Tantra: Iluminação que Ainda-Não-Está-Acontecendo e Natureza Búdica

Começamos nossa conversa falando sobre como fazer para que nossa prática do tantra seja eficiente, ou melhor, mais eficiente. Vimos que o principal é começarmos gerando um entendimento do que é o tantra e de como funcionam os pontos principais da prática. Vimos também que o significado da palavra tantra tem a ver com uma corrente constante de continuidade. No nível da base, essa continuidade refere-se aos nossos fatores da natureza búdica, que são características inatas do nosso contínuo mental. “Inato” aqui, significa que surge juntamente com cada momento de atividade mental, com cada momento de nosso contínuo mental. Literalmente, “inato” significa aquilo que “surge simultaneamente”; surge simultaneamente ao contínuo mental. No nível do resultado, a continuidade refere-se a todos esses fatores da natureza búdica trabalhando com plena capacidade, ou seja, no estado iluminado de um buda, que continuará para sempre.

A fim de praticarmos o tantra com eficácia, é importante estarmos bastante convencidos no que diz respeito aos fatores da natureza búdica. Sem essa convicção é muito fácil cairmos na baixa autoestima. Podemos começar a achar que nunca alcançaremos coisa alguma, que não somos bons o suficiente, etc. Por outro lado, se formos para o extremo oposto, de pensar que já somos um buda e que não precisamos fazer nada para virarmos um buda, estaremos nos superestimando, superestimando os fatores da natureza búdica. E claro que, não sendo ainda iluminados, continuamos cometendo muitos erros, mas nos enchemos de arrogância e falso orgulho.

Agora, nós também temos o tantra do caminho. Já falamos da base e do resultado, mas também temos o caminho. O tantra do caminho é praticado com as figuras búdicas. As figuras também são algo que permanece sempre disponível – elas não são concebidas, viram bebês e depois crescem.  Nesse sentido, elas são um tantra. E vimos que a prática do tantra envolve nos imaginarmos como essas figuras (no começo imaginamos e depois nos transformamos nelas). Da mesma forma, começamos imaginando que temos a mente de um buda, todo o entendimento, amor, compaixão, etc de um buda. Também imaginamos que temos a fala de um buda, o que significa que temos mantras através dos quais nos comunicamos perfeitamente com todos os seres. E imaginamos que nossa forma de agir está beneficiando todos os seres, nos imaginamos emitindo luzes que beneficiam todos os seres – essas luzes são emitidas de nosso coração.

E quando trabalhamos com essas figuras de muitos braços e faces, que servem para mantermos em mente aquilo que elas representam, ou seja, as qualidades de um buda, precisamos entender a realidade do que está acontecendo, que é muita coisa.

Quando falamos em um “eu”, uma pessoa, um self, o “eu” que todo mundo vê, o “eu” individual, estamos falando de algo que é rotulado com base em nossos fatores agregados, ou seja, o corpo, a mente, a fala, as emoções e tudo mais que está acontecendo no momento. Existe uma maneira de colocarmos todos esses fatores – que estão mudando em velocidades diferentes durante todos os momentos de nosso contínuo, vida após vida – juntos, que é usando a palavra ou o conceito “eu”. Essa palavra ou conceito “eu” refere-se a alguma coisa, refere-se ao “eu” convencional, apesar de não haver um “eu” concreto, encontrável, delimitado, sentado em minha cabeça, falando – a voz em minha cabeça – e manipulando, controlando o que está acontecendo, ou apenas observando.

Nós existimos; existe um “eu”, mas é o “eu” convencional. O que não existe é o falso “eu”, algo que corresponda a uma palavra, que esteja sentado em algum lugar, algo delimitado, como se estivesse envolto em plástico, isolado de tudo o mais, que nunca muda, um tipo de mônada. Isso seria o falso “eu”.

Existe um “eu” convencional que é rotulado ou imputado no conjunto desses fatores mutantes de nossa experiência. Dentre esses fatores sempre mutantes de nossa experiência de cada momento, temos os fatores da natureza búdica, não é mesmo? E lembre-se que aquilo a que nos referimos quando falamos em fatores de natureza búdica são as nossas redes de força positiva ou potencial positivo, e algumas redes de consciência profunda (a forma como a mente funciona e sabe das coisas, tomando a informação e juntando-a, etc). E temos um corpo, uma aparência; energia está sendo emitida: existe uma capacidade de comunicação. Existem todas essas faculdades mentais de entender, saber, sentir diferentes níveis de felicidade e infelicidade, emoções, etc. As emoções positivas, no que diz respeito aos fatores de natureza búdica, são amor, compaixão, afetuosidade.

