Tantra: O Contínuo da Base, do Caminho e do Resultado

Gostaria de falar sobre como praticar o tantra eficientemente. Esse é um tópico muito importante para os que já estão evolvidos na prática, pois talvez não estejam praticando da forma mais eficaz. Para praticarmos com eficácia, precisamos saber o que fazer. Portanto, a primeira coisa que precisamos saber é o que é realmente o tantra. Qual o objetivo da prática do tantra e como ela alcança esse objetivo?

O objetivo da prática do tantra, assim como de todas as outras práticas do Mahayana, é atingir o estado iluminado de um buda. Estamos falando de nossa própria iluminação, queremos atingi-la para sermos mais capazes de ajudar os demais seres. Agora, para alcançarmos nosso objetivo, certamente usaremos todos os métodos apresentados nos ensinamentos do sutra e também iremos adicionar mais alguns outros a isso. É muito importante não pensarmos que a prática do sutra e do tantra são duas coisas totalmente diferentes, que não têm nada em comum. Tudo o que está presente no sutra está presente no tantra, mas nem tudo o que está presente no tantra está presente no sutra.

O que nos ajuda a entender como funciona o tantra é a própria palavra “tantra”. A palavra sânscrita “tantra” tem dois significados. Em um nível, ela significa uma eterna continuidade; algo que estende para sempre. Desse significado, de se estender para sempre, deriva o segundo significado, que é as cordas de um tear em que se tece algo.

Agora, quando falamos em um contínuo que se estende infinitamente, estamos falando de três níveis. Temos o nível da base, o nível do caminho e o nível resultante. O nível da base refere-se a todos os fatores da natureza búdica, ou seja, todos os fatores que nos permitirão tornar budas. Esses fatores são qualidades ou aspectos de nosso contínuo mental, daquilo que segue de um momento para o outro, de uma vida para outra, sem começo e sem fim. Essa é a base, todos nós possuímos isso – todos os seres, não só os seres humanos, pois em uma vida podemos nascer humanos e em outra um inseto ou qualquer outra forma de vida que tenha uma mente. Uma forma de vida que tem uma mente é uma forma de vida que age com base em intenções – com base em impulsos cármicos que nos levam a fazer algo com uma intenção. Portanto, não estamos falando de plantas, pedras ou coisas do gênero. Em todo caso, esta é a base: todos os fatores da natureza búdica. Estudaremos isso mais a fundo, mas primeiro quero apresentar a estrutura.

O caminho refere-se a um tipo de prática cujos elementos ou aspectos também não têm começo e nem fim; portanto, são um contínuo. Na base temos todas as qualidade e aspectos que nos habilitam a ser budas, porém elas não estão funcionando no nível em que funcionam em um buda, pois vários obscurecimento e obstáculos as encobrem e fazem com que não tenhamos consciência delas, além de limitar seu funcionamento. Assim sendo, precisamos de uma prática que nos livre desses obscurecimentos e fortaleça os fatores da natureza búdica, de forma que funcionem plenamente. O melhor seria termos uma prática que nos ajudasse a purificar essas dificuldades, mas que fosse um método que tivesse alguma continuidade – que estivesse sempre disponível. Esse método é a prática do tantra. Novamente, estudaremos isso mais profundamente, estudaremos como funciona esse método.

No nível do resultado, o que queremos é obter o estado iluminado de um buda, um estado em que todas essas qualidades e aspectos funcionem plenamente. E queremos que isso seja um contínuo, que dure para sempre.

Portanto, o tantra é basicamente um método muito eficaz para purificarmos os obstáculos que impedem que nossos aspectos da natureza búdica funcionem plenamente, como funcionam em um buda. Isso é o tantra, em um nível muito, muito fundamental.

Agora, no que diz respeito aos fatores da natureza búdica, podemos apresenta-los de inúmeras formas. Uma das apresentações diz que temos duas redes, às vezes chamadas “as duas coleções”. Temos uma rede de força positiva, às vezes chamada de coleção de mérito, e temos uma rede de consciência profunda, às vezes chamada de sabedoria ou insight. Mas do que estamos falando? Como podemos ter isso desde sempre?

É como falei, tendo um contínuo mental, sendo o que chamamos de ser senciente, que significa um ser limitado, um ser cuja mente é limitada – e não estou falando em deficiência mental, estou falando apenas em ter uma mente que não funciona plenamente, essa mente (a atividade mental momento a momento) é capaz de tomar conhecimento de coisas. Temos a capacidade de tomar conhecimento de coisas, mas essa capacidade é limitada, é encoberta pelo que se chama de falta de consciência (em alguns idiomas é chamada de ignorância). Basicamente, isso significa que não temos consciência do mecanismo de causa e efeito (de nosso comportamento) e não sabemos como nós e os outros existimos. Simplesmente não sabemos, e isso não é óbvio. Ou então temos uma compreensão incorreta.

Achamos, por exemplo, que se gritarmos com uma determinada pessoa, ela vai fazer o que queremos, que vai gostar da gente – o que obviamente não acontece – e que isso nos fará felizes. Não entendemos que tratar os outros mal só nos trará mais problemas e infelicidade. Ou então pensamos: “se eu o explorar serei mais feliz”. Portanto, ou não sabemos qual será o resultado ou achamos que sabemos mas estamos equivocados. Achamos que podemos poluir o meio ambiente e isso não terá um efeito sobre nós, o que está totalmente incorreto, não é mesmo?

