos de muita coragem. Isso vale não só para batalhas externas, mas também para as internas. Quando vemos a tradução tibetana da palavra bodhisattva, percebemos que acrescentaram uma sílaba no final, mudando o significado da palavra para corajoso, valente. Esse não é precisamente o significado no Sânscrito. A palavra tibetana para bodhisattva é jang-chub sem-pa. A primeira parte de palavra, jang-chub , é o equivalente tibetano à bodhi, que significa iluminação. A segunda parte, sem-pa, seria sattva, o que significa um ser que tem uma mente. No entanto, os tibetanos trocaram o pa por dpa’, que tem exatamente a mesma pronúncia, mas que significa corajoso ou valente.

Acho que todos sabemos disso por experiência própria. Podemos deixar de ter raiva de uma determinada pessoa ou situação, mas continuaremos a ficar com raiva em outras situações no futuro. Conseguir superar um episódio de raiva não resolve a situação, precisamos continuar lutando.

(21) A prática de um bodhisattva é abandonar qualquer objeto que faça nosso apego aumentar, pois os objetos do desejo são como água salgada: quanto mais [os] aproveitamos, [mais] nossa sede aumenta.

Vimos isso quando falamos do sofrimento da mudança. Prazeres mundanos, coisas pelas quais temos grande apego e desejo, nunca irão nos satisfazer. Nunca teremos o bastante. Podemos ter bastante comida e sexo por um tempo, mas depois vamos querer mais. Isto refere-se especificamente aos objetos que fazem nosso apego aumentar. Existe uma diferença em desejo e apego. Desejo é por algo que não temos, e apego é algo temos e não queremos perder.

Todos temos coisas as quais somos muito apegados. Tenho um amigo que é inacreditavelmente apegado a livros de dharma e compra-os compulsivamente, mesmo que nunca tenha tempo de ler. Togme Zangpo diz que o remédio para isso é abandonar o objeto. Sugeri a meu amigo que doasse seus livros para uma instituição, como um centro de dharma, por exemplo, onde outras pessoas pudessem se beneficiar deles. Quanto mais ele fica com seus livros, mais apegado fica e mais ele compra! Quando somos muito apegados a alguma coisa, o que quer que seja, o melhor remédio é compartilhar. Podemos doar roupas que nunca usamos e até abrir nossa casa para atividades do dharma.

Togme Zangpo sempre diz que os objetos do desejo, aos quais somos apegados, são como água salgada. Quanto mais tomamos, mais sede temos. Quanto mais objetos de apego acumulamos, mais apegados ficamos. Queremos mais e mais, e nunca temos o suficiente. Quem aqui acha que tem dinheiro suficiente no banco? Sempre queremos mais e mais.

Obviamente, apenas doar nossos objetos não é a solução mais profunda, porque ainda podemos ficar com o desejo de tê-los de volta. Mas, como uma forma inicial de lidar com a questão, pode ser útil. Em um verso anterior, Togme Zangpo disse que somos muito apegados à nossa terra natal, onde o apego aos amigos nos deixa agitados como a água, e por isso seria melhor deixarmos a terra natal. Isso também está relacionado à este verso.

Acabou de me ocorrer um exemplo: existem pais que não largam os filhos, e quanto mais ficam juntos, mais apegados ficam. Mas é claro que é importante eles terem vida própria. Quando pequenos, precisamos deixá-los ir à escola, dormir na casa dos amigos e, mais tarde, fazer faculdade em outra cidade. Também precisamos nos desapegar para deixá-los casar e mudar para outro lugar. Existem muito pais que não aprovam os namorados ou namoradas dos filhos, não importa quem seja. Isto é porque são muito apegados e não querem “perdê-los”.

Claro que podemos perguntar: “Será que Togme Zangpo realmente queria que abandonássemos nosso computador e celular?” Isso nos dá muito o que pensar, já que é uma questão cada vez mais proeminente. Existem pessoas que são tão viciadas que ficam o tempo todo olhando o celular, ou então deixam o computador o dia todo ligado e conectado à internet para que possam ver os e-mails assim que chegam. E pode ser que eles sejam como eu, que adoro notícias, e de tempos em tempos verifico se têm notícias novas na internet ou televisão. Muitas pessoas são viciadas em estações de rádio especializadas em notícias, e ouvem a mesma história várias vezes. O conselho de abandonar essas coisas pode ser muito útil, mesmo que não abandonemos completamente. Eu acho muito difícil verificar os emails ou as notícias apenas uma vez ao dia ou usar o celular apenas quando necessário.

