Roda de Armas Afiadas: Destruindo o Auto-Apego

Versos Finais da Terceira Seção do Texto

Dharmarakshita nos mostrou o problema causado pelo auto-apego e pelo autocentramento, e os identificou como estando por trás dos vários problemas e sofrimentos que temos.  Dharmarakshita finaliza a terceira seção a partir do verso 91:        

(91) (Oh Yamantaka), (você que é) dotado de um Dharmakaya de Buda, destruidor do demônio que é a visão de um "verdadeiro eu" - oh, uau - (você,) que tem força, com sua clava de caveira - a arma afiada de suas ações sem “eu verdadeiro” – circule três vezes sua cabeça, decididamente.

clava de caveira representa a consciência discriminativa da vacuidade, ou vazio. Aqui, circule três vezes é para destruir o apego ao eu, a atitude autocentrada resultante e (também) o corpo samsárico com cinco agregados resultante, incluindo as emoções venenosas. 

Por causa de nossos hábitos arraigados de apego à existência verdadeiramente estabelecida, nossas mentes produzem uma aparência que se assemelha à uma existência autoestabelecida. Devido à nossa falta de consciência, não sabemos e não entendemos como essa aparência não corresponde à realidade. Então nos agarramos a ela como se realmente correspondesse. Essa crença faz com surjam emoções perturbadoras, que nos levam a agir de forma destrutiva, e o resultado é que nossas ações geram repercussões cármicas. Essas repercussões cármicas são ativadas com mais emoções perturbadoras e, quando amadurecem, produzem, dentre outras coisas, os cinco agregados - nosso corpo e mente - e aquilo que vivenciamos. 

Vivenciamos um corpo e uma mente limitados. Continuamos a ter as várias tendências, não apenas para o comportamento cármico compulsivo, mas também para as emoções perturbadoras, incluindo os três venenos, e continuamos com o hábito de nos agarrar a uma existência verdadeiramente estabelecida. Depois, repetimos compulsivamente ações semelhantes às que fizemos no passado. Primeiro, sentimos a vontade de fazer essas ações, e isso nos leva a mais comportamentos compulsivos e a compulsivamente entrar em situações em que coisas semelhantes ao que fizemos aos outros acontecem conosco, e continuamos a ter os cinco agregados. Isso é samsara, existência incontrolavelmente recorrente. 

Dharmarakshita continua, e completa esta seção com os próximos três versos:        

(92) Nós lhe imploramos, livra-nos deste inimigo, com sua grande força e ferocidade! Nós lhe imploramos, esmague este pensamento ruim, com sua grande consciência discriminadora! Nós lhe imploramos, proteja-nos do carma, com sua grande compaixão! Nós lhe imploramos, acabe com o “verdadeiro eu”, de uma vez por todas! 
(93) Todo o sofrimento dos seres samsáricos, junte-o, definitivamente, eu te imploro, a meu apego a um "verdadeiro eu!" Todas as cinco emoções perturbadoras venenosas que existirem nas pessoas, junte-as, definitivamente, eu te imploro, a este que é da mesma classe!

Em outras palavras, queremos praticar tonglen. Todos nós temos essas emoções venenosas e somos da mesma classe que todos os demais. Todos são iguais. O versículo suplica a Yamantaka: “Jogue isso sobre mim, tudo isso. Deixe-me cuidar disso e dissolver isso sozinho. Assim como um pavão, posso transformar esse veneno em algo que me ajudará no caminho para a iluminação.” 

Ele conclui esta seção com o seguinte:  

(94) Embora tenhamos identificado, através da lógica, e não restando nenhuma dúvida, a raiz de nossas faltas, sem deixar para trás nenhuma, se você conseguir expor (alguma parte de nós que) ainda está do lado delas, nós lhe imploramos, acabe com esse que está!

Ter a cognição não conceitual inicial da vacuidade não é suficiente; isso é apenas o começo. Temos que nos acostumar cada vez mais com isso por meio do chamado "caminho da meditação" ou "caminho do costume". Quanto mais conseguirmos focar não conceitualmente na vacuidade, mais isso quebrará o momentum dessa formação de aparência de uma existência verdadeiramente estabelecida. Gradualmente, nossas mentes vão primeiro parar de acreditar na existência verdadeiramente estabelecida e depois parar de fazer isso aparecer.   

Dedicando as Raízes de Nossas Ações Positivas a Outras Pessoas

A quarta parte do texto inicia a discussão sobre o que pode ser dado aos outros, uma vez que destruímos os obstáculos que nos impedem de tomar para nós esses sofrimentos e suas causas – as emoções venenosas e assim por diante. Nesse ponto, construímos uma rede de força positiva (mérito) e consciência profunda (sabedoria) para evitar comportamentos destrutivos e agir de maneira positiva. Agora, temos alguma coisa que podemos dar aos outros neste processo de dar e receber, no tonglen. Esta seção começa assim:  

(95) Agora, tendo colocado toda a culpa em uma única coisa, vamos meditar fortemente sobre a bondade para com todos os seres. Tendo trazido para nossas correntes mentais aquilo que os outros nunca desejaram, vamos dedicar a cada ser errante as raízes de nossos atos construtivos. 