O mesmo acontece no que diz respeito à realidade: achamos que podemos criar uma coisa e que ela vai existir de uma forma totalmente isolada de tudo mais. Não sabemos que tudo está interconectado. Nada existe “isolado de tudo mais”. Temos todo tipo de emoções perturbadores com base nessa falta de consciência (ignorância). Temos ganância, apego e luxúria: “se eu conseguisse aquilo, seria feliz”. E raiva e aversão: “se eu me livrasse disso, seria feliz, estaria seguro”. E ingenuidade: “se eu conseguisse me isolar e não ter que lidar com essas coisas, como se elas não existissem, eu seria feliz”. E com base nessas emoções destrutivas, agimos de forma destrutiva. Podemos até agir de forma construtiva, mas por trás de nossa ação está a ignorância: “Serei legal com você e você vai me amar; então me sentirei útil”, ou coisas do gênero.

Chamamos isso de comportamento cármico, agir segundo o carma. Isso repercute em nosso carma, em nossas tendências – geramos tendências – potenciais e hábitos. Uma ação construtiva gera o que chamo de força positiva ou potencial positivo, o que é normalmente traduzido como “mérito”. Uma ação destrutiva gera força negativa ou potencial negativo, o que, infelizmente, às vezes é traduzido como “pecado”. Mas as palavras “mérito” e “pecado” não dão a conotação correta. Estamos falando apenas em força ou potencial positivo e força ou potencial negativo.

A força ou potencial positivo é o que nos permite vivenciar felicidade comum e renascimentos mais afortunados, como o renascimento humano, por exemplo. E o potencial ou força negativa é uma força ou potencial para vivenciar infelicidade, dor, etc, além de um renascimento em um dos reinos piores, como o dos animais ou fantasmas. Agora, é óbvio que em um único renascimento podemos sentir felicidade e infelicidade. Mas estamos falando daquilo que resulta em felicidade e que também resulta em renascimentos melhores, e daquilo que resulta em infelicidade e que também em renascimentos piores. Portanto, podemos ter felicidade em qualquer tipo de renascimento, ou infelicidade em qualquer tipo de renascimento.

Todos nós nos sentimos felizes algumas vezes e infelizes outras vezes. Sentimos diferentes níveis de felicidade e infelicidade, não precisa ser nada intenso, mas todos temos esses sentimentos.  Isso indica que todos temos alguma força ou potencial negativo e também alguma força ou potencial positivo. E também temos emoções perturbadoras – já mencionei isso. Essas emoções perturbadoras são o que vai ativar esses potenciais para renascermos novamente. Dependendo do conjunto de potenciais, podemos ter um renascimento melhor com circunstâncias melhores ou não muito boas, ou um renascimento pior com circunstâncias melhores ou não muito boas.

O importante aqui, em termos dos fatores da natureza búdica, é a força positiva, a rede positiva. Considerando que nossos renascimentos não têm um começo, que renascemos desde sempre, essas forças positivas formam uma rede. Por isso chamamos de rede; não é só uma coleção de coisas que não têm conexão umas com as outras. Essa rede de força positiva é um aspecto da natureza búdica, pois pode gerar – e contribuir para – o tipo de felicidade que tem um buda, se for pura e não estiver misturada com confusão. Ou seja, podemos trabalhar nossa força positiva para alcançar a felicidade de um buda. Essa força positiva, quando ativada por emoções perturbadoras, pode fazer surgir a nossa aparência comum em um dos melhores estados de renascimento, como o renascimento humano. Mas se ela for purificada, se nos livrarmos das emoções perturbadoras, por exemplo, ela pode ser a causa para o surgimento do corpo puro de um buda. Portanto, essa rede de força positiva é um dos nossos fatores da natureza búdica.

Também temos uma segunda rede, a rede de consciência profunda. Aqui podemos incluir muitos níveis de consciência profunda, mas o nível mais básico refere-se às várias formas nas quais a mente (atividade mental) funciona em um estado de renascimento. Sem entrarmos em detalhes técnicos, como nossa atividade mental funciona? Ela é capaz de absorver informações. Ela é capaz de juntar algumas informações em categorias para entender as coisas, ela vê, por exemplo, duas coisas diferentes como sendo igualmente comida. Até uma minhoca consegue fazer isso. Ela tem a capacidade de tomar conhecimento das coisas individualmente, ela pode tomar conhecimento de uma garrafa de água individualmente, distinguindo de tudo o mais que estamos vendo, por exemplo. Todo mundo consegue fazer isso. Quando vejo duas garrafas de água na minha frente, posso tomar conhecimento, apontar para uma delas, posso tomar conhecimento dela individualmente. Todos somo capazes de fazer isso. É assim que a mente funciona. E uma outra coisa que a atividade mental consegue fazer é saber como engajar-se com alguma coisa, como usar uma determinada coisa. Eu sei, por exemplo, que para beber essa água eu preciso levantar a garrafa, tirar a tampa e colocar a boca da garrafa na minha boca. As minhocas também sabem comer. O que eu quero dizer é que todos sabemos como fazer as coisas. E sabemos o que são as coisas. Não precisamos de um nome para as coisas. Uma minhoca não dá o nome “água”, mas ela sabe que é água – o que chamamos de “água”.