E no que diz respeito ao corpo –  nossa aparência, nossa forma – ele surge dos potenciais cármicos. O nosso contínuo mental opera em um corpo físico, podem ser diferentes tipos de corpos físicos, de uma vida para outra, e essa é a aparência que temos. Agora, uma aparência samsárica comum – a aparência de um ser humano, um cachorro, um fantasma, uma barata, etc – é gerada por esses fatores obscurecedores.

Uma parte de cada momento de nossa experiência são os fatores de natureza búdica, e também a falta de consciência, os vários tipos de emoções perturbadoras, os impulsos cármicos, os potenciais cármicos positivos e negativos, etc. Isso estará presente em todos os momentos. Portanto, o “eu” é rotulado sobre tudo isso, a cada momento. O “eu” refere-se ao “eu” convencional que tem como base cada um desses momentos de nossa experiência contínua, onde estão presentes os fatores de natureza búdica e também os fatores obscurecedores. Esses fatores obscurecedores atuarão como causa para as redes de potencial positivo e negativo. Eles farão com que surja um corpo samsárico: da rede de forças positivas surgem renascimentos melhores e das redes de força negativa surge renascimentos piores. E isso continua indefinidamente. E a falta de consciência, junto com as emoções perturbadoras, também agirá como causa para que a rede de consciência profunda gere uma mente limitada a cada momento, a cada renascimento. As limitações dizem respeito à nossa compreensão das coisas, ao nosso amor limitado pelos outros, que às vezes é centrado apenas em nós ou em algumas poucas pessoas, todas essas limitações.

Mas afinal, o que estamos fazendo ao nos imaginar ou nos gerar como figuras búdicas na prática tântrica? Entendemos, e isso é muito importante para que a prática seja eficaz, que os fatores obscurecedores podem ser removidos. Eles não possuem uma base firme, no sentido de não serem baseados na realidade. Eles têm como base a ignorância; eles pode ser refutados e, portanto, eliminados. Podemos substituir a ignorância a respeito de como as coisas existem pela sabedoria. O conhecer de uma forma incorreta pode ser substituído pelo conhecer correto. E apesar dessa eliminação, desse cessar dos fatores obscurecedores, ainda não ter ocorrido, entendemos ela que pode ocorrer.

Quando os fatores obscurecedores cessam, a rede de potenciais positivos, junto com o entendimento correto, faz surgir a aparência do corpo iluminado de um buda – ao invés de um renascimento (corpo, aparência, etc) melhor, mas ainda assim samsárico. Isso ainda não aconteceu, mas pode acontecer. Portanto, em termos do nosso contínuo mental, esses obscurecimentos podem ser eliminados no futuro – eles verdadeiramente cessarão – e todo o potencial dos fatores da natureza búdica funcionará plenamente, e fará com que surja um corpo, fala e mente de um buda – o buda que nós nos tornaremos, um buda individual que nós nos tornaremos.

Apesar disso ainda não ter acontecido, existe uma aparência que teremos quando formos um buda, uma aparência que ainda não aconteceu; portanto, um ainda-não-acontecendo corpo de buda, uma ainda-não-acontecendo mente de buda – todas essas coisas podem ser validamente conhecidas porque podem acontecer, apesar de não estarem acontecendo no momento. E um “eu” convencional também pode ser rotulado sobre isso. Pensamos em termos do contínuo mental, de um contínuo de experiências momentâneas, de quando éramos um bebê, agora como adultos, quando formos idosos (se vivermos até lá) – tudo isso, nesse contínuo, podemos rotular “eu”. Apesar do “eu” estar mudando de momento a momento, ainda é “eu”. Portanto, esse ainda-não-acontecendo estado búdico que atingiremos também será “eu”. “Eu” pode ser validamente rotulado nesse ainda-não-acontecendo estado búdico. Mas, no momento, tudo o que podemos fazer é representar esse estado iluminado que podemos atingir, usando algo similar a ele, algo em nossa imaginação. E podemos rotular “eu” nesse ainda-não-acontecendo estado de iluminação que imaginamos. Entretanto, para fazermos isso de um modo racional, válido, precisamos fazer a visualização – visualização é imaginação – com uma certa compreensão da vacuidade; isso também faz parte da natureza búdica.

