O que significa natureza búdica (sangs-rgyas-kyi rigs)? Não se trata de uma natureza singular que todos temos por já sermos budas ou de um único fator que nos permitirá – como um potencial – nos tornarmos budas. Trata-se de toda uma rede de muitos fatores diferentes que nos permitem tornarmos budas.
Quando consideramos esses fatores, precisamos considerá-los fora dos dois extremos. Esses extremos são explicados com a explicação da vacuidade dos resultados: não é que um resultado surja do nada. E o outro extremo é que não é que o resultado já exista dentro da causa e esteja só esperando para aparecer. Então, não é que o estado búdico – o resultado do qual estamos falando – venha do nada, que não haja uma base ou fundamentação para ele e nenhum nexo causal de muito e muitos fatores que fazem com que ele surja. E não é que ele venha de absolutamente nada, que não existia e então – puf! – do nada surge algo. E também não é que o resultado, o estado búdico, já esteja sentado dentro de nós, só que nós não o reconhecemos, e basta o reconhecermos.
Temos todos esses fatores causais no nível da base, eles já estão lá, em todos os seres, e quando forem combinados com muitas outras causas suscitarão o atingimento do estado búdico. Então quais são esses fatores que todos nós temos? Eles estão divididos em 3 grupos:
Fatores em Evolução
O primeiro grupo é dos fatores em evolução. Essas são coisas que se transformam nos corpos não estáticos dos budas. Budas possuem o que geralmente é traduzido como corpos (sku, Skt. kaya) diferentes. Corpo é uma tradução um pouco estranha. Porém, pelo menos no inglês, há uma outra palavra, “corpus”, que é usada em expressões como um corpus de literatura, um corpus de conhecimento, e significa uma rede de muitas coisas diferentes. Existem essas várias redes de um buda, que são não-estáticas, ou seja, mudam de momento a momento: primeiro é uma coisa, depois outra e assim por diante, e segue assim para sempre.
Temos dois corpus, duas redes ou dois grupos que são formas de fenômenos físicos, os assim chamados Corpos de Forma (gzugs-sku, Skt. rupakaya). Um é o Sambhogakaya (longs-spyod rdzogs-pa’i sku, Corpus de Uso Completo). Esta palavra, sambhoga, é uma palavra difícil, possui muitos significados diferentes, assim como a sua tradução tibetana. Um dos significados é “desfrutar”, então muitas pessoas traduzem como Corpo de Desfrute. Também pode ser traduzida como “comer”; mas ninguém traduz como Corpo de Comer. Porém, o outro significado é “fazer uso de alguma coisa”, e esse é o significado aqui: é o “corpus de formas sutis que fazem uso completo dos ensinamentos Mahayana”. Essas são as formas sutis que ensinam os arya bodhisattvas (bodhisattvas altamente realizados) em terras puras, e podem ensinar todo o escopo dos ensinamentos Mahayana para sempre. Isso é Sambhogakaya. E esses corpos aparecem na forma completa de um buda, com todos os vários sinais físicos.
E o Nirmanakaya (sprul-sku) é o Corpus de Emanação desse Sambhogakaya, que pode ensinar pessoas comuns (e não só arya bodhisattvas), em situações comuns. E, adicionalmente, há um outro corpus não-estático de um buda, que é chamado de Dharmakaya de Consciência Profunda (ye-shes chos-sku, Skt. jnana-dharmakaya, Corpus de Consciência Profunda Que a Tudo Engloba).
Estamos falando das características em evolução. As características em evolução se transformam nos corpus, ou corpos, não-estáticos de um buda, e existem três: dois são Corpos de Forma – Sambhogakaya e Nirmanakaya – e um é o Dhamakaya de Consciência Profunda.