Isso é no nível da base, então chamamos de “consciência profunda da base”. É muito profunda; é muito fundamental. “Profunda” aqui quer dizer muito fundamental. Em alguns casos pode significar profunda, mas neste caso significa fundamental mesmo. Profunda nesse sentido. E está claro que todos nós temos esses fatores, porque são as características inatas mais fundamentais da atividade mental; de como a mente trabalha. Mas elas estão limitadas no momento. Elas não estão trabalhando em sua plenitude. É muito simples: somos capazes de absorver informação, mas quantos conseguem se lembrar o que todos nesta sala estão vestindo? Portanto, apesar da informação entrar, somos bastante limitados em lidar com ela. Mas essa rede de consciência profunda – pois temos muitos momentos, então eles formam uma rede – consegue funcionar plenamente quando as limitações são removidas; aí vai funcionar como a mente de um buda.

Portanto, temos essas características básicas da natureza búdica, que corriqueiramente estão envolvidas apenas em nos levar para um outro renascimento, um renascimento com limitações; às vezes com felicidade comum, que não dura, às vezes com infelicidade – altos e baixos – e gera atividade mental, mas atividade mental limitada. Então é isso que está acontecendo, no nível da base. Mas se essas características forem purificadas, as duas redes podem dar origem ao corpo e à mente de um buda.

Temos muitos outros aspectos da natureza búdica, de acordo com…. Existem muitos outros sistemas para isso, para explicar isso. Todos temos um corpo, a habilidade de nos comunicar, o que chamamos de fala, e uma mente, a habilidade de saber coisas. E todos temos qualidades básicas boas, como amorosidade, a habilidade de cuidar de alguém, nem que seja de nós mesmos, e de evitar sofrimento, nem que seja o nosso. Veja, quando isso é purificado, torna-se a base do amor e da compaixão infinitos, a fim de cuidarmos para que todos sejam felizes e estejam livres do sofrimento. Isso é amor e compaixão infinitos. Temos isso como uma habilidade básica. E além das boas qualidades de corpo, fala e mente, também fazemos atividades. Fazemos coisas. Como budas, poderemos fazer tudo para beneficiar os outros, e não apenas a quantidade limitada de coisas que fazemos hoje em dia.

Tudo isso é no nível da base. Existe um contínuo; nós sempre temos e sempre teremos esses diferentes aspectos. Adicionalmente, nosso contínuo mental não existe de nenhuma forma impossível. E uma forma impossível seria a de nunca melhorar, de nunca conseguirmos nos livrar das limitações, essas coisas. Isso é impossível. E esse é um aspecto muito importante: que todas essas qualidades podem ser afetadas. Elas são afetadas por causas e condições. Elas podem aumentar. As limitações podem ser afetadas por causas e condições, elas podem diminuir, podem ser eliminadas. Portanto, essas coisas não existem de uma maneira impossível, isoladas, congeladas, paralisadas.

No nível do resultado, nós teríamos, como budas, todos esses aspectos, todas essas várias qualidades funcionando plenamente, sem limitações, e todas funcionariam e estariam presentes simultaneamente. Portanto, queremos um método que nos permita trabalhar no nível da base para alcançar o nível do resultado, de forma que o nível da base não continue sempre limitado, que ele continue para sempre, mas da forma plenamente eficiente de um buda: um contínuo, um tantra. Assim, queremos um método que nos permita alcançar o estágio resultante, que seja um tipo de prática que use todos esses fatores do nível da base simultaneamente, de forma a nos ajudar a alcançar o objetivo resultante. E queremos usar um método – se quisermos ser realmente eficientes – que seja similar ou paralelo ao que temos no nível da base e ao que temos no nível do resultado.

Para isso temos as práticas do caminho, ou seja, as práticas do tantra que usamos como um caminho para alcançar esse estado resultante, o estado iluminado de um Buda. Queremos usar uma prática que tenha, como base, algo sem começo e sem fim – que é o significado da palavra tantra – e isso refere-se às várias figuras búdicas com as quais trabalhamos: as assim chamadas “deidades tântricas”.  Quando o termo “deidade” é usado, não estamos nos referindo a algo como um Deus criador ou como os deuses da Antiguidade Grega ou dos Hindus. Não é isso. Esse termo se refere a um “tipo especial de deus”, um deus que está acima dos deuses comuns.  No inglês [e no português] usamos a palavra “deidade” porque “Deus” implica em um criador. Mas eu prefiro evitar essa terminologia porque pode confundir as pessoas.

Na verdade, esse termo “tipo especial de deidade” é um termo tibetano. O termo sânscrito, que foi traduzido para o tibetano, significa uma deidade usada para alcançar um ideal desejado”. O termo “desejado” é o termo ishtadevata em sânscrito. Portanto, é uma forma de deidade que usamos para alcançar um objetivo desejado, que não é ir para o céu ou ficar rico, mas sim atingir a iluminação. Acho que os tibetanos perceberam que se traduzissem literalmente poderiam causar muita confusão, então traduziram como “tipo especial de deidade”. E talvez a palavra “deidade” seja usada porque o tipo de corpo de que estamos falando é um corpo muito sutil, não é o nosso corpo material. Mas há um outro termo que os tibetanos usam: yidam. Yi significa mente e dam é uma contração de dam-tshig, que significa vínculo próximo. É uma figura com a qual nos conectamos mentalmente – formamos um vínculo próximo – para alcançar nosso objetivo desejado, que é a iluminação.