Lembre-se, de uma certa forma, é a falta de consciência – a ignorância – que está gerando nossa aparência samsárica. É um processo complicado, mas, para simplificar, podemos dizer que é essa ignorância que está gerando nossa mente limitada comum, nossa fala limitada comum, com todas as nossas emoções perturbadoras. Nada disso existe da maneira impossível como parece existir: como se houvesse um “eu” concreto, em algum lugar, revestido de plástico, que nunca mudasse, existindo por si só, independente de tudo o mais, das causas e condições. Mas parece que é assim que ele existe, como se estivesse ali sentado: aqui estou eu!

Com a compreensão da vacuidade, focamos em “não há nada que corresponda a como isso aparenta ser”. Não há nada real que corresponda a um “eu” sólido, encapsulado, plastificado: “É assim que eu me pareço. Se eu me olhar no espelho, lá estarei “eu”. Portanto, com a compreensão da vacuidade, foque em “nada disso”.  Removemos todos esses conceitos. Então, com essa compreensão, a compaixão, o desejo de beneficiar os outros, fará com que a rede de força positiva faça surgir a aparência pura de uma figura búdica. Com base nisso, nessa aparência mais pura – mantendo a compreensão da vacuidade – mantemos o chamado “orgulho da deidade”. Rotulamos “eu” nessa base. Agora, o “eu” é rotulado no ainda-não-acontecendo corpo, fala, mente, etc, iluminados, que posso conseguir com base nos fatores da natureza búdica. E estou representando isso com minha imaginação, que funcionará como uma causa para que eu realmente atinja isso, para que eu atinja esse estado que ainda-não-está-acontecendo muito mais rápido. Isto porque, esse estado é paralelo ou similar ao que estou imaginando. Mas tudo isso depende de eu manter a compreensão da vacuidade e a motivação de compaixão, amor e bodhichitta.

Bodhichitta foca nesse ainda-não-atingido, ainda-não-acontecendo estado de iluminação, um estado individual. É nisso que ela foca. E agora estou visualizando algo que representa isso, estou focando nisso. E quanto à motivação, é de amor, compaixão e intenção de ajudar os outros ao máximo quando esse ainda-não-acontecendo estado for substituído por um presentemente-acontecendo estado búdico. E para fazer com que esse presentemente-acontecendo estado iluminado, esse estado búdico aconteça, tenho que entender que ele ainda não está acontecendo, para que eu não fique com o “eu” inflado, achando que já sou um buda. Sabemos que isso ainda não está acontecendo – o que temos que fazer é nos livrar, ou purificar, para usar o termo técnico, os fatores perturbadores, esses fatores obscurecedores. Além disso, temos que aumentar a intensidade dos fatores positivos, dos fatores da natureza búdica, aqueles que podem evoluir. Existe uma classe deles que pode evoluir, que pode crescer.

Para fazer com que nossa prática do tantra seja eficaz, precisamos entender tudo isso e praticar com esse entendimento. Entendemos que existem os fatores da natureza búdica. Entendemos que existem obscurecimentos que os estão limitando, e que tudo isso ocorre momento a momento. Compreendemos a vacuidade de tudo isso, que nada existe como se estivesse congelado, encapsulado, existindo de alguma maneira impossível. Sabemos que, se nos livrarmos dos fatores obscurecedores, de modo que nunca mais surjam, todos os fatores positivos da natureza búdica originarão o estado iluminado de um buda, mas agora isso não está acontecendo. E é válido rotular “eu” nesse ainda-não-acontecendo estado búdico, meu próprio estado que ainda-não-está-acontecendo, mas que viso alcançar com bodhichitta. Apesar de rotular “eu” nesse ainda-não-acontecendo estado búdico, representado pela minha visualização, eu compreendo totalmente que ele ainda não está acontecendo. Portanto, não finjo que realmente sou um buda; se eu achasse que já sou um buda, estaria louco. Além disso, também entendemos que para atingirmos um presentemente-acontecendo estado búdico, não temos apenas que focar nessa visualização, nessa identificação do “eu” rotulado nesse ainda-não-acontecendo estado búdico representado pela visualização. Isso não é suficiente. Precisaremos enfraquecer – a palavra é “purificar” – temos que purificar e eventualmente nos livrar desse lado obscurecedor e fortalecer o lado positivo.