Dhamakaya é um corpus que engloba tudo. Dharma, nesse contexto, significa “todos os fenômenos”, portanto, todas as coisas. E isso refere-se à consciência profunda (ye-shes, Skt. jnana) – portanto, a mente onisciente de um buda – que engloba tudo (e também podemos pensar em termos da mente amorosa de um buda; que também se estende igualmente para absolutamente todos) e está simultaneamente ciente das duas verdades sobre tudo, a verdade mais profunda e a verdade convencional. E isso também é não-estático, no sentido de que apesar de um buda estar ciente de tudo simultaneamente – em um único momento um buda está ciente de um ser, ajudando-o, e (ajudando) outro ser também. Então, nesse contexto de ter consciência de tudo o tempo todo, ainda assim mudando ligeiramente. Não é muito fácil de entender.
Esses são os corpos em evolução de um buda (usaremos a palavra corpo; é mais fácil de falar).
Fatores Permanentes
E então temos os fatores permanentes. Esse é o segundo entre os três tipos de fatores da natureza búdica. Vimos os fatores em evolução e agora os fatores permanentes. Permanente significa que “permanece igual o tempo todo”, e isso refere-se à vacuidade de nosso contínuo mental. Isso é o que possibilita os corpos estáticos de um buda. E o corpo estático de um buda refere-se ao que no sânscrito chamamos Svabhavakaya (ngo-bo-nyid sku). Isso pode ser traduzido como Corpo (ou Corpus) de Natureza Essencial. Também é um tipo de Dharmakaya: ele comporta, ou engloba, tudo. E é a vacuidade da mente, da mente onisciente de um buda; engloba tudo.
Agora, é importante notar que essa explicação que acabei de dar é Gelugpa. Nas outras tradições tibetanas há pequenas variações, particularmente no que diz respeito ao Dharmakaya, mas não precisamos entrar nisso agora. E do ponto de vista do tantra, quando falamos em Sambhogakaya, geralmente é ele explicado como sendo a fala de um buda; portanto, é uma forma física sutil de um buda. E no Kalachakra se explica como sendo essas formas sutis e a fala. De qualquer forma, não precisamos entrar em todas essas variações. Existem variações; você deve pelo menos estar ciente disso, para não se chocar quando ouvir uma explicação um pouco diferente. O budismo é cheio de variações, em quase tudo, é cheio explicações diferentes, o que na verdade é muito bom, pois assim podemos ver esse material a partir de muitos pontos de vista diferentes e cada variação nos dá um insight diferente.
Portanto, temos as características ou facetas em evolução, facetas da natureza búdica, e temos as permanentes. A vacuidade de nosso contínuo mental é responsável pela vacuidade do contínuo mental de um buda, isso é estático: não muda. Como nosso contínuo mental não existe de uma forma impossível, isso permite nossa transformação em um buda; e o contínuo mental de um buda também não existe de nenhuma forma impossível.
Fatores Que Podem Ser Estimulados a Crescer
Temos os aspectos em evolução, os aspectos permanentes e o terceiro tipo de fator da natureza búdica, que é uma certa faceta ou aspecto de nosso contínuo mental que permite que os fatores imputados nele, que ele carrega, sejam estimulados ou cresçam. E essa capacidade de ser estimulado e crescer deve-se a capacidade de ser afetado por inspiração. Inspiração (byin-gyis rlabs, Skt. adhishthana) é normalmente traduzido como benção, o que acho que pode causar muita confusão. No sânscrito, essa palavra tem a conotação de “elevar” [o estado de espírito] e no tibetano implica em “clarear”, portanto, talvez a palavra inspiração cubra esses significados. O Buda e os grandes mestres espirituais são muito inspiradores, e essa inspiração pode nos estimular, elevar nosso estado de espírito, de forma que as várias qualidades que temos – compaixão, energia, etc – se fortaleçam. Esse é um fator da natureza búdica. É por isso que o papel do professor espiritual é sempre enfatizado, especialmente nas tradições indianas e tibetanas do Mahayana, mas também em todos os aspectos do budismo. E quando falamos de iniciação (dbang, Skt. abhishekha) no tantra, estamos falando de uma cerimônia na qual essa inspiração, essa elevação [do estado de espírito] – uma espécie de ativação desses fatores da natureza búdica – ocorre.