Que os outros estejam ancorados nas raízes de nossa compreensão e comportamento construtivo, de modo que possam acumular mais potencial positivo. 

Dharmarakshita retoma a imagem do pavão:   

(96) Por termos tomado, assim, para nós, (as consequências negativas) daquilo que os outros fizeram, três vezes e através dos três portões (de ação), que as emoções perturbadoras sejam transformadas em ajuda para a iluminação, como pavões que têm cores radiantes (alimentando-se de) plantas venenosas. 
(97) E por ter dado aos seres errantes as raízes de nossos atos construtivos e, como se estivéssemos curando com remédios os corvos que comeram plantas venenosas, salvado a vida da liberação de todos os seres, que eles possam rapidamente alcançar o estado bem-aventurado de um buda.

Na nossa prática de tonglen, não só dedicamos aos outros as raízes de todo o nosso potencial positivo – para que eles ganhem a liberdade dos piores estados de renascimento, a obtenção de estados superiores de renascimento e a liberação e a iluminação – como também nos imaginamos realmente dando tudo isso a eles. Porém, para atingir esses objetivos eles precisam entender que nada do que damos tem existência verdadeiramente estabelecida; portanto, desejamos dar (também) a compreensão correta da vacuidade, o antídoto definitivo para o auto-apego e o autocentramento, que os fazem vagar no renascimento samsárico.  

Portanto, mais uma vez, reafirmamos o entendimento da vacuidade.  

Descanse no Alaya, a Base Que Tudo Abrange  

Na elaboração posterior da prática de tonglen, que encontramos no Treinamento da Mente em Sete Pontos, Geshe Chekawa diz:      

A natureza essencial do caminho é estabelecer-se em um estado de alaya, a base que tudo abrange. 

É preciso que isso seja entendido corretamente. Embora tenhamos falado sobre isso em uma sessão anterior, vamos examinar em mais detalhes. De acordo com vários comentários, existem duas interpretações do que significa este alaya. Não é o mesmo alaya que temos na Chittamatra, a escola Mente Apenas.  Alaya não se refere ao alayavijnana, a chamada "consciência de depósito" ou "consciência fundamental que tudo abrange". De acordo com o que afirma a Chittamatra, a consciência fundamental é verdadeiramente autoestabelecida, carece de clareza em relação ao seu objeto, não é especificada como destrutiva ou construtiva - pode ir para um lado ou para outro - e é o nível da mente ou atividade mental que vai de uma vida para a outra, como a base sobre a qual as várias tendências, potenciais e hábitos cármicos são imputados. Não é disso que Dharmarakshita está falando aqui.              

Alaya Como um dos Fatores da Natureza Búdica 

Aquilo em que queremos descansar é apenas o alaya, ou seja, a “base que tudo abrange”. Refere-se a um aspecto da natureza búdica. A natureza búdica se refere aos vários fatores que todos possuímos, como parte de nossos contínuos mentais individuais, e que nos capacitam a atingir o estado iluminado de um buda, mais especificamente, os corpos iluminados de um buda.       

Existem três aspectos diferentes da natureza búdica, conforme apresentado no Uttaratantra, O Córrego Perene Mais Longe Gyulama em Tibetano - um grande texto de Maitreya. Os três aspectos são as características evolutivas, as duradouras e o fato de que o contínuo mental pode ser estimulado pela influência iluminadora de um Buda. As características em evolução são frequentemente chamadas de "duas coleções". Prefiro usar o termo “redes” porque são formadas por muitos aspectos diferentes que se conectam em rede. São elas a rede de força positiva e a rede de consciência profunda.                     

As Redes em Evolução de Força Positiva e Consciência Profunda

A rede de força positiva é chamada, às vezes, de "coleção de mérito". Poderíamos pensar em uma rede de potencial negativo também; mas, apenas uma rede de potencial positivo é discutida na literatura tradicional. Normalmente ela dá origem ao renascimento em um dos três melhores estados de renascimento samsárico - humano, asura (um antideus) ou ser divino (um deus) - com o corpo e os agregados apropriados a tais estados. Ela também dá origem a comportamentos construtivos instintivos, a situações positivas em nossa vida e à felicidade comum. Quando a força positiva é gerada e dedicada com bodhichitta, em vez gerar um corpo samsárico comum e mais afortunado, ela pode originar o Corpo de Forma de um Buda. Em vez do tipo samsárico de comportamento construtivo misturado a confusão, temos a atividade iluminadora de um Buda; em vez de nossa felicidade comum, temos a mente sempre bem-aventurada de um Buda; e em vez de um ambiente favorável impuro, temos um ambiente puro. Essas realizações são o resultado da purificação e do crescimento, com bodhichitta, desse aspecto da natureza búdica. É uma rede de força positiva em evolução.                             