Um último exemplo relacionado aos objetos de apego tem a ver com comida. Quando somos muito apegados a chocolates, biscoitos e guloseimas em geral, e precisamos fazer uma dieta, será extremamente difícil não comê-las se as tivermos em casa. A melhor e talvez única forma de mantermos a dieta é simplesmente não comprar essas coisas. Simplesmente não ter guloseimas em casa, pois, se tivermos, vamos comer. Não é verdade? Tenho certeza que todos já passaram por isso se algum dia fizeram uma dieta.

Desenvolvendo a Bodhichitta Mais Profunda, A Realização da Vacuidade

A próxima sessão cobre o desenvolvimento da bodhichitta mais profunda. Temos a bodhichitta convencional, ou relativa, que visa atingir a iluminação para beneficiar todos os seres, e temos a bodhichitta mais profunda, que visa a vacuidade, especificamente a vacuidade da mente. Isso é essencial à nossa prática de bodhisattva.

(22) A prática de um bodhisattva é não ter em mente qualidades inerentes aos objetos e à mente que os tomou [como objetos], por perceber como as coisas são. Não importa como as coisas parecem [ser], elas vêm de nossa mente; e a mente em si, desde o início, é separada dos extremos da fabricação mental. 

Quando falamos de vacuidade, dentro do budismo, nos referimos à ausência de algo, algo que nunca esteve lá. Esse algo é a maneira impossível de estabelecer ou considerar a existência de objetos válidos e conhecíveis como sendo aquilo que parecem ser. Formas impossíveis de existência nunca existiram, não é? O exemplo mais simples é pensar: “Sou a pessoa mais importante do universo, porque sou o centro do universo. E já que sou tão importante, as coisas devem sempre estar do meu jeito. Todos devem sempre me dar amor e atenção.” Impossível! Mesmo que essa pareça ser a realidade, por conta da importância que damos a nós mesmos, ninguém pode se estabelecer como o centro do universo; todos somo desprovidos de tal forma impossível de existência. Nunca foi assim.

Para compreendermos a bodhichitta mais profunda, precisamos perceber que existem formas cada vez mais sutis de considerarmos que os objetos válidos conhecidos existem da forma que parecem existir. Não é fácil reconhecermos esses níveis mais sutis. Portanto, primeiro precisamos refutar e esclarecer os níveis mais grosseiros, no sentido de perceber que não correspondem a como as coisas existem de fato. E então trabalharmos em níveis cada vez mais sutis.

Podemos olhar esse verso sob o ponto de vista Sakya, pelo qual as coisas podem aparecer como objetos externos que surgem de uma fonte própria, e a mente que os percebe também surge de uma fonte própria e totalmente separada. Por exemplo, podemos achar que uma determinada pessoa é terrível e que isso vem dela, a vemos como se realmente tivesse essa característica, inerentemente, como se realmente fosse a pessoa terrível que aparece para nós, e que é assim que aparece para todo mundo, não apenas para a nossa percepção. O texto diz para não prestarmos atenção nisso. Não ter isso à mente, devemos perceber como as coisas são. Em outras palavras, não importa que apareçam dessa forma dualística, essas aparências vêm de nossa própria mente. A aparência dessa pessoa como uma pessoa terrível e a mente que a vê como terrível vêm da mesma semente kármica em nossa mente, e não de duas fontes diferentes.

Mas é importante notarmos que a mente não é um projetor verdadeiramente existente de aparências. A mente em si também é desprovida de existência como entidade verdadeiramente encontrável. A natureza pura da mente é não existir como algo que projeta essas fabricações mentais, essas aparências ridículas de existência dual. Essa seria a maneira Sakya de entender o verso, que certamente foi o que Togme Zangpo tinha em mente quando o escreveu, já que seguia a escola Sakya do budismo tibetano. Encontramos uma forma semelhante de discutirmos a vacuidade no Treinamento da Mente em Sete Pontos, para o qual Togme Zangpo também escreveu um comentário, e que também explica a vacuidade sob o ponto de vista Sakya.