Fatores em Evolução: As Duas Redes
Vejamos mais de perto os fatores em evolução. Os principais fatores que são geralmente apresentados são os que chamamos de duas redes (tshogs-gnyis): a rede de força positiva (bsod-nams-kyi tshogs, Skt. punyasambhara e a rede de consciência profunda (ye-shes-kyi tshogs, Skt. jnanasambhara). Outros tradutores costumam traduzir as redes (tshogs), como “coleções” – portanto, as duas coleções – mas não são apenas coleções, como uma coleção de selos; são vários fatores que interagem uns com os outros. É por isso que chamo de rede. E força positiva (bsod-nams) é normalmente traduzido como “mérito”, mas mérito é um termo muito vago, difícil de entender. E a rede de consciência profunda é geralmente traduzida como uma coleção de sabedoria, mas “sabedoria” também é uma palavra muito vaga nas línguas ocidentais.
Agora, essa afirmação de que todos temos, como parte dos fatores da natureza búdica, essas duas redes, pode nos surpreender. Poderíamos dizer: “Bom, eu nunca fiz nada de positivo em minha vida. Então como posso ter uma rede de força positiva? E essa barata no chão, que tipo de mérito ou força positiva ela tem?” É uma boa pergunta, não é? Bom, podemos ter certeza que, como seres humanos, possuímos uma rede de força positiva; caso contrário, nunca teríamos nascido humanos, e, principalmente, não teríamos uma vida humana preciosa. Portanto, isso demonstra claramente que possuímos uma rede de força positiva. E quanto à nossa amiga barata? Bom, do ponto de vista budista poderíamos dizer que, por termos infinitas vidas passadas, em algum ponto essa barata foi nossa mãe, etc, um ser humano. Mas para muitas pessoas isso não é muito convincente. Porém o fato de que a barata ainda está viva, andando no chão e de ninguém ter pisado nela ou tentado exterminá-la com inseticida demonstra que ela possui alguma força positiva que está permitindo que ela permaneça viva, que tenha uma vida longa, relativamente. Espero que apreciem o fato de que a análise lógica com base nos princípios budistas é muito importante para desenvolvermos algum tipo de convicção em afirmações budistas do tipo “todos possuem uma rede de força positiva”.
E essa rede de consciência profunda? Para nos convencermos disso, precisamos olhar para uma maneira de dividi-la, que é o sistema dos, assim chamadas, cinco tipos de consciências profundas (às vezes chamadas de cinco sabedorias búdicas, mas isso fica realmente meio obscuro). Sem entrar em detalhes, uma delas é a consciência profunda que é como um espelho (me-long lta-bu’i ye-shes), que absorve informação; [há também a consciência profunda] da igualdade (mnyam-nyid ye-shes), que é a capacidade de juntar as coisas; etc. Não entrarei em todas as cinco, vocês podem ler sobre elas no site. Mas [o fato é que] aquela barata é capaz de absorver informações, e é capaz de juntar as coisas, como, por exemplo, este item e aquele item são comida; ela tem a consciência profunda realizadora (ela sabe o que fazer com a comida: comer); etc. Portanto, todos temos uma rede de consciências profundas; é um fator da natureza búdica.
Agora, a força positiva, essa rede de força positiva, é desenvolvida através do comportamento construtivo. Agora estou generalizando. E a consciência profunda, se olharmos para ela, de um ponto de vista técnico, ela vem da apreensão dos dezesseis aspectos das quatro nobres verdades ou, mais especificamente, a apreensão da vacuidade. Explicarei o que a palavra “apreensão” significa. “Apreensão” significa uma cognição correta e decisiva de algo. Portanto, apesar de ser a mesma palavra que “entender”, em tibetano, ela tem um significado muito específico: é correto e é decisivo. E isso é olhar a consciência profunda de um ponto de vista técnico e não necessariamente do sistema das cinco consciências profundas ao qual eu estava me referindo.