Mas trabalhamos com figuras de uma origem tradicional indiana, portanto elas possuem uma certa variedade de formas e cores. Muitas vezes elas possuem várias faces, vários braços e várias pernas. Apesar disso poder mudar momento a momento. Elas mudam de momento a momento; mas o que significa isso? Não significa que a figura muda no sentido de ficar mais velha, doente ou ficar adulta. É que nos imaginando dessa forma, podemos fazer várias coisas; e às vezes estamos conscientes, e outras vezes não. Nesse sentido, muda momento a momento. Não é estático. É um tipo estático de fenômeno não-estático. É não-estático no sentido de que muda momento a momento, mas é eterno, não tem começo e nem fim. Ou seja, possui uma forma definida, não cresce, não tem que ir para a escola, não fica mais velha. Está sempre disponível, na mesma forma, para sempre, para a usarmos como objeto de meditação. Assim, forma um tantra, uma corrente eterna. E apesar de algumas deidades terem como modelo alguém que era um ser limitado, – como Tara, que era uma mulher (Em um determinada vida ela era uma mulher e jurou alcançar a iluminação na forma de uma mulher para encorajar as mulheres a atingirem a iluminação. Portanto, existiu um ser conhecido como Tara) – a figura búdica, a figura de Tara foi apenas inspirada nela.

Portanto, o que queremos fazer com nossa prática é surgir na forma de uma figura búdica, como Tara ou Manjushri, ao invés de usar nossa rede de força positiva para renascer em um corpo comum. E queremos que nossa rede de consciência profunda dê origem ao tipo de mente de um Buda, ao invés de uma mente limitada, com habilidades limitas de compreensão. Queremos o tipo de mente de um Buda, com todas as suas qualidades mentais e também o que chamamos no ocidente de coração. Ou seja, queremos a habilidade de entender, de saber e também de ter compaixão, amor e todas as qualidades que classificamos como qualidades do coração.

E queremos que nossa fala seja como a de um buda, não queremos apenas a habilidade de nos comunicar, queremos ser capazes de realmente nos comunicar com os outros, de forma que eles nos entendam. E queremos agir como um buda, beneficiando a todos. E a forma como um buda ajuda é por meio do que chamamos de influência iluminada, ou seja, sem esforço. Um buda não faz nada, na verdade. Ele estimula os outros a crescer e se desenvolver positivamente através apenas de sua influência positiva.  Claro, isso se os outros forem receptivos; é preciso que estejam receptivos à influência do buda.

Agora, uma vez que no nível do resultado queremos todos esses aspectos simultaneamente, queremos conseguir praticar todos esses diferentes aspectos simultaneamente, e é isso que fazemos com a prática do tantra. No nível do resultado, todos os aspectos estão presentes simultaneamente e, de certa forma, no nível da base também. Estão todos lá, presentes.

No outro significado de tantra (como sendo as linhas de um tear onde tecemos várias coisas), todos esses braços, pernas e faces servem como uma estrutura para tecermos todos os diferentes aspectos que desenvolvemos no nível sutra de prática. Portanto, todos esses braços, pernas e faces, e todas as coisas que as deidades seguram, e suas cores, representam vários aspectos dessas qualidades, vários aspectos das práticas para desenvolver-se essas qualidades; e em muitos casos há vários níveis do que tudo isso representa.

Então imaginamos (começamos trabalhando com a imaginação) que temos o corpo de uma dessas figuras, e mantemos em mente o que esses braços, pernas e faces representam. Não é simplesmente lembrar da lista de significados, mas realmente gerar aquilo que essas coisas representam. Portanto, temos esses diferentes aspectos de corpo, mente, boas qualidades e, ao mesmo tempo, nossa fala recita mantras, que imaginamos que comunica e ensina a todos, ajuda a todos, todos conseguem nos entender.

E também há uma atividade búdica acontecendo, essa influência iluminada; Imaginamos, ao mesmo tempo, que estamos emitindo raios de luz que saem de nosso corpo e aliviam os problemas dos seres, levam todas as boas qualidades, fazem oferendas, etc. Tudo isso está acontecendo enquanto estamos lá, como um buda, como a figura búdica. Não precisamos levantar e ajudar fisicamente. Basta nossa presença, através dessas luzes que emitimos. Isso os ajuda, os influencia de forma positiva para que superem seus problemas.

Fazemos isso tudo simultaneamente na prática do tantra, ao mesmo tempo. Assim, isso age como causa – como um caminho – para atingirmos o que realmente queremos atingir, que é todos esses aspectos funcionando plenamente como as qualidades e aspectos de um buda iluminado.

O que vimos, no nível da base, foi que quando temos essas limitações causadas por nossa falta de consciência, quando temos uma confusão a respeito da realidade e emoções perturbadora, elas ativam esses potenciais cármicos e obtemos um renascimento com mais sofrimento, mais confusão, mais comportamento cármico impulsivo – mais limitações. Portanto, o importante na prática do tantra, para chegarmos ao nível resultante de um buda, é começar na base do entendimento da vacuidade.