Se interpretarmos o verso usando a abordagem Gelugpa mais recente, podemos compreendê-lo em um nível diferente. Usando o exemplo acima, a pessoa parece possuir alguma qualidade inerente que, por si só, é responsável por ela aparecer para mim como uma pessoa terrível. Não devemos deixar que nossa mente se apegue a isso, uma vez que não é assim que as coisas são . Essa aparência enganadora está vindo de nossa própria mente — quer seja dos potenciais kármicos ou do hábito constante de ansiarmos que as coisas existam de formas impossíveis. Da forma como as coisas realmente são, a pessoa parece terrível por causa de uma característica pessoal inerente somada ao rótulo mental do nosso conceito de “terrível”; ou, em um nível mais sutil, simplesmente por conta do rótulo mental do nosso conceito de “terrível”.

E mais, a mente em si é separada dos extremos da fabricação mental, ou seja, ela é destituída de qualquer forma impossível e mentalmente fabricada de existência. Essa passagem refere-se à vacuidade da natureza convencional da mente (a atividade mental de dar surgimento às aparências e conhecê-las) e da natureza mais profunda da mente (a vacuidade).

Esse verso é muito profundo e requer muito estudo. Mesmo que não compreendamos muito bem a explicação, podemos apreciar a profundidade dos ensinamentos sobre a vacuidade e os vários níveis em que podemos compreendê-los. Assim, desenvolveremos respeito e interesse em aprofundar e compreender o assunto.

Tudo o que falamos aqui é muito importante para conseguirmos ajudar os demais. Se pensarmos que existe um pobre ser sofrendo lá fora, e que existe algo encontrável nele que, por si só, faça com que ele seja um pobre sofredor, ele nunca poderá mudar, não importa o que tentemos fazer para ajudar. Esse tipo de entendimento é realmente muito importante, não é?

Quando estamos investigando a vacuidade e tentando compreendê-la, existem duas fases de compreensão. A primeira é quando nossa concentração está totalmente absorvida na compreensão de que “Não existe tal coisa”, tal maneira impossível de existir. Para nossa mente ficar totalmente absorvida em “não existe tal coisa”, nossa compreensão deve estar baseada em uma firme convicção, que vem da investigação e da lógica de que essa forma de existência é realmente impossível. Por exemplo, quando dizemos “Não tem chocolate em casa”, podemos não estar muito convencidos. Mas se procurarmos em toda a casa e não acharmos chocolate, nossa convicção será muito maior. Podemos também pensar: “não tem nada interessante na TV”. Podemos chegar a essa conclusão antes mesmo de procurar por um programa interessante ou podemos procurar em todos os canais. Quando procuramos em todos os canais e mesmo assim não encontramos nada interessante, ficamos ainda mais convencidos de que realmente “não há nada interessante passando na TV”.

Essa é a primeira fase, a absorção total em “não existe tal coisa”, ou seja, na vacuidade. Quando focamos nisso, é como focarmos em “não tem chocolate em casa”. O que aparece? Nada. E concluímos que realmente não tem chocolate em casa. Portanto, quando estamos totalmente absorvidos na vacuidade, nada aparece. E então temos a fase do atingimento subsequente. Essa fase também é chamada de fase “pós-meditativa”, mas essa não é uma tradução adequada, pois ainda estamos meditando.

Depois da absorção total, percebemos que tudo é uma ilusão. Apesar de parecer haver algo interessante na TV, é como uma ilusão. Apesar das coisas parecerem existir de uma maneira sólida, por si só, elas são como uma ilusão. Uma ilusão aparece, mas não existe da forma que parece existir. Ela parece ser algo sólido, mas não é.

(23) A prática de um bodhisattva é: ao encontrar-se com objetos agradáveis, não os tomar como verdadeiramente existentes, mesmo que pareçam bonitos como um arco-íris de verão, e [assim] livrar-se do aferramento e do apego. 

Quando encontramos objetos [dos sentidos] bonitos, sejam eles pessoas ou coisas, o conselho é tentar perceber que não possuem uma qualidade inerente e encontrável que os faça bonitos por si só. Objetos não são inerentemente maravilhosos, fazendo com que tenhamos que tê-los. Não há nada neles que os faça atraentes e poderosos por si só, independente de qualquer outra coisa. Talvez os objetos possam parecer inerentemente bonitos, atraentes e maravilhosos por si só, mas precisamos perceber que eles não existem dessa forma. Isso seria impossível, eles apenas parecem ser assim, como uma ilusão. A analogia que usamos aqui é a de um arco-íris de verão. Um arco-íris é lindo e parece existir de forma sólida e ser inerentemente bonito. Mas não há nada sólido nele. Quanto mais o examinamos, mais percebemos que não há nada a ser encontrado.