Há também uma rede de consciência profunda, às vezes chamada de “coleção de sabedoria”, que é cada vez mais ampliada com nossa contínua cognição não conceitual da vacuidade. Também podemos falar dessa rede em termos dos cinco tipos de consciência profunda, como espelho e igualdade. Dedicada com bodhichitta, dá origem à mente onisciente de um buda, que conhece todas as coisas e tem o mesmo amor e compaixão por todos. Este é o Dharmakaya da Consciência Profunda, o Jnana Dharmakaya. Precisamos dessas duas redes e, à medida que obtemos mais e mais potencial positivo e consciência profunda, dedicadas com bodhichitta à nossa conquista da iluminação, elas evoluem até o ponto em que originam corpos de buda.                 

A Natureza Búdica Permanente 

Os fatores permanentes da natureza búdica referem-se às naturezas convencionais e mais profundas da mente. É disso que estamos falando quando falamos em alaya. Eles são permanentes no sentido de que estão presentes tanto no samsara quanto no nirvana. Eles permanecem sempre os mesmos, nunca mudam.     

A natureza convencional da mente - nossa atividade mental subjetiva e individual de vivenciar coisas, momento a momento - refere-se às suas características definidoras: mera clareza e consciência“Clareza” significa que a atividade mental dá origem, momento a momento, ao aparecimento de algo que, para usar uma analogia, é como um holograma mental. Originar o holograma mental de alguma coisa, isso é o que significa tomar conhecimento ou saber alguma coisa. Este é o segundo termo na definição, “consciência”, algum tipo de envolvimento cognitivo. Dar origem não significa que primeiro surge um pensamento e depois o pensamos. Clareza e consciência são a mesma atividade mental que acabamos de descrever de dois pontos de vista diferentes. “Mera”, a terceira palavra na definição, significa que existe apenas isso. Não existe um “eu” separado que está observando a atividade mental ou tentando controlá-la ou qualquer coisa assim. Nesse sentido, a mente, atividade mental, é não-dual por natureza. 

Essa natureza convencional da mente ocorre mesmo quando a atividade mental está sob a influência da inconsciência, do autocentramento, do auto-apego e assim por diante. Independentemente do conteúdo de nossa atividade mental, ela é o mero surgimento de um holograma mental, que é um envolvimento cognitivo. Mesmo se já fossemos um Buda onisciente, nossa atividade mental ainda teria a mesma natureza convencional, só que não mais contaminada pelas máculas fugazes das emoções perturbadoras e assim por diante.                    

A natureza mais profunda da mente é que ela é desprovida de existir de uma maneira impossível. Não é autoestabelecida. O fato de que nossa atividade mental não é autoestabelecida como samsárica ou nirvânica, o fato de que surge na dependência de outros fatores, significa que a transformação para o estado búdico pode ocorrer.   

Os fatores evolutivos da natureza búdica, quando totalmente purificados, dão origem aos corpos e à mente de um buda. As naturezas permanentes continuam até estado búdico, como um Corpo Natural Essencial, um Svabhavakaya.     

O Fator da Natureza Búdica de Responder à Influência Iluminadora

O terceiro fator da natureza búdica é a mente poder ser inspirada pela influência iluminadora e pela atividade iluminadora de um buda. Ela pode ser estimulada a evoluir. Os fatores em evolução podem ser estimulados pelos “raios do sol”, para usar uma metáfora clássica. É assim que está descrito nos textos.   

Descanse na Natureza da Mente

O que queremos fazer em nossa prática de tonglen, depois de tomar para nós as emoções perturbadoras e sofrimentos de todos os demais, é descansar no alaya, na natureza de nossa mente, aqui estamos nos referindo aos fatores permanentes da natureza búdica. Existem duas interpretações de como fazer isso na meditação. Ambas são igualmente eficazes. Podemos meditar descansando tanto na natureza convencional da mente quanto na natureza mais profunda da mente. Diferentes posições filosóficas chamarão ambas de natureza mais profunda ou farão alguma diferenciação. A questão é entender do que realmente se trata. Quando meditamos descansando no mero surgimento de um holograma mental e consciência, qualquer ocorrência de atividade mental é como ondas no oceano da mente. As ondas são da mesma natureza do oceano. Quando experimentamos essas emoções venenosas, focamos nelas como sendo exatamente como as ondas do oceano; naturalmente, eles se acalmarão.       

Quando meditamos descansando na natureza mais profunda da mente, focamos no fato de que, quer experimentemos uma onda ou um oceano calmo, tudo o que experimentamos é desprovido de existência autoestabelecida. Lembre-se, quando falamos sobre vacuidade ou vazio, isso significa a ausência total de um existência autoestabelecida, que nunca existiu, uma vez que isso é impossível. Vacuidade não significa que nada existe. Tudo, incluindo as emoções perturbadoras venenosas, surge na dependência de outros fatores.        