Se fizermos isso, conseguiremos nos manter continuamente focados na vacuidade – para sempre – e termos compaixão, pura compaixão, com todo mundo, continuamente. No momento, esse lado obscurecedor está limitando isso. Não conseguimos fazer isso. Não conseguimos fazer isso continuamente. Nos cansamos, nos distraímos, etc. Portanto, para fazer com que nossa prática tantra seja eficaz, precisamos fazer aquilo que é conhecido como preliminares.

Preliminares ou preparatórias. A palavra pode ser traduzida de ambas as formas. São várias práticas que fazemos no começo, antes de realmente nos engajarmos na prática do tantra. Mas também podemos fazê-las quando estamos no estágio inicial de nossa prática. Em tibetano elas são conhecidas como ngondro (sngon-’gro), que é palavra tibetana para práticas preliminares ou preparatórias, e são práticas que servem para começarmos purificando ou diminuindo os fatores negativos e gerando fatores positivos. E as práticas são diferentes dependendo da tradição tibetana.  Mesmo dentro de uma mesma tradição, seu professor ou professora espiritual pode lhe aconselhar a fazer algo diferente do que ele ou ela recomenda a outra pessoa. A recomendação pode ser muito pessoal. Mas existe um certo padrão que é seguido pela maioria das pessoas dentro de uma determinada tradição, a não ser que o professor recomende que você faça algo diferente.  Isso geralmente envolve reafirmar o refúgio (a direção segura que você está tomando na vida), bodhichitta. Essa é a base, nossa motivação. Para purificar as coisas negativas, temos as prostrações e a meditação de Vajrasattva, e para gerar força positiva, temos o oferecimento de mandala e “guru-yoga”.

Sem entrar em muitos detalhes sobre cada uma das práticas, o que fazemos é repetir cada uma cem mil vezes. Em algumas tradições repetimos cento e trinta mil vezes e, em outras, cento e oito mil vezes. Na verdade, tanto faz, o ponto é que são muitas vezes. Em algumas tradições, nem mesmo se conta, você repete até obter algum tipo de indicação de que funcionou, pois é muito fácil ficarmos presos à contagem e perder o foco no estado mental que estamos querendo gerar. Você só fica contando.

E não podemos pensar que só porque fizemos uma vez o ngondro, isso basta, que não precisamos fazer mais. Algumas sadhanas são muito curtas e abreviam as coisas, deixando algumas coisas de fora. As sadhanas abreviadas são só a estrutura, então temos que completar o que está faltando com todos os detalhes da sadhana longa, da prática completa. E na primeira parte das sadhanas completas temos todas as práticas do ngondro novamente. Então todos os dias você tem que fazer um pouquinho.

Sem entender isso, você pode vir a ignorar as práticas preliminares, as práticas preparatórias. E sem elas, nossa prática do tantra não será muito eficaz, pois não teremos trabalhado para superar, ou pelo menos diminuir, os fatores obscurecedores, esses criadores de problemas que irão perturbar nossa prática, que não nos deixarão focar. Podemos acabar fazendo a prática com a motivação errada, por exemplo, e nossa prática se torna uma grande viagem do ego.

E se não entendermos a necessidade das preliminares enquanto as estivermos fazendo, elas também não serão eficazes. Poderíamos fazer flexões ao invés de prostrações que daria na mesma. Podemos facilmente fazer essas práticas como se fossem uma taxa inconveniente que temos que pagar a fim de podermos fazer a prática boa. Nesse caso, não estaremos fazendo a prática de coração, pois não entendemos sua necessidade e o resultado de fazermos corretamente. Portanto, essa compreensão é crítica para que a prática seja eficaz. Precisamos entender o que estamos fazendo e por que estamos fazendo.