Vacuidade significa uma ausência. Algo está ausente, simplesmente nunca esteve presente. Nós imaginamos, a mente projeta um certo modo de existência nas coisas. Ou seja, ela faz como que as coisas aparentem ser de uma maneira que é impossível. Como, por exemplo, o caso da poluição do meio ambiente. O que parece estar acontecendo? Parece que estamos simplesmente fazendo alguma coisa, fumando, produzindo fumaça, produzindo fumaça com os carros também. Mas parece que é só isso. O resultado disso não aparece em nossa mente, não é mesmo? Então parece que podemos fazer tudo isso e que não tem efeito algum. Agora, isso não corresponde à realidade, ou corresponde? Portanto, o que está ausente é algo real que corresponda a como as coisas aparentam ser para nós. Em outras palavras, não há nada real que corresponda à impressão de que fazer essas coisas, poluir o meio ambiente, não tem efeito algum. Não há nada de real que corresponda a essa aparência criada por nossa mente.

Temos um hardware limitado com o nosso tipo de cérebro, corpo e sentidos – eles são incapazes de observar o efeito de nossas ações no momento em que estamos agindo. Se acreditarmos que essas aparências correspondem à realidade, experimentaremos todo tipo de confusão e emoções perturbadoras. Isso ativa nossos potenciais cármicos, e então eles geram um novo renascimento com outro corpo e outra mente limitada e mais infelicidade e felicidade comum que nunca dura e nunca nos satisfaz.

Portanto, para fazermos com que essas redes gerem algo como um buda, um corpo e uma mente de um buda – ou, no nível do caminho, no nível da prática, a visualização de uma figura búdica e o tipo de mente e fala de um buda – temos que primeiro entender a vacuidade. Temos que entender que todos esses fatores da natureza búdica não existem de formas impossíveis, assim como as figuras búdicas e os budas também não existem de uma maneira impossível. Com essa compreensão, livre de emoções perturbadoras, livre de ignorância ou falta de consciência – pelo menos em algum nível – podemos imaginar que esses fatores da natureza búdica fazem surgir essas formas mais puras, essas formas de figuras búdicas, ao invés do corpo e da mente limitada que temos ao renascer.

Conseguir fazer esse tipo de prática, começar a fazer e continuar fazendo, com uma compreensão da vacuidade – de que nada existe de uma maneira impossível, de que tudo está inter-relacionado, de causa e efeito, etc – mesmo que só com nossa imaginação e com algum nível de entendimento conceitual, eventualmente agirá como causa, indo cada vez mais profundo, até que realmente consigamos fazer a transformação pura a fim de obter como resultado o estado búdico.

Se quisermos fazer com que nossa prática tântrica seja mais eficaz, precisamos realmente entender a teoria do tantra. Precisamos entender o que, afinal, estamos fazendo, e também o motivo pelo qual estamos fazendo.  Além disso, precisamos ter alguma compreensão de como isso vai funcionar – como pode funcionar e como funciona.

Essa foi uma introdução básica, e vamos continuar com algumas descrições das várias partes da prática tântrica que a maioria de nós fazemos – se estivermos praticando o tantra – que seria a prática de uma sadhana. Sadhana é uma palavra sânscrita e significa um método para nos efetivarmos como uma dessas figuras búdicas. O significado literal é: método para efetivação. E então veremos as diferentes partes da sadhana e o que fazer para que a nossa prática de cada uma dessas partes seja mais eficiente.

Alguma pergunta?

Perguntas

Estamos falando de maneiras impossíveis dos fenômenos existirem. Mas se falamos dessas maneiras impossíveis e as negamos, se dizemos que não existem, então deve haver alguma maneira em que os fenômenos existem, certo?

Sim. Não sei se a pergunta ficou clara, mas acho que o que você quis dizer foi que se refutamos as maneiras que são impossíveis, isso quer dizer que existem maneiras que são possíveis? Sim, claro, as coisas existem.

Mais precisamente, o que está sendo refutado na teoria da vacuidade é o que estabelece que algo existe. Como saber que algo existe? E existem vários posicionamentos sobre o que estabelece a existência de alguma coisa. O que é refutado é o fato disso ser suficiente para estabelecer que algo existe. Quer dizer, retiro o que disse. Não está preciso.

Existe uma maneira – na verdade, é mais uma combinação de maneiras – em que se pode pensar que alguma coisa existe, e que existem coisas que vão provar ou estabelecer sua existência dessa maneira. Por exemplo: Podemos achar que as coisas existem verdadeiramente, por si só, objetivamente, onde estão, na frente de nossos olhos; e o que prova isso, ou o que estabelece isso, é que as coisas funcionam. Esta mesa existe. Ela está aqui, por si só, da forma como aparece para mim. E o que prova isso é que eu posso colocar um copo d’água em cima dela; portanto ela funciona. Bom, ninguém pode negar que a mesa funciona. A mesa funciona, ela apoia o copo. Mas será que isso prova que a mesa existe como uma mesa, por si só, verdadeiramente uma mesa? Bom, é isso que é impossível, mesmo a mesa funcionando. Pois, se eu pudesse sentar, seria uma cadeira. Se eu pudesse queimar, seria lenha. Se eu fosse um cupim, um inseto, eu poderia comê-la, ela seria comida. Então, não é só porque a mesa serve de apoio para um copo que prova que ela é uma mesa, por si só, que é uma mesa e nada mais.