Surgimento Dependente

O surgimento dependente tem três níveis de significado. Primeiro, coisas impermanentes, fenômenos não estáticos que estão sujeitos a mudanças, surgem de acordo com causas e condições. Por exemplo, um corpo samsárico surge na dependência de causas e condições, como uma mãe e um pai, ou seja, um contínuo mental de um ser senciente previamente existente e que contém a inconsciência da realidade - essas coisas. 

Um segundo nível de surgimento dependente é o de que todas as coisas, estáticas ou não - ou seja, que mudam ou que não mudam - surgem na dependência de partes. O terceiro nível é o surgimento dependente em termos de rotulagem mental com conceitos e designação com palavras. Não é que o pensamento conceitual crie coisas; ele não cria coisas. Tenhamos ou não o conceito de dor, ainda assim sentimos algo. As coisas ainda assim funcionam; mas qualquer que seja o fenômeno convencionalmente existente, ele só pode ser estabelecido como existindo convencionalmente na dependência daquilo a que se refere o conceito convencionalmente aceito e o nome que se dá a ele. Esse é o terceiro nível do que significa o surgimento dependente. Embora as coisas pareçam autoestabelecidas – ou seja, estabelecidas por si só, independentes do surgimento dependentes - isso é como uma ilusão. É enganoso. Parece que é assim, mas isso não corresponde à realidade. A realidade é que as coisas surgem de maneira dependente. Só podemos estabelecer sua existência convencional em termos de sua dependência de causas e condições, partes, e aquilo a que os nomes e conceitos se referem. Assim, Dharmarakshita afirma:         

(104) Ei, aqueles como eu! Todas essas coisas surgem de forma dependente, e o que depende do surgimento dependente não pode ser autossustentável. Mudando para aquilo ali e mudando para isso aqui, suas falsas aparências são uma ilusão. São reflexos que (meramente) aparecem, como um tição giratório. 
(105) Assim como a bananeira, nossa força vital não tem um núcleo. Assim como uma bolha, nosso tempo de vida (também) não tem núcleo. Assim como uma névoa, que desce, são coisas que se dispersam. Assim como uma miragem, são bonitas (apenas) de longe. 
(106) Assim como reflexos em um espelho, parecem muito reais, muito reais. Assim como uma nuvem ou névoa em uma montanha, parecem ficar e ficar.

Esses versos são uma forma poética de expressar o que estivemos discutindo. As coisas parecem ter um núcleo, algo dentro delas que estabelece sua existência, mas é isso que a vacuidade está refutando. Não existe algo no objeto que, como um núcleo, o faça se levantar. 

As coisas também não são como fitas virgens, e nossas mentes projetando coisas nelas. Essa é outra visão errada. Não é assim. Não é como se houvesse algo lá – que a coisa em si estivesse lá, estabelecida por si só – e que suas qualidades e o nome que utilizamos para ela fossem projetados a partir da mente. Nada é assim também. Pode parecer, e um determinado um nível de compreensão poderia nos levar a pensar que é assim. Podemos imaginar e acreditar que existe apenas "eu" - uma entidade neutra e solidamente estabelecida – e que nesta vida "eu" tenho este nome e naquela vida tive aquele nome, e assim por diante. Mas também não é assim, embora pareça ser. 

Do ponto de vista científico, temos átomos, partículas subatômicas, ondas, campos de energia e assim por diante, e não existem limites concretos ao redor das coisas, existem? As coisas não estão encapsuladas em plástico ou como em um livro de colorir infantil com linhas ao redor, transformando-as em coisas para colorir, separadas do que está ao seu redor. Esse é outro nível de surgimento dependente, em que as coisas surgem de acordo com um contexto. 

Pensando bem, um exemplo maravilhoso é como diferenciamos as várias emoções e fatores mentais que sentimos simultaneamente em um dado momento. Podemos ter raiva ou desejo, mas ao mesmo tempo existe algum nível de concentração, algum nível de atenção, embora possa não ser muito forte, algum nível de interesse e algum nível de inconsciência ou ignorância. Também existe algum nível de apego. Pode ser misturado com um nível de amor, quando amamos alguém mas estamos muito apegados à pessoa. Nesse caso, há um certo exagero acontecendo, e estamos distinguindo apenas alguns aspectos da pessoa. 