Se nos dispusermos a fazer as práticas, precisaremos de determinadas ferramentas para conseguir fazê-las com eficácia. Por exemplo, precisaremos de capacidade de concentração; se você não conseguir se concentrar, sua mente vai ficar viajando enquanto você tenta fazer a prática. Portanto, antes de começar a fazer essas práticas, precisamos nos preparar, precisamos desenvolver algumas das ferramentas que precisaremos para fazer as práticas preliminares. Isso não significa que elas têm que estar perfeitas antes de começarmos a prática do tantra, mas também não devemos começar a trabalhar nelas junto com a prática do tantra.

Se recitarmos um verso de quatro linhas, ou de qualquer número de linhas, repetidamente, se recitar cem mil vezes, um verso de motivação de bodhichitta, por exemplo, sem ter trabalhado previamente todos os passos para desenvolver essa motivação com sinceridade, isso não vai fazer com que desenvolvamos esse estado mental. Você tem que ser capaz de gerar o estado mental com base nas práticas anteriores que já fez, de forma a conseguir focar nele enquanto estiver recitando o verso.

Uma outra pergunta muito interessante que surge é: “Será que eu realmente ficarei parecido com uma dessas figuras – como todos esses braços e pernas e esses rostos coloridos e segurando essas coisas estranhas – quando eu me iluminar? É isso que significa ser um buda? Significa que vou ficar assim?” E o que acontece é que, por pensarmos assim, por acharmos isso tão estranho e não querermos parecer essas figuras quando formos budas, podemos não nos empenhar em nos visualizar dessa forma. Novamente, a prática não será tão eficaz. E esse tipo de pensamento pode ser inconsciente; podemos não pensar assim conscientemente, mas inconscientemente nossa atitude pode ser: “Isso simplesmente é estranho demais e é uma idiotice”. E daí que estou segurando uma roda nessa mão ou naquela e uma joia nessa mão ou na outra? E daí? Isso é ridículo e arbitrário. Algumas figuras seguram a roda em uma mão e outras em outra. Então qual o sentido? Novamente, isso sabota nossa prática, esse tipo de atitude faz com que ela não seja tão eficaz.

Portanto, antes de mais nada, como budas, podemos aparecer em qualquer forma. Não estamos presos a ter vinte e quatro braços, dezesseis pernas, etc. Podemos aparecer em qualquer forma que seja útil ou benéfica aos outros. E certamente não teremos que segurar uma roda em uma mão, um vaso ou uma flor em outra. Essas figuras são um método, um método para atingirmos a iluminação. Lembre-se da palavra “yidam”, a conotação da palavra em sânscrito é de algo para criarmos um forte vínculo com nossa mente a fim de atingirmos o objetivo desejado.

E lembre do outro significado da palavra “tantra” – as cordas de um tear, para se tecer panos. Portanto, isso – essas figuras com todos esses braços e segurando coisas – é uma estrutura, uma representação, serve para representar várias qualidades, várias qualidades positivas, várias realizações, vários entendimentos, várias partes do caminho; tecemos tudo isso para nos ajudar a ter tudo isso de forma simultânea em nossa mente. “Presença mental” significa cola mental; segurar tudo isso de uma vez com a atenção. E é muito difícil manter nossa presença mental em muitas coisas simultaneamente e de uma forma abstrata. Se usarmos uma representação gráfica, fica mais fácil.

Mas, e todos esses detalhes – essas rodas, flores, joias? Qual o sentido disso tudo? E a prática do tantra não envolve apenas nos visualizar dessa forma, também visualizar a mandala do palácio e muitas e as muitas figuras, tanto dentro quanto fora dele. E todas essas figuras têm vários braços e pernas e seguram várias coisas diferentes. E tentamos imaginar tudo isso. E na prática do Kalachakra, a mandala tem 722 figuras e todas seguram coisas diferentes. E elas têm uma aparência diferente. E começamos a pensar: “o que importa que essa figura nesse canto escuro, em um grupo de trinta outras figuras, está segurando isso em suas quatro mãos? Qual o sentido disso? Isso é ridículo!” Essa atitude sabota a prática.

Então qual o sentido? O sentido é que queremos praticar agora, queremos gerar as causas para nos tornarmos budas. Um buda é onisciente; a mente de um buda está consciente de tudo simultaneamente. E principalmente, um buda tem consciência de todos os seres limitados, de todos os seus problemas, de suas vidas passadas e da melhor forma de ensiná-los. Portanto, a mente de um buda está totalmente expandida e ciente de todas essas informações simultaneamente, e junta tudo isso. Mas não é que a mente do buda junte e interligue tudo isso. Tudo isso é interligado, e a mente do buda percebe tudo isso. Tudo está relacionado, tudo está interrelacionado.