Portanto, quando falamos em formas impossíveis de existência, quando refutamos uma forma impossível de existência, é um pouco mais complexo. Tem a ver com a forma com algo existe e o que o estabelece, o que o prova. O fato de algo funcionar como uma mesa não prova que é verdadeiramente estabelecido como uma mesa, por si só. E então torna-se muito, muito sutil e complicado, muito rápido. Ela pode funcionar como cadeira para alguém que a usa como cadeira. Pode funcionar como comida para alguém que consegue comê-la. Pode funcionar como lenha para alguém que a queime. Então será que é tudo isso? Ou não é nada disso? O que é, afinal? Há muitos, muitos níveis de entendimento da vacuidade, do que é impossível. Um objeto pode funcionar como mesa, cadeira, comida, lenha. Mas será que pode funcionar como cachorro? Não, não pode. Então, como o que ela pode funcionar e como o que ela não pode funcionar, e por que?

Bancos também podem funcionar como mesa, cadeira, comida e lenha. Será que todas essas formas são impossíveis?

Não, são possíveis. Impossível é elas existirem por si só, como sendo essas coisas independentemente do rótulo que lhes foi dado e como as usamos. Ou seja, como se houvesse dentro do objeto algo que fizesse dele uma mesa, uma cadeira, lenha, etc. E certamente não há nada dentro dele que o faça um cachorro. Isso faz com que eu só consiga usá-lo como algumas coisas e não como outras. Mas é preciso pensar muito profundamente sobre isso. Ninguém está negando que o objeto possa ser usado como essas coisas, como aquilo que é possível.

Como se fala mesa em russo?

Stol.

Isto existe como mesa ou como stol? O que é isto?

Fazemos esse tipo de pergunta. O que faz com que eu possa chamar isso de mesa ou de stol e não possa chamar (validamente) de cachorro? E se um grupo de pessoas decidir que “em nosso idioma chamaremos de cachorro”? Talvez isso se chama cachorro em algum idioma africano. O que significa cachorro? O que significa em nosso idioma? O que é? É um cachorro? Começa a ficar interessante.

Será que é possível falarmos em mesa sem que isso esteja relacionado à forma como nos relacionamos com o mundo? Será que podemos falar sobre isso sem o sujeito que o está percebendo? O que aconteceria se removêssemos o sujeito?

Se você remover o sujeito, você não conseguirá falar sobre a coisa; não haverá análise, não haverá conhecimento, não haverá discussão sem um sujeito. Se não houver ninguém no ambiente – essa uma pergunta interessante – se não houver ninguém na sala e também não houver câmeras, será que existe uma mesa na sala? Como estabelecer a existência de uma mesa na sala? Você pode estabelecer que há uma mesa em relação a um sujeito, a uma mente que a percebe. Mas não há como estabelecer a existência de uma mesa separadamente, independente da percepção dela, do pensamento sobre ela ou de um nome para ela ou algo do gênero – que está associado a uma mente que dá o nome.

Essa é a questão aqui. Como estabelecer a existência de alguma coisa? E é impossível, do ponto de vista budista, estabelecer a existência de qualquer coisa independentemente de haver uma mente que a perceba. Agora, isso não significa que a coisa existe somente na mente de quem a está percebendo.

Mas e se formos além da estrutura de uma mente individual e falarmos em termos da mente universal de um buda? Do ponto de vista da mente de um buda, será que podemos falar desse objeto?

Podemos, mas isso é em relação a uma mente.

Será isso que significa que ao seguirmos o caminho da meditação e atingirmos níveis mentais cada vez mais sutis, e o nosso objetivo for a mente de um buda, será que isso significa que perceberemos os objetos em níveis mais e mais sutis?

Em um nível mais puro, poderíamos dizer que sim. Tanto no que diz respeito a como as coisas se parecem – sua aparência – quanto à maneira como elas aparentam existir. Usarei um exemplo bem grosseiro; não é uma analogia exata. Uma pessoa pode vê-lo em termos do seu corpo físico, mas poderia também percebê-lo em termos de sua energia, por exemplo.

Se eu estivesse no nível de ver energia, corpo sutil, eu conseguiria ver o corpo físico ao mesmo tempo, certo? Mas se consigo ver apenas o corpo físico, isso significa que nesse nível que estou, como ser limitado, não consigo perceber o segundo nível, o nível corpo sutil, certo?

Certo.

Então, quanto mais sutil o nível de consciência, mais sutil é a minha percepção, certo? Minha maneira de perceber os objetos.

Sim. Quer dizer, é um pouco mais complicado que isso, claro, porque aquilo de que queremos nos livrar é dessa aparência das coisas como se existissem de uma forma que é impossível. Tanto o corpo grosseiro como o sutil podem aparentar existir de uma maneira impossível. Queremos nos livrar dessa aparência de uma maneira impossível de existência e conseguir perceber todos os diferentes níveis em que algo pode aparecer.  Como um buda, por exemplo, que pode aparecer em formas muito sutis e também em formas mais grosseiras.