Como diferenciamos, em meio a tudo isso, os fatores individuais que compõem este momento da nossa experiência? Não é como se cada coisa fosse separada e encapsulada em plástico, com uma grande linha ao seu redor, não é mesmo? Todos esses fatores interagem, são interdependentes. Ainda assim, conceitualmente, podemos isolar cada um deles. O termo técnico para a ferramenta conceitual que usamos para isso é "isolamento conceitual" (ldog-pa ), que literalmente significa "nada além do que é". Conceitualmente, nós podemos isolar uma coisa e dar-lhe um nome; mas, na verdade, todos os componentes que constituem qualquer momento de nossa experiência são interdependentes, não são? No entanto, a aparência é de que toda a essa mistura de fatores mentais se autoestabelece como algo sólido, algo como "meu mau humor". Mas ele é constituído de todas essas partes e elas estão mudando o tempo todo. No texto, várias imagens são usadas para representar esses pontos, como uma bananeira, que tem anéis concêntricos de casca, mas nada no meio; ou uma bolha, uma névoa, uma miragem, reflexos em um espelho e assim por diante. 

O Falso Eu Nunca Teve uma Existência Verdadeiramente Estabelecida

Precisamos ter cuidado aqui. O eu impossível, o “eu” verdadeiramente estabelecido, nunca existiu. Havia apenas a aparência de alguma coisa que parecia ser ele. Isso é o eu convencional que surge de forma dependente.

(107) Este açougueiro, o “verdadeiro eu”, o inimigo, é assim. Apesar de parecer existir e existir, nunca existiu. Apesar de parecer ser verdadeiro e verdadeiro, nunca foi vivenciado como verdadeiro em lugar algum. Apesar de aparecer e aparecer, está além de ser um objeto que pode ser adicionado ou subtraído.

Se algo não existe – assim como esse falso “eu” – não podemos adicioná-lo ou subtrai-lo de alguma coisa. Ele nunca esteve lá. Nós apenas imaginamos que estava. Nossas mentes produziram uma aparência que o representou e que parecia ser ele. Não é que a mente gere uma existência verdadeiramente estabelecida e a projete em algo. Nossa mente limitada produz uma aparência que é como uma existência verdadeira e autoestabelecida; mas ela não pode criar algo que não existe. Podemos criar a imagem de um Papai Noel, mas não podemos criar o Papai Noel, o Coelhinho da Páscoa ou o Mickey Mouse. O que nossas mentes estão produzindo é uma aparência que representa algo que não faz sentido e não existe.   

Nenhum Fenômeno Jamais Teve uma Existência Verdadeiramente Estabelecida

Essa ausência total de uma existência verdadeira e autoestabelecida se aplica a todos os demais fenômenos. O próximo versículo demonstra claramente que este texto não é apenas um texto Hinayana ou Vaibhashika, que aceita a falta de um eu impossível apenas em pessoas, apesar de Dharmarakshita ser um especialista em explicar a Vaibhashika. Isso fica muito claro, pois o texto também apresenta a vacuidade do carma, das emoções perturbadoras e assim por diante.             

(108) Quaisquer que sejam as armas afiadas do carma que esse (açougueiro) possui, embora não tenham naturezas autoestabelecidas, assim como este (inimigo), aparecem como o reflexo da lua em um copo d'água. Essas causas e efeitos cármicos são várias exibições falsas, mas, embora sejam meras aparências, olha, vou lhe dizer: "Devemos aceitar ou rejeitar (as ações)."

Quaisquer que sejam as armas afiadas do carma que esse (açougueiro) possua, embora não tenham naturezas autoestabelecidas, assim como este (inimigo), significa que todos os fenômenos são desprovidos de existência verdadeiramente estabelecida, não apenas o “eu”. No entanto, aparecem como o reflexo da lua em um copo d’água. Essas causas e efeitos cármicos são várias exibições falsas, mas embora sejam meras aparências, olha, vou lhe dizer: "Devemos aceitar ou rejeitar as ações." Isso é muito importante, esse “embora”. Embora as coisas pareçam ser verdadeiramente estabelecidas, não são; são desprovidas de tal existência. Não existe uma realidade que corresponda a coisas envoltas em plástico gerando a si mesmas independentemente de tudo o mais. No entanto, as coisas funcionam e, por isso, precisamos aceitar ou rejeitar as ações. Precisamos rejeitar o comportamento destrutivo com base nas três emoções venenosas e aceitar o comportamento que se baseia no oposto delas, e fazer isso com (base no nosso) entendimento. 

É importante não cair no extremo niilista de pensar que, só porque a verdade convencional ou superficial das coisas é o fato de que elas parecem existir com a aparência enganosa de serem autoestabelecidas, os objetos convencionais não existem. Se eles não existissem, causa e efeito não funcionariam.   

Se fosse verdade que nosso sofrimento não existe e que nós não existimos, todos estaríamos livres de problemas. Mas é óbvio que não estamos, e não estamos porque continuamos criando problemas para nós mesmos. O niilismo é uma compreensão incorreta. Em vez disso, percebendo que tudo é apenas como uma ilusão, precisamos rejeitar o comportamento destrutivo e as visões erradas e aceitar o comportamento construtivo e as visões corretas. Causa e efeito ainda operam, embora sejam como uma ilusão.       