Então será que podemos nos treinar para desenvolver essa habilidade também? Será que podemos nos treinar para abrir nossa mente e estarmos conscientes de cada vez mais coisas, mais detalhes, simultaneamente? Essas visualizações supercomplexas são justamente um método para treinar nossa mente a fazer isso. Como funciona nossa mente? Podemos entender as coisas através de palavras, ou de fatos, ou de sentimentos e emoções. Para algumas pessoas, no nosso estado normal, uma determinada forma de compreender as coisas pode ser mais proeminente do que outra. Algumas pessoas são mais visuais, outras mais verbais. Algumas pessoas aprendem melhor quando veem uma informação escrita, outras aprendem melhor ouvindo. Todos temos formas diferentes de reter informação, de aprender, de entender coisas através de mídias diferentes.

Temos os fatores da natureza búdica que nos permitem fazer tudo isso. Portanto, queremos desenvolver todas as formas possíveis de tomar conhecimento das coisas, especialmente porque queremos ser capazes de ensinar os outros, e precisamos ter a habilidade de nos comunicar através de todas as mídias. Visualizar todos os detalhes das imagens nos ajuda a expandir nossa mente. E não estamos fazendo só isso, nós também estamos tentando manter em mente aquilo que as imagens representam, os vários sentimentos, como o amor, a compaixão, a paciência, os vários níveis de entendimento, etc. O conteúdo das imagens, como eu disse, é arbitrário, em certo sentido, não arbitrário, pois são símbolos, mas se os símbolos estão nesta ou naquela mão, não importa, é só uma variação.

Se tivermos um sistema com todas essas imagens, não importa quão complexas sejam – obviamente começaremos com as menos complexas – o importante é treinar para manter todos esses detalhes em mente simultaneamente, com a mesma concentração em todos eles. E há explicações detalhadas sobre como fazer isso, sobre como treinar para fazer isso. E não importa se o que as imagens são parece ser arbitrário – porque isso pode mudar para outro sistema – isso não importa, esse não é o ponto. O que importa também não é ser capaz de visualizar flores, vasos e rodas. Isso também não importa. Isso é só um método para treinar a mente. Determinadas convenções foram estabelecidas. Talvez tenham sido estabelecidas na Índia, talvez não venham de nossa cultura, mas que diferença isso faz? Uma lua representa bodhichitta, um sol representa a vacuidade, um lótus representa a renúncia. Ok. Por que não? Por que eu tenho que mudar isso? Não há porque mudar.

É interessante investigarmos essa atitude. Porque eu quero mudar? E como eu mudaria? O que vou representar? Vou representar bodhichitta usando uma garrafa de água mineral? Pelo que vamos substituir os símbolos? E por que? Porque “eu não gosto”? Porque “eu não cresci com isso”? Isso não é suficiente. Então, novamente, para que a prática do tantra seja eficaz, precisamos entender a base, o resultado e também o caminho. O que está acontecendo? Como isso funciona? Por que funciona? Por que é assim?

Além disso, um outro aspecto da natureza búdica é a possibilidade dos fatores da natureza búdica poderem ser estimulados, de poderem ser estimulados positivamente para que cresçam. Aqui estamos falando de inspiração. Através da inspiração, esses fatores podem crescer. O que traduzo como inspiração, normalmente é traduzido como “benção”, mas eu acho que essa tradução deixa as coisas meio vagas, meio místicas, e leva a uma interpolação entre as ideias do budismo e de outras religiões. Portanto, eu não gosto de usar o termo “benção”. Como eu ia dizendo, através da inspiração esses fatores podem ser estimulados a crescer.