Uma palavra importante aqui é como. As coisas são como uma ilusão. Não é que todas as coisas sejam uma ilusão. Existe uma grande diferença entre uma ilusão e algo que é como uma ilusão. Shantideva usa o exemplo de um mágico criando a ilusão de um cavalo; matar a ilusão do cavalo e matar um cavalo real é bem diferente em termos das consequências kármicas. As consequências dependem de realmente estarmos afetando alguém quando executamos esse ato. Portanto, tudo é como uma ilusão, como um arco-íris de verão.

Dessa forma, tentamos nos livrar do aferramento e do apego que sentimos automaticamente, mesmo que já tenhamos tido uma experiência inicial de cognição não conceitual da vacuidade. Essa experiência nos livra do apego que pode ter tido como base alguma doutrina de outra escola não budista; no entanto, ainda teremos o apego que surge automaticamente, então precisamos continuar trabalhando com a vacuidade.

Consequentemente, desenvolvemos a compreensão de que a prática mencionada por Togme Zangpo nos dois versos anteriores, onde nos livramos dos objetos que causam apego e anseio, é apenas uma solução temporária. A solução mais profunda é realmente desenvolvermos a compreensão da vacuidade dos objetos aparentemente bonitos, percebendo que não existem dessa maneira impossível, que não são inerentemente bonitos e agradáveis, por si só.

(24) A prática de um bodhisattva é: quando encontrar situações adversas, vê-las como enganadoras, pois muitos sofrimentos são como a morte de um filho em um sonho, e tomar [tais] aparências enganadoras como verdade é um cansativo desperdício de tempo. 

Isso refere-se à situação oposta, ou seja, a quando encontramos objetos que achamos desagradáveis ou condições achamos adversas. Precisamos ver que essas coisas também são como uma ilusão. O objeto desagradável e a condição adversa parecem ser autoestabelecidos como desagradável e adverso, mas isso é um engano. É um engano porque a forma como aparecem não corresponde à forma como realmente existem. Pensamos que existem da forma que aparecem, por isso dizemos que nos enganam.

Perceber os vários sofrimentos como inerentemente horríveis, e sentir que não conseguimos dar conta, é semelhante à morte de um filho em sonho. Quando vivenciamos a morte de um filho em sonho, certamente parece real e horrível, mas então acordamos e vemos que foi só um sonho. A aparência que vimos no sonho era enganosa, pois parecia real, mas acreditamos nela. Da mesma forma, apesar do estado desperto não ser igual a um sonho, nele as coisas também têm uma aparência enganosa.

Este verso refere-se especificamente à condições adversas e a como as coisas difíceis que acontecem conosco parecem ser verdadeiramente existentes quando não são.

As condições adversas que encontramos parecem muito horríveis, mas são horríveis simplesmente pelo poder do rótulo mental “horrível”. O que é na verdade uma situação horrível? Uma situação horrível é aquilo a que nos referimos quando usamos o rótulo “horrível”. Mas não há nada na situação em si que a faça ser horrível. Afinal, fomos nós e um grupo de pessoas na nossa sociedade que criamos o conceito de horrível. Definimos o termo, colocamos no dicionário e usamos para rotular coisas. Mas o conceito de “horrível”, como diz o verso, é criado pela mente. É válido quando falamos de uma situação difícil, uma situação horrível, em que todos concordam e usam tal terminologia. Convencionalmente é válida. Mas parece que existe algo na situação em si que faz com que seja horrível. Isso é enganoso, é uma aparência que se assemelha a uma ilusão. Quando consideramos essas aparências enganosas verdadeiras, é um cansativo desperdício. É um desperdício de tempo, pois só nos deixa mais cansados e exacerba nosso sofrimento

Por exemplo, se batermos com o pé em um móvel, dói. Claro que dói, mas seria um desperdício cansativo levar isso ao extremo de ficar pulando e gritando “que coisa horrível que aconteceu comigo”. Certamente não nos faria sentir melhor. Apenas prolongaria nosso sofrimento. Eu bati o pé, causa e efeito, ele dói. E daí? Alguma novidade? O que eu devia esperar do samsara?