Agora lembre-se que os fatores em evolução – essas duas redes – são aquilo que se transformará nos corpos não-estáticos de um buda. A força positiva é a causa obtentora (nyer-len-gyi rgyu) para os Corpos de Forma, o Nirmanakaya e o Sambhogakaya (explicarei o que é uma causa obtentora). E a rede de consciência profunda é aquilo que é conhecido como a condição simultânea (lhan-cig byed-pa’i rkyen) necessária para esses Corpos de Forma. E o Dharmakaya da Consciência Profunda é o contrário: a rede de consciência profunda é a causa obtentora e a rede de força positiva é a condição que age simultaneamente. Então agora que vimos a definição técnica, o que significam esses termos?
A causa obtentora é a causa a partir da qual se obtém o resultado; por isso é chamada causa obtentora. É um tipo de fonte natal (rdzas) que gera algo como sua sucessora em um contínuo e que deixa de existir quando o resultado, o surgimento, estiver completo. Exemplo simples: uma semente e um broto. É a fonte natal. O broto vem da semente, ela gera o broto como seu sucessor, e ele está em um contínuo; e uma vez que o surgimento do broto estiver totalmente finalizado, a semente deixa de existir. Portanto, da semente você obtém o broto. Isso é uma causa obtentora.
E uma condição que age simultaneamente é algo que existe antes do surgimento e ajuda no surgimento, ajuda a surgir. Portanto, age simultaneamente com a causa obtentora, mas em si não se transforma no resultado.
Essa rede de força positiva irá gerar o resultado. Se pensarmos em um buda, seria os Corpos de Forma. Ela se transforma no resultado e, quando a transformação termina, ela não existe mais, não temos mais a rede de força positiva (um buda não possui uma rede de força positiva; um buda possui Corpos de Forma). E para essa força positiva se transformar nesses Corpos de Forma, ela tem que estar acompanhada de uma rede de consciência profunda.
Pense nisso. O que isso significa é que estamos fazendo muitas coisas positivas, certo? Comportamento construtivo. Isso gera muita força positiva. E todas essas ações que fazemos sem sermos um buda (ainda) é o que se transformará nos corpos de buda, com os quais faremos as coisas como um buda – maneiras físicas, ajudar os outros, Corpos de Forma. Não temos mais aquela rede de coisas que eram associadas com não ser iluminado, pois agora somos iluminados; então isso deixou de existir. Mas apenas ajudar a todos, gerar um monte de força positiva, não é suficiente, pois precisamos da ajuda da consciência profunda da vacuidade. Sem o entendimento da vacuidade, todo aquele comportamento construtivo não irá gerar os corpos físicos de um buda. Você só conseguirá ajudar cada vez mais as pessoas, mas não como um buda; pois estará apegado à existência verdadeiramente estabelecida – do que estiver fazendo e de si mesmo como a pessoa que está ajudando.
E vice versa; a rede de consciência profunda – sempre apreender, ter um entendimento correto, um entendimento decisivo das quatro nobres verdades, da vacuidade, etc –se transformará na mente onisciente de um buda. Certo? A mente onisciente de um buda. E isso, a rede de consciência profunda não onisciente, irá cessar quando tornar-se uma rede onisciente. Mas ela precisa estar acompanhada do desenvolvimento de força positiva; caso contrário, será apenas algo intelectual.
A única diferença entre sutra e tantra, no que diz respeito a isso, tem a ver com os métodos para gerar força positiva, que são as causas obtentoras para nos tornarmos budas; em outras palavras, [o método é] nos visualizarmos como uma figura búdica (yi-dam). Imaginar-nos como um buda, no tantra, – a assim chamada yoga da deidade – se faz, é claro, com base em termos gerado muita força construtiva, em termos feito coisas positivas. Não é só sentar e: “Eu sou um buda!” e não ajudar ninguém, não levantar nem um dedo para ajudar os outros – prejudicar os outros. Não é assim.
Esses são os fatores em evolução.