Na prática do tantra, temos iniciações. O termo “iniciação” vem de uma maneira ocidental de traduzir. O termo significa “empoderamento”. O aspecto mais importante de um empoderamento é o professor espiritual. A principal função do professor durante o ritual ou cerimônia é inspirar. Através dessa cerimônia, os fatores da natureza búdica, os potenciais, são estimulados ou ativados. A propósito, “empoderamento” é a conotação do termo tibetano. A conotação do termo sânscrito é de “regar sementes”. Você rega as sementes para que cresçam. Durante o empoderamento, é importante que tenhamos essa relação com o professor spiritual, o professor espiritual nos move, nos inspira. Se você não sentir nada, e se o professor não for qualificado, o empoderamento não será eficaz. Isso é importante, para que não tomemos qualquer empoderamento que qualquer professor esteja dando. Temos que ter alguma conexão com o professor. Conexão significa que ele ou ela nos inspira de uma forma positiva.

Com esse professor – que respeitamos, que conhecemos as qualificações e que nos inspira – tomamos os votos. Essa é uma parte essencial de qualquer empoderamento: os votos de bodhisattva para todas as classes do tantra e, para as duas classes superiores, os votos tântricos e os de bodhisattva. Esses votos são os limites, ou seja, estabelecemos que vamos praticar dentro desses limites, dentro dessa estrutura.

Não há prática tântrica sem votos. Isso está posto de forma muito clara em muitos textos: “sem tomar os votos”. E você tem que tomá-los com consciência, e não apenas repetir algumas palavras em uma língua que você não conhece, sem ter a mínima ideia do que está fazendo. Você pode nem mesmo saber que está tomando votos. Se for esse o caso, eles não contam. Para tomar um voto, é necessário que você esteja consciente do que está fazendo. E esses votos não são fáceis de manter, então realmente temos que analisar se estamos preparados para mantê-los. Por exemplo, um dos votos tântricos é termos presença mental – isso significa meditar e trazer à mente – seis vezes por dia, o entendimento da vacuidade.  Bom, se você não faz ideia do que seja vacuidade, como poderá fazer isso? Lembre-se, você não precisa ter a mais profunda compreensão da vacuidade, ou seja, você tem que sempre estar trabalhando em sua compreensão, sempre tentando mantê-la em mente.

E, durante o empoderamento, também é dito nos textos que você precisa ter algum tipo de experiência consciente, e positiva, no que diz respeito aos principais pontos do tantra. Assim, o empoderamento irá estimular as sementes que já estão em seu contínuo mental e plantar mais sementes. Em algumas tradições tibetanas, fala-se em termos algum tipo de experiência consciente da natureza búdica. “Eu tenho uma natureza búdica”. Na tradição Gelug, fala-se em termos alguma experiência da natureza bem-aventurada da consciência, e alguma compreensão da vacuidade, qualquer que seja. Ou seja, precisamos ter alguma compreensão de que as coisas não existem de maneiras estranhas, e ao focar nisso nos sentimos felizes. Isso é o suficiente. No final, é a mesma coisa que focar na natureza búdica, porque o sentimento de felicidade vem da rede de força positiva e a compreensão da vacuidade vem da rede de consciência profunda. Portanto, é só uma maneira diferente de trabalhar com a mesma coisa. Tendo como base a experiência consciente durante o empoderamento, se estimularmos mais, isso vai crescer. É disso que se trata uma iniciação. A cerimônia e todas essas coisas são um ambiente muito propícios, o pacote em que recebemos isso. Isso também pode ajudar a nos inspirar.

Sem que sejamos apropriadamente empoderados, e sem que o tomemos os votos apropriadamente, ou seja, sentindo a inspiração, comprometendo-se com uma forma de praticar e tendo uma experiência consciente durante o empoderamento, nossa prática não será eficaz. Portanto, para realmente receber o empoderamento, precisamos de inspiração, votos e uma experiência consciente.

A importância de termos um professor qualificado e de nos sentirmos inspirados por ele ou ela não deve ser subestimada. Se não nos sentirmos inspirados pelo professor, se não houver conexão com o professor, a energia de nossa prática será muito pequena. Portanto, é muito importante ter essa inspiração.

Em uma parte da prática tântrica, ao imaginarmos a figura búdica à nossa frente, imaginamos que ela é inseparável de nosso professor. Durante o empoderamento também temos esse tipo de visualização e reconhecimento. O ponto não é se o professor é realmente um buda ou não, com todos os poderes de um buda. Estamos focando na natureza búdica plenamente realizada do professor espiritual. Estamos vendo todos os fatores de natureza búdica do professor funcionando plenamente. Ao ver o professor dessa maneira, certamente conseguimos receber uma inspiração maior, e isso nos dá confiança sobre a possibilidade de ter uma natureza búdica plenamente realizada. Além disso, isso também funciona como uma fonte de inspiração e energia durante a prática.