Perguntas

O verso 21 fala em abandonarmos os objetos que fazem com que nosso aferramento e apego aumentem. Qual é a diferença entre esses dois termos e os termos anseio e desejo?

Existem muitos termos técnicos no budismo, que parecem similares mas tem definições e usos muito específicos. Quando falamos em nos aferrarmos, falamos em segurar fortemente alguma coisa que gostamos. A tradição Sakya aponta quatro coisas principais às quais devemos deixar de nos aferrar: as coisas desta vida, as coisas das vidas futuras, nossos objetivos egoístas e formas impossíveis de existência. O termos “aferramento” também é utilizado no contexto da cognição conceitual. Quando pensamos em algo como membro de uma categoria conceitual, nosso cachorro na categoria de um animal de estimação, por exemplo, dizemos que o objeto ao qual essa cognição conceitual se aferra é nosso animal de estimação.

Apego é quando já temos algo que consideramos desejável, exageramos suas qualidades e não o largamos. Desejo é quando não temos algo que queremos, provavelmente exageramos suas boas qualidades e ansiamos tê-lo. Anseio é literalmente a palavra “sede” e é usado especificamente em relação a sentimentos de felicidade e infelicidade. Quando experimentamos um pouquinho de felicidade, temos tanta sede que não queremos que ela acabe. E, quando experimentamos infelicidade, temos sede de separação.

Podemos perceber que a análise dos vários estados mentais pela psicologia budista é muito sofisticada. Existem muitas distinções e infelizmente nem sempre possuímos os termos específico em nosso idioma. Quando conhecemos a terminologia original e sua definição, podemos realmente entender do que se trata o texto em questão.

Acho muito difícil entender a vacuidade, mas quando ouço seus exemplos, penso: “Claro, é tudo como um sonho”. Mas no dia-a-dia não consigo integrar essa compreensão. Como fazer isso?

A única forma de integrar é a meditação a respeito disso, ou seja, praticar continuamente e pensar no assunto o máximo possível. Uma vez que tenhamos compreendido o assunto através da meditação, podemos perceber que as situações que enfrentamos são semelhantes a ilusões. Quanto mais aplicarmos isso, mais natural ficará, e menos incomodados ficaremos com os altos e baixos do samsara.

Por exemplo, recentemente fui convidado a visitar e ensinar em Bogotá, Colombia, antes desta viagem ao México. Sua Santidade o Dalai Lama visitará o país em algumas semanas e eles disseram que eu poderia ajudá-los a se prepararem. Os dias que eu estaria lá seriam os dias da Páscoa, então lhes perguntei se realmente teriam tempo para organizar e comparecer ao curso. Certificaram-me de que não haveria problema. Mas pensei nesse curso como um sonho e não lhe dei muita realidade. Comprei a passagem e fiz os preparativos.

Algumas semanas antes da data que deveria viajar, recebi um email da Colômbia dizendo que seria muito difícil organizarem duas visitas, a minha e a de Sua Santidade. Eles estavam cancelando a minha viagem e não os culpei. Apenas respondi: “Eu disse!” Verifiquei quanto teria que pagar para cancelar a passagem e como isso afetaria minha vinda para o México, sem maiores dilemas. Não fiquei feliz e nem triste.

Mas quando lhes falei das taxas que teriam que pagar pelo cancelamento da passagem, responderam dizendo que então eu fosse. De novo, não fiquei feliz e nem triste. Tudo certo, então eu iria, e não fiquei pensando no assunto.

Porém, doze dias antes da data da viagem, recebi um novo email dizendo que eles perguntaram quem poderia comparecer aos ensinamentos e nem o tradutor estaria disponível. Perceberam que realmente precisavam cancelar. Foi como uma ilusão, não fiquei nem feliz e nem triste. Simplesmente cancelei a passagem. Não sofri e nem fiquei animado. Não foi nada de mais, foi como um sonho, sobre o qual não precisamos pensar. Se conseguirmos aplicar os ensinamentos sobre a vacuidade e sobre tudo ser como uma ilusão, veremos que são incrivelmente eficientes, mas é preciso nos familiarizarmos antes com eles.

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