O Fator Permanente: A Vacuidade do Contínuo Mental
O fator permanente, a vacuidade do contínuo mental – que permite a transformação – é estático; permanece o mesmo antes de nos iluminarmos e depois de nos iluminarmos. É a vacuidade do contínuo mental do estado não iluminado que permite a transformação. Mesmo em um ser iluminado, o contínuo mental é desprovido de maneiras impossíveis de existir (Essa é a apresentação Gelugpa). A vacuidade do contínuo mental refere-se, no nível de um buda, ao Corpo de Natureza Essencial (Svabhavakaya), à vacuidade da mente onisciente de um buda. [O fator permanente da natureza búdica, essa vacuidade, é o responsável pelo Corpo de Natureza Essencial, a vacuidade da mente de um buda]. Não é que uma coisa se transforme na outra; é a mesma coisa. A vacuidade do contínuo mental não é afetada pelas várias coisas que são carregadas nesse contínuo mental, imputadas nele. E conforme já dei a dica, algumas das tradições não Gelugpa possuem, além dessa, outras explicações, algumas variantes, e provavelmente não é bom trazermos isso à tona agora; pode confundir um pouco.
Resumo
Tomemos alguns minutos para digerir o que cobrimos até agora. O que foi que cobrimos? Estamos falando de quais são os fatores responsáveis por nos tornarmos budas, todos nós, inclusive as baratas, incluindo aqueles seres que nesta vida por acaso possuem o carma de ser uma barata. Lembre-se, no que diz respeito aos renascimentos, ninguém será uma barata para sempre, e ninguém (incluindo nós mesmos) será humano para sempre, em todas as vidas, a menos que façamos algo para que isso aconteça.
Como é possível que eu e a barata, ambos nos tornemos iluminados? Não é que não haja uma base para isso em nosso contínuo mental, não é que nossa iluminação venha do nada. E não é que ela exista agora em nosso contínuo mental, só esperando para aparecer quando percebermos que ela está lá. Mas existem muitos, muitos fatores, que todos temos, e que são parte de nosso contínuo mental – alguns se transformam em certos corpos de um buda, outro são apenas responsáveis pela natureza desses corpos de um buda – e com inspiração de um professor espiritual, eles podem ser estimulados a crescer. E eles crescem não só por conta dessa estimulação, mas também temos que gerar várias causas que irão fortalecer essas redes, as redes de força positiva e consciência profunda. Essas são as características em evolução.
Então vamos digerir e tentar pensar sobre isso para entender corretamente e decisivamente.
Como Desenvolver a Rede de Força Positiva?
A força positiva, a rede de força positiva que todos temos – demonstrada pelo fato de que somos humanos— é responsável por termos um corpo físico humano, e com ele obteremos o corpo físico de um buda se desenvolvermos essa rede com mais e mais força positiva, mas assistida pelo entendimento da vacuidade, do por que de estarmos fazendo isso, de quem está fazendo isso, etc. E essa rede de consciência profunda que todos nós temos – pois somos capazes de adquirir informação e ver padrões e saber o que fazer com as coisas, saber o que são as coisas (e isso é bem eficiente agora como seres humanos, pois temos a inteligência humana, somos capazes de distinguir entre o que é benéfico e o que é prejudicial no longo prazo) – podemos fortalecer isso, para que se torne a mente onisciente de um buda. Podemos fazer isso focando, meditando cada vez mais nas quatro nobres verdades e na vacuidade das quatro nobres verdades. As quatro nobres verdades são:
- O verdadeiro sofrimento
- As verdadeiras causas do sofrimento (verdadeiras causas de nossa falta de consciência da vacuidade de como as coisas existem)
- As verdadeiras cessações (realmente é possível nos livrarmos do sofrimento e suas causas, de forma que ele nunca retorne)
- Os verdadeiros caminhos mentais (o verdadeiro entendimento da vacuidade. Isso eliminará as causas do sofrimento e, portanto, eliminará o sofrimento).