E minha segunda pergunta, que está conectada com a primeira, é: a forma de um yidam é determinada culturalmente ou é a mesma para praticantes de qualquer país?

Bom, do ponto de vista budista, poderíamos dizer que é a mesma, independente da cultura, apesar dessas formas terem surgido dentro da cultura indiana. A pergunta que se deve fazer é: por que mudar, e mudar pelo que? Algumas pessoas dizem: “não poderíamos visualizar a Virgem Maria ou Jesus Cristo, figuras cristãs? Na verdade, os cristãos ficariam muito ofendidos se fizéssemos isso. Cristãos indianos e tibetanos deveriam ter imagens de um buda na cruz? Não seria tão ofensivo quanto? Então, o que poderíamos imaginar no lugar dessas figuras? Será que poderíamos imaginar o Mickey Mouse? O que eu quero dizer é: que figura poderíamos imaginar? Que formas poderíamos usar?

Apesar dessas figuras nos parecerem esquisitas, elas também são esquisitas para indianos e tibetanos. Você não vê pessoas por aí com três faces e seis braços e de várias cores diferentes. Portanto, também é esquisito para eles. Mas tanto os tibetanos quanto os chineses e os japoneses usam as mesmas figuras. Por que nós não podemos usar também?

Eu perguntei porque em países da América Latina alguns praticantes têm visões desses yidams em uma forma diferente. Tara, por exemplo, tem uma cabeça extra, uma cabeça de águia. E os líderes de lá adotaram essas formas oficialmente e dizem que não tem problema.

Bom, o que acontece é que essas figuras podem aparecer em diferentes formas. Tomemos Avalokiteshvara (Tchenrezig em tibetano), por exemplo, que pode ser branco, mas também possui formas que são vermelhas, e algumas estão sentadas, outras de pé, algumas têm dois braços, outras quatro e outras ainda mil braços. Portanto, existem muitas formas diferentes para um yidam, uma figura búdica.

Diz-se que quando a prática se popularizar muito e as pessoas a trivializarem, outras formas se revelarão – em uma visão, em algum texto enterrado ou algo do gênero. Portanto, Tara aparecer com uma cabeça de águia não é algo tão incomum. Existe uma forma de Vajrapani que tem um pescoço de cavalo e um garuda (um tipo de águia) em cima. Não há nada de especial sobre o que descreveu sobre a América Latina. Essa forma de Vajrapani que tem um pescoço de cavalo e um garuda em cima é chamada de combinação Vajrapani-Hayagriva-Garuda. Uma águia é chamada de garuda na Índia.

O importante é que se houver uma figura diferente, se uma outra forma da figura búdica for revelada, as pessoas que fizerem a prática com base nessa nova forma terão que atingir resultados. O que define a eficácia, a validade de uma forma é se ela funciona. Não é só uma alucinação de um esquizofrênico.

Se o praticante se visualizar como uma deidade, sem ter um entendimento da vacuidade, haverá alguma diferença quando comparado a uma pessoa que possui esse entendimento?

Definitivamente. É sobre isso que falaremos no final de semana. Pensar que você é Tara ou Tchenrezig, sem a compreensão da vacuidade, é como um louco pensar que é Napoleão, Cleopatra ou Mickey Mouse. Isso pode facilmente lhe levar a esquizofrenia – ficar imaginando essas coisas, totalmente fora da realidade. Você precisa entender a vacuidade da figura búdica. Conforme dizem os textos, se nos visualizarmos assim sem a compreensão da vacuidade, sem bodhichitta, isso só vai servir como causa para nosso renascimento como um fantasma na forma dessa figura. Mas vamos discutir isso amanhã e depois.

Última pergunta.

Quando falamos em compreensão da vacuidade, estamos falando da compreensão conceitual, intelectual, ou experiencial?

Bom, a compreensão conceitual é uma experiência; precisamos ter um pouco de cuidado com a terminologia aqui. No início a compreensão será conceitual, porque é a única forma possível no começo. Mas depois, claro que precisamos ter uma compreensão não-conceitual, e há vários estágios envolvidos na cognição não-conceitual. Mas é essencial sabermos a diferença entre conceitual de não-conceitual, pois não é o mesmo que a diferença entre intelectual e intuitivo. Essa é uma outra forma de dividir a experiência, é uma forma ocidental.  Isso não é o que o budismo quer dizer com conceitual e não-conceitual.

Na cognição conceitual percebemos algo através da categoria da vacuidade, da categoria geral da vacuidade. Então, toda vez que foco na vacuidade, apesar de ser uma experiência individual, eu percebo: “ok, isso se encaixa na categoria geral “vacuidade””. Mas não preciso dizer a palavra em minha mente. O fato é que há algo entre a percepção individual da vacuidade e a mente; que é a categoria geral: “Ah, sim, essa é a categoria, agora estou meditando na vacuidade novamente”. Pode ser uma experiência muito profunda e transformadora, mas ainda é através dessa categoria. E conforme disse, não precisamos verbalizar mentalmente: “Vacuidade. Agora estou meditando sobre a vacuidade”. Não precisa, mas a categoria está lá.