Os Três Tipos de Consciência Discriminativa

Dharmarakshita continua:

(109) Quando no mundo dos sonhos arde um fogo enorme, embora não tenha uma natureza autoestabelecida, ainda assim ficamos apavorados. Da mesma forma, embora o que ocorre nos reinos como o inferno sem alegria não tenha natureza autoestabelecida, por causa do nosso medo de sermos fervidos, queimados e assim por diante, precisamos abandonar (sua causa cármica). 
(110) Quando estamos com febre e deliramos, embora não haja escuridão, (sentimos que) estamos entrando em uma longa e profunda caverna e sufocando. Da mesma forma, embora a inconsciência e assim por diante careçam de naturezas autoestabelecidas, devemos acabar o delírio (que elas causam) com os três tipos de consciência discriminativa. 

Quanto aos três tipos de consciência discriminativa, existe a consciência discriminativa que vem de ouvir, ou ler os ensinamentos discriminando as palavras corretas e as palavras incorretas. Isso era especialmente importante quando a memorização dos ensinamentos era através da escuta. As palavras do Buda foram transmitidas de memória nos primeiros séculos, então era preciso ter certeza de que o que se ouvia estava correto, e que o que estava sendo recitado estava correto. Existe essa consciência discriminativa. Muitas vezes, alguém diz uma coisa e ouvimos outra, ou não nos lembramos corretamente do que foi dito. Obter o ensinamento correto e ter certeza de que isso é o que foi ensinado é a consciência discriminativa do ouvir. 

Depois, temos a consciência discriminativa do pensar, com a qual entendemos corretamente o que significa o ensinamento e nos convencemos de sua validade. Conseguimos isso pensando e analisando. 

Por último, temos a consciência discriminativa da meditação, o que significa familiarizar-se com um ensinamento para poder aplicá-lo adequadamente em nossas vidas. Discriminar, nesse sentido, significa que realmente internalizamos. Esses são os três tipos de consciência discriminativa.                

Felicidade e Sofrimento Surgem de Forma Dependente

(114) Quando vivenciamos felicidade ou sofrimento como resultado cármico, não é por meio da primeira instância de sua causa, e não é por meio da última instância. Vivenciamos felicidade e sofrimento por meio de uma acumulação que surge de forma dependente. No entanto, embora sendo meras aparências, olha, eu lhe digo: "Devemos aceitar ou rejeitar (as ações.)"

As coisas surgem na dependência de causas e condições, uma após a outra. Isso vem dos ensinamentos básicos sobre carma. Um resultado não vem apenas de uma causa, mas de uma rede de muitas causas e condições. Uma causa não dá origem necessariamente a um único resultado. Ela dá origem a toda uma rede de consequências da ação.    

As coisas também dependem de partes. Como disse o Buda, um balde não se enche com a primeira ou com a última gota, mas com o acúmulo de gotas. Acumulamos muitas causas ao longo de muitas vidas, e o que vivenciamos é o amadurecimento de todo um acúmulo de causas. 

Há muitas coisas amadurecendo ao mesmo tempo. Por exemplo, temos uma tendência cármica, então temos vontade de fazer uma determinada coisa. Mas, também há a tendência para uma emoção perturbadora, então algum aspecto dela vai surgir ao mesmo tempo. Além disso, há um nível de atenção ou concentração que vai amadurecer. Todos os fatores mentais têm tendências e todos eles têm diferentes forças e diferentes aspectos, e diferentes condições irão afetar os resultados. Ao mesmo tempo, algo pode estar nos incomodando e podemos estar com muito sono. Essa é outra condição que afeta a forma como reagimos. Tudo isso são partes, e nada é sólido. O que vivenciamos é uma grande rede de coisas.          

A Necessidade de Meditar sobre as Bodhichittas Convencional e Mais Profunda

(115) Uau! Essas aparências de coisas agradáveis, que se não examinadas (parecem existir) por si só, não têm um núcleo, mas ainda assim parecem realmente existir! Isso é profundo! Mas, é difícil para os com pouca inteligência entender.

O surgimento dependente não é tão óbvio. Nada é fácil. Portanto, precisamos meditar tanto na bodhichitta convencional quanto na mais profunda e, assim, obter a iluminação. Dharmarakshita conclui (o texto) com este ponto, com o verso final:   

(118) Praticando assim a bodhichitta convencional e a bodhichitta mais profunda, e completando, sem interrupção, o acúmulo das duas redes iluminadoras, podemos alcançar o esplendor (da iluminação), cumprindo os dois objetivos.