No que diz respeito a estarmos fisicamente com o professor – por muito ou pouco tempo – isso não é necessário. Não é necessário passar muito tempo com o professor. Mas a prática do tantra é de muita repetição: Quando geramos um comprometimento no empoderamento... E o comprometimento é sempre através dos votos. Mas, além disso, existe também um comprometimento com a prática, e ele será determinado pelo professor. Na maioria dos casos, o compromisso é de fazer a prática diariamente pelo resto de nossas vidas. Por isso eu disse que essas práticas são de muita repetição: fazemos a mesma coisa todos os dias, e precisamos de energia e inspiração para continuarmos fazendo. Essa energia certamente vem da compreensão do que estamos fazendo, mas a inspiração que vem do professor é muito, muito crucial.

O professor não é alguém separado, que está lá, e nós aqui fazendo nossa prática; o professor é inseparável da figura búdica que internalizamos e visualizamos na nossa frente. Assim, nos integramos completamente com o professor, considerando-o como um buda. Esse é o ponto naquilo a que se refere como “guru-yoga”. E apesar de podermos fazer guru-yoga – talvez como uma prática preliminar que está presente em todas as sadhanas – apenas como a visualização de alguma figura histórica, como Padmasambhava ou Tsongkhapa, na forma dessas figuras búdicas, a prática tem muito mais energia se usarmos um professor que esteja vivo e com quem tenhamos tido algum contato. Mesmo se estivermos em uma plateia de vinte mil pessoas – como é o caso de Sua Santidade o Dalai Lama – existe uma experiência pessoal e realmente estamos vendo um ser humano como nós. Isso dá muito mais energia à nossa prática. E muitas vezes visualizaremos o professor, o fundador da linhagem e a figura búdica unificados.

Mas, claro, o professor precisa ser qualificado. E nosso relacionamento com ele tem que ser saudável, e não misturado com emoções perturbadoras, do tipo “eu sei mais do que você!”, com arrogância, com raiva ou com muito apego. Precisa ser uma relação livre dessas emoções perturbadoras, um relacionamento saudável e maduro. E isso não é fácil, afinal temos um forte apego ao um “eu” sólido, tendemos a achar que somos especiais. E se olharmos sinceramente para o professor como um buda – bom, o buda preocupa-se igualmente com todos. Ninguém é especial para um buda. Ou todos são igualmente especiais. Mas o ponto é que o buda é igual com todo mundo. Então nos inspiramos com o professor, com o qual não devemos pensar coisas do tipo “sou tão especial”. O trabalho, nós é que precisamos fazer.

São pontos difíceis, devo dizer. O ponto de ver o professor como inseparável da figura búdica é muito difícil, apesar de ser mencionado e enfatizado em todas as práticas tântricas. Precisamos trabalhar muito para entender isso de forma a que realmente funcione de uma maneira saudável. E também acho que precisamos ser realistas: “Eu não me sinto igualmente inspirado o tempo todo. Não me sinto sempre inspirado a fazer minhas práticas”. Afinal, isso é o samsara. A natureza do samsara é ter altos e baixos. Portanto, é claro que nosso nível de inspiração, nosso nível de prática, terá altos e baixos. Mas precisamos continuar, independente de... de estarmos de bom humor ou mau humor, de estarmos inspirados ou não. Simplesmente fazemos a prática. E se nos lembrarmos das boas qualidades do professor, de sua gentileza, etc, e integrarmos isso a nossa prática tântrica, isso nos ajudará a sustentar nosso nível de energia, de inspiração, mesmo não sendo algo dramático. Portanto, é importante ser bem discriminativo no que diz respeito ao professor de quem vamos receber o empoderamento. Primeiro precisamos estar prontos para recebê-lo, depois o professor precisa ser qualificado e precisamos sentir alguma conexão com ele, alguma inspiração vinda do professor. Se alguma dessas coisas não estiverem presentes, teremos alguns problemas.

Esses são os pontos essenciais para praticarmos o tantra com eficácia.

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