Meditar sobre isso com essa apreensão das quatro nobres verdades… Em outras palavras, conhecemos as quatro corretamente e decisivamente. Decisivo. “Eu estou absolutamente convencido de que a compreensão da vacuidade me livrará do sofrimento e eu compreendo corretamente a vacuidade”. Meditar sobre isso com esses cinco tipos de consciência profunda – absorvendo a informação, vendo que tudo é igualmente vazio, etc. – tudo isso se transformará na mente onisciente de um buda, a assim chamada Consciência Profunda de Dharmakaya (Jnana-dharmakaya em sânscrito), se for acompanhado do desenvolvimento de mais e mais força positiva. E me estimulo a gerar mais força positiva e ter mais consciência profunda por influência – inspiração – de meus professores espirituais, dos budas, etc.
Tomemos um momento para digerir isso.
A única coisa que diferencia o sutra do tantra, no que diz respeito ao que acabamos de discutir, é que o tantra possui métodos adicionais especiais para gerar essa rede de força positiva que se transformará nos corpos físicos de um buda – nomeadamente, a yoga da deidade, onde primeiro imaginamos que já temos a forma dessas figuras búdicas. E no anuttarayoga tantra, a mais elevada classe do tantra, tendo dominado o processo de visualização, de imaginar que temos o corpo de um buda, somos capazes de realmente moldar e manifestar nossa energia sutil na forma dessas figuras búdica, com os assim chamados corpos ilusórios (sgyu-lus). Essa é uma diferença. E no anuttarayoga tantra temos outros métodos que nos permitem chegar ao nível mais sutil da mente, que nos permitirão ter exatamente o mesmo entendimento da vacuidade que temos no sutra, porém mais facilmente. Portanto, mais no lado do método. A rede de consciência profunda – é sempre o mesmo entendimento da vacuidade, é apenas em termos de mais métodos para gerar força positiva, métodos mais eficientes para transformar em corpos de um buda e métodos mais eficientes que nos ajudarão a obter aquela cognição não-conceitual da vacuidade.
O ponto importante é que o tantra se encaixa totalmente no contexto do sutra. Não é algo separado, em termos de como ele nos ajuda ou nos permite atingir o estado iluminado de um buda, de modo algum. É tudo baseado nesses fatores da natureza búdica, nessas duas redes, na vacuidade da mente e na inspiração obtida dos budas e dos mestres espirituais.
Vamos digerir isso.
Meditação de Discernimento
Suponho que seja bom eu explicar o que significa digerir isso em meditação. Desculpe-me se simplesmente disse: “vamos digerir isso”, de uma maneira muito simplista, assumindo que todos sabemos o que fazer. O que fazemos – na assim chamada meditação analítica ou de discernimento (dpyad-sgom) – é repetir o resumo do que eu acabei de explicar, o assim chamado tópico, repetir mentalmente. Obviamente isso requer que tenhamos prestado atenção e que nos lembremos [do que ouvimos]. E tendo visto esse material – neste caso não é um argumento lógico, mas similar a uma linha de raciocínio – depois chegamos a uma compreensão desse material, entendemos corretamente e decisivamente. Estamos convencidos de que isso é o que foi explicado e esperamos que, tendo pensado nisso, estejamos convencidos de que está correto, e que é realmente isso que acontece no que diz respeito a como atingir a iluminação. Então com um estado mental ativo, tentamos discernir – “discernimento” (dpyod-pa) esse é o termo técnico – tentamos discernir em termos desse entendimento decisivo. Discernir significa entender essa explicação: Sim, eu tenho uma natureza búdica. Sim, se eu a desenvolver dessa maneira ou daquela ela se transformará em corpos de buda. É assim que eu atinjo a iluminação”. Portanto, é para ver isso, para entender isso ativamente. E depois disso, passamos um período de tempo na meditação de estabilização (’jog-sgom), permanecemos focados nessa certeza e no entendimento com certeza.
É muito importante entendermos isso, o que realmente significa meditar. Não é só ouvir toda essa explicação e depois só sentar sem nada na mente, sem saber muito bem o que fazer e esperando que talvez só sentando passivamente vamos assimilar tudo isso.