Na cognição não-conceitual, a percepção não está misturada com a categoria. É a experiência em si, e – aqui vem a pegadinha – você sabe que é a vacuidade, mas não a está misturando com a categoria vacuidade. Mas é muito sutil, pois não estamos falando aqui em pensar ou não em vacuidade  – isso é outra coisa – pois mesmo sem você estar pensando na vacuidade, a categoria ainda está lá.

Podemos usar um exemplo simples, de um cachorro. Existem muitos tipos diferentes de cachorros e são bem diferentes uns dos outros. Podemos olhar para um cachorro e pensar “cachorro”. Podemos até estar com a palavra na mente, mas mesmo sem pensar “cachorro” posso ver o cachorro como um cachorro. Portanto, estou misturando com a categoria “cachorro”. Quando tenho uma percepção não-conceitual, eu sei que é um cachorro, mas em certo sentido, estou apenas me relacionando com o animal que está ali. É muito, muito sutil a diferença entre o que significa conceitual e o que significa não-conceitual. É muito, muito difícil.

Será que isso significa que estamos ao mesmo tempo trabalhando com nosso entendimento não conceitual da realidade e que ele está ficando cada vez mais sutil, e que também estamos trabalhando e desenvolvendo nossa descrição conceitual do mundo?

Bom, na maior parte do tempo, a nossa cognição não-conceitual acontece apenas por um breve momento. Quase que instantaneamente ela se transforma em conceitual. O que eu quero dizer é que quando olho para todas essas cores, o que vejo? Vejo formas coloridas e objetos. Agora, eu sei que todas essas formas coloridas na minha frente são pessoas. Mas eu estou pensando “pessoas”? Não. Eu certamente não estou verbalizando “pessoas” quando olho para vocês, mas eu sei que vocês são pessoas.  Será que tenho o conceito “pessoas”, que eu os estou vendo como pessoas, que estou misturando o conceito pessoas com a visão de vocês como pessoas? Essa é uma pergunta interessante. Bom, há determinadas associações que fazemos com a categoria “pessoas”, não há? Se eu falar com você, provavelmente você vai me entender. Então não estou falando com fotografias de pessoas.

Acho que o conceito ocidental mais parecido com esse é o de uma ideia; tenho uma ideia do que seja uma pessoa. Isso seria conceitual. Seria uma preconcepção? Normalmente quando falamos de uma preconcepção, existe um aspecto de julgamento envolvido: tenho uma preconcepção de que você vai gostar de mim ou de que não vai gostar de mim. A ideia a que me refiro, quando digo que as pessoas conseguem entender quando falo com elas, não é essa.

Não é uma ideia?

Uma preconcepção não é necessariamente o mesmo que uma ideia, uma ideia do que é uma pessoa. Uma pessoa sentada aqui pode estar desconfortável, pode ter que pegar um ônibus, pode ter que pegar um metrô, pode ter que ir ao banheiro; o que eu quero dizer é que existem várias outras coisas que não são tão neutras quanto: “você vai gostar de mim” ou “você não vai gostar de mim”. Mas se olhar para você através da ideia de “pessoas”, haverá uma certa distância. Algo estará misturado à percepção direta. Portanto, se eu perceber você de uma forma não-conceitual, será que isso significa que não faço ideia do que seja uma pessoa? Não, não significa isso. Eu sei o que é uma pessoa. Eu sei que pessoas podem sentir dor nas pernas, podem ter que ir para casa, podem ter que ir ao banheiro. Eu sei disso, mas isso não está misturado à minha percepção delas como pessoas. Ou algo assim.

Mas, como costumo dizer, tem a ver com categorias. Categorias de pessoas. E itens individuais que se encaixam em uma categoria, ao invés de apenas itens individuais. É muito, muito sutil. É muito difícil reconhecermos isso na meditação. É muito, muito difícil. A indicação ocorre geralmente em termos da vivacidade do objeto: se estiver misturado à categoria, não fica tão vívido. Costuma-se dizer que fica meio encoberto. Mas geralmente, quando estamos acordados, a percepção não conceitual é tão pequena que não conseguimos percebê-la. A hora em que conseguimos reconhecer é nos sonhos. Sonhos são não-conceituais. O que você vê e ouve nos sonhos é não-conceitual. Você pode pensar no sonho, isso é conceitual, claro. Mas a imagem do sonho é muito mais vívida. Entretanto, normalmente nossa retenção mental no sonho é muito, muito pequena e não conseguimos nem nos lembrar direito dele depois.

E provavelmente temos que dividir o estado de sonho em sonhos onde existem imagens e o sono profundo sem sonhos.

Certo. E não estamos nos referindo apenas ao surgimento de imagens visuais, mas também sons, aromas e sensações físicas. Você pode imaginar-se comendo em um sonho.

E o problema é que, até onde eu sei, do ponto de vista budista, quando falamos em dormir e ver sonhos, isso também é conceitual. Quando temos sonhos (não no sono profundo, quando não vemos imagens de sonhos), até onde eu sei, é conceitual.

Não, não necessariamente. Você definitivamente tem cognições conceituais em sonhos. Nós pensamos, planejamos e falamos nos sonhos. Mas estamos falando aqui de ver uma imagem em um sonho. Isso é não-conceitual. É uma qualidade diferente da de ver coisas com os olhos, e bastante diferente de imaginar coisas quando estamos acordados. É mais vívido, mais real. E normalmente não estamos pensando muito.

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