Os dois objetivos são, primeiro, a obtenção de um Svabhavakaya, um Corpo Natural Essencial - a verdadeira cessação de todos os obscurecimentos, equivalente à vacuidade da mente. Este é o objetivo da bodhichitta mais profunda, e sua realização cumpre nosso propósito de conseguir ajudar os outros. Para cumprir os propósitos dos outros, almejamos um Jnana Dharmakaya, um Dharmakaya de Consciência Profunda (ou sabedoria)- uma mente onisciente e totalmente amorosa. Esse é o objetivo da bodhichitta convencional. A mente onisciente e totalmente amorosa de um buda dá origem a várias aparências, corpos de forma, com os quais ajuda os outros, ensinando-os e assim por diante. Embora essas formas pareçam autoestabelecidas para as mentes limitadas dos seres sencientes, isso não importa. Mesmo que suas mentes originem as aparências enganosas dos Corpos de Forma, com essas formas, ele pode ajudar, inspirar e elevar os fatores de natureza búdica, potenciais positivos e assim por diante dos outros, para que amadureçam. Por meio desse aprimoramento, outras pessoas começarão a agir de maneira mais positiva, obterão mais compreensão, etc.                 

Dando a Compreensão Correta das Duas Verdades 

Isso conclui nossa discussão do texto Roda de Armas Afiadas. No final, com a prática de tonglen, queremos dar aos outros a compreensão correta das duas verdades. 

Num nível superficial, convencional, as coisas parecem se autoestabelecer, como se tivessem algo dentro delas tornando-as quem são, por si só, independentemente de tudo o mais. 

Isso é apenas uma aparência enganosa; no entanto, os objetos convencionais funcionam. E assim, ao interagirmos com coisas convencionais, se agirmos destrutivamente, isso trará sofrimento. Se agirmos positivamente, isso trará a felicidade comum. Se agirmos positivamente junto com a bodhichitta e dedicarmos a força positiva de nossos atos de maneira adequada, essa força positiva poderá contribuir para a conquista da nossa iluminação. 

Queremos dar essa compreensão da causa e efeito cármico a outras pessoas, e também queremos dar a compreensão da verdade mais profunda. Então, com a bodhichitta convencional, nos dedicamos a beneficiar os outros, “Vou ajudá-los”. Fazemos isso por meio de aparências convencionais. Além disso, “também vou ajudá-los com a bodhichitta mais profunda, para que também tenham a compreensão da vacuidade”. 

Com o tonglen, tomamos as emoções venenosas dos outros e as dissolvemos na base que tudo abrange, alaya. Nesse estado, podemos dar aos outros as qualidades básicas dessa base, como compaixão, felicidade, compreensão e assim por diante. Também podemos dar aos outros os cinco tipos de consciência profunda - semelhante a um espelho, da igualdade e assim por diante - como aspectos adicionais da natureza da mente. Também podemos dar aos outros o potencial que acumulamos para atingir todos esses aspectos. Existem muitas maneiras de explicar o que podemos dar aos outros com o tonglen.     

É apenas quando nos estabelecemos nesse nível fundamental básico da natureza da mente que conseguimos fazer a transição da tristeza de sentir a dor e as dificuldades que todos têm com suas emoções perturbadoras para emanar felicidade para eles. Não é que vamos ficar furiosos ou nos tornar idiotas quando assumirmos a raiva ou ignorância deles. Precisamos deixar as emoções perturbadoras se acalmar para que consigamos acessar as qualidades da base que tudo abrange e dar todas essas coisas positivas aos outros.      

Os Três Tipos de Compaixão

Quando estamos praticando tonglen e assumindo as três emoções venenosas das outras pessoas, é claro que precisamos estar acompanhados da compaixão: "Que eles estejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento." Isso me lembra os três tipos de compaixão de que fala Chandrakirti.     

Primeiro, temos compaixão pelos outros porque eles estão sofrendo com as três emoções venenosas e nem mesmo percebem. Com o tonglen, tomamos deles esses três venenos e a infelicidade que eles geram e damos a compreensão de que essas emoções perturbadoras são as verdadeiras causas de seu sofrimento e infelicidade. Luxúria, raiva e ingenuidade (ignorância) não são estados muito felizes, não é mesmo? 

O segundo nível de compaixão tem a ver com a impermanência. Quando os outros experimentam essas emoções perturbadoras, eles não reconhecem ou entendem que essas emoções são impermanentes, e que eles próprios são impermanentes e estão mudando o tempo todo. Por não entenderem essas coisas, eles sofrem. Com compaixão, queremos tomar para nós o sofrimento de não conhecer a impermanência e dar a eles a compreensão correta disso. 

E há compaixão no que diz respeito à vacuidade. Os outros não entendem a vacuidade do que estão experimentando, e que eles próprios são desprovidos de uma existência verdadeiramente estabelecida. É muito triste eles não entenderem. Portanto, queremos tomar isso para nós, remover a causa de seu sofrimento, e dar-lhes a compreensão correta da vacuidade. 

Esses três tipos de compaixão, combinados com a chamada sabedoria compassiva, são muito úteis em nossa prática de tonglen

Repetindo, queremos dar-lhes a compreensão de que eles estão sofrendo, são impermanentes e são desprovidos de existência verdadeira. Claro, não é como se um “eu” verdadeiramente existente fosse ajudar de forma não-dual aquelas pobres criaturas sofredoras ali. Precisamos ter essa compreensão do sofrimento, impermanência e vacuidade em todos os níveis, e que tanto os objetos de nossa compaixão quanto nós mesmos temos essas três características. Queremos dar os antídotos da compreensão correta a todos, inclusive a nós mesmos. 

Vamos parar alguns minutos para relaxar um pouco e pensar sobre esses pontos. Depois, teremos muito tempo para perguntas e debate. 

[pausa]       

Perguntas, Comentários e Debate

O Que Dar a Pessoas Que Estão Deprimidas           

Há ocasiões em que encontro pessoas muito deprimidas e, mesmo achando que isso tem a ver com a crença delas em um eu verdadeiramente existente, não posso dizer isso. O que podemos perguntar a elas para tentar ajudá-las a distinguir seus sentimentos? "Por que você está triste?" ou "Por que você está com raiva?" 

O foco principal a prática de tonglen é nos ajudar a superar a hesitação em ajudar os outros. Não queremos ajudar porque ficamos pensando muito em “eu, eu, eu”. “Estou ocupado, tenho outras coisas para fazer, não estou com vontade, é muito difícil, dá muito problema”, etc.  

O que queremos fazer é trabalhar os obstáculos que vêm da gente. Quanto ao que dar aos outros para ajudá-los, não significa necessariamente que vamos começar a ensiná-los sobre a vacuidade - certamente não. Este é um dos votos do bodhisattva, não ensinar a vacuidade aos que não estão preparados, porque eles não vão entender.  Como diz Sua Santidade o Dalai Lama, quando vemos uma pessoa deprimida e desanimada, precisamos lembrar que a esperança é o melhor antídoto para a depressão. Precisamos apontar algo que está indo bem na vida dela. Precisamos dar mais ênfase ao lado positivo do que está acontecendo em sua vida, em vez do lado negativo.    

O conselho geral de Shantideva é: se é algo que você pode mudar, por que se sentir mal, apenas mude. E se não há nada que você possa fazer, por que se sentir mal, isso não vai ajudar. Esse é um ensinamento muito profundo. Por exemplo, seu avião está atrasado. Não há absolutamente nada que você possa fazer, então por que ficar chateado? Tudo o que isso vai fazer é deixá-lo triste e infeliz. Isso não é tão fácil de implementar; no entanto, é a maneira de lidar com esse tipo de situação. “Não há nada que eu possa fazer, então tenho que aceitar.” Tentamos tirar o melhor proveito da situação, usando o atraso do avião, por exemplo, como uma oportunidade para ler, para falar com alguém – pra fazer alguma coisa. 

Com sugestões como essa, podemos ajudar outras pessoas a transformar sua situação negativa em positiva. Este é um ensinamento mais geral de treinamento da mente.

Nossos Contínuos Mentais e Fatores da Natureza Búdica Não Têm um Núcleo

O verso 105 é sobre nossa força vital, que não tem um núcleo, e todas as outras coisas que não têm núcleo. Eu entendo que é por causa das aparências e assim por diante, mas ele também diz que nosso “tempo de vida não tem um núcleo”. Como devemos ver nosso contínuo mental e sua natureza búdica? Eu sei que não é o nosso núcleo, mas como devemos olhar para isso?

Lembre-se, a natureza búdica não é uma coisa. Existem vários fatores que nos permitirão atingir os corpos de um buda. Quando falamos sobre os fatores em evolução, sobre essas duas redes, elas são imputações em nossos contínuos mentais, em termos de causa e efeito. Fizemos várias ações positivas, como praticar vários tipos diferentes de meditação, e em várias sessões tivemos uma compreensão profunda das quatro nobres verdades, das duas verdades, etc. Isso são causas e terão efeitos no futuro. Tanto as causas como seus resultados são experiências em nosso contínuo mental. 

Mas agora, quando as causas não estão mais acontecendo e seus efeitos ou resultados ainda não estão acontecendo, temos tendências e potenciais em nosso contínuo mental decorrentes dessas causas, e que podem amadurecer originando efeitos. Essas tendências e potenciais são imputações em nosso contínuo mental, este é a base de imputação, e a rede de potenciais positivos é uma imputação de todos esses potenciais. Mas, assim como em outras imputações, as características definidoras desse potencial e de sua rede não se encontram na base da imputação, (neste caso,) o contínuo mental. Uma maneira poética de dizer isso é que o que é imputado não tem um núcleo.           

É como o exemplo do “eu”. Existe alguma característica definidora do "eu", (alguma característica) que tenha o poder de me estabelecer como "eu"? Se sim, onde está ela? Está na minha mão? Está em minhas emoções? Está na minha personalidade? Onde está? Mesmo se dissermos que está no DNA, se tivermos apenas um pedaço de DNA, será