Tente fazer isso por alguns minutos em termos do que você lembra e entendeu sobre a natureza búdica. “Eu tenho força positiva. Eu tenho inteligência. Eu posso usar isso, eu posso desenvolver mais e mais, para não apenas obter um renascimento humano precioso e uma mente inteligente, mas para obter os corpos de um buda, através de muito trabalho duro e da inspiração de meus professores”. Mesmo se for só isso, pode ser muito benéfico. Se você começar a divagar e sua mente começar a ficar vazia, reveja tudo novamente, em sua mente, o entendimento.
Perguntas
Qual a diferença entre um ser humano e uma barata, nesse exemplo (se cada um de nós, o humano e a barata, possui os cinco tipos de consciência profunda)?
Em um certo nível, tanto o humano quanto a barata possuem o mesmo material de trabalho. No entanto, como ser humano, particularmente, e, especificamente, tendo um renascimento humano precioso, temos capacidade e mais oportunidades para desenvolver esse material de trabalho. Uma barata não tem essa oportunidade, essa circunstância. E, no caso de uma barata, o funcionamento desses cinco tipos de consciência profunda é muito mais limitado do que em um ser humano, pois a inteligência é mais limitada, há ingenuidade – mais ingenuidade ainda – a respeito de tudo.
Quando agimos construtivamente para gerar mais força positiva, e imbuímos essa ação de mais consciência profunda e compreensão da vacuidade, e vice versa, qual é o papel da purificação?
Usando o exemplo da barata, a capacidade da barata de entender as coisas – de obter informação, perceber padrões e assim por diante – é limitada, é obscurecida por muitas coisas. É obscurecida por falta de consciência – simplesmente não saber como as coisas existem, não conhecer o mecanismo de causa e efeito, etc. – obscurecida pelo autocentramento, etc, preocupada apenas com um pequeno aspecto da vida. E esse também é o nosso caso – obscurecidos por falta de inteligência, falta de claridade, preguiça, esquecimento. O desenvolvimento de força positiva é obscurecido por emoções perturbadoras, apego, raiva e inveja, egoísmo. Então, o que precisamos fazer é desenvolver força positiva e consciência profunda e purificar os fatores obscurecedores. Portanto, é um processo dual: desenvolver e purificar.
Os fatores que usamos para desenvolver força positiva são os mesmos fatores que usamos para a purificação?
Pode-se responder a essa pergunta em muitos níveis, claro. Quando pensamos em purificação, temos a purificação provisória e a definitiva. A purificação provisória é quando admitimos abertamente nossos erros, nos arrependemos e prometemos não os repetir. Se isso gera força positiva? Provavelmente. E a próxima força opositora é reafirmar a base, o refúgio (a direção segura na vida) e bodhichitta. Se isso gera força positiva? Sim. Aplicar uma força opositora, neutralizar as coisas negativas que fizemos – bom, se pensarmos nisso como sendo construtivo ao invés de destrutivo, isso certamente ajuda a gerar força positiva. Fazer prostrações, meditação de Vajrasattva.... Você diria que fazer prostrações é virtuoso, construtivo? Acho que a maioria das explicações diria que sim. Portanto, esses são os métodos provisórios de purificação; e acho que apesar da ênfase ser na purificação, também gera alguma força positiva. Mas a purificação definitiva é com foco na vacuidade, de forma a desenvolver a consciência profunda.
Quando fazemos práticas preliminares – ngondro (sngon-’gro) em tibetano – há quatro práticas padrão. Na tradição Gelugpa são nove. Há muitas variações nas práticas preliminares, mas há quatro práticas que são padrão. Prostração e Vajrasattva são normalmente ensinadas como purificação. Oferecimento de mandala e guru-yoga como práticas para gerar força positiva. Portanto, temos um processo dual. Mas acho que se analisarmos, estamos falando da ênfase dada a cada uma dessas quatro práticas. Acho que cada uma delas possui um aspecto de gerar força positiva e um de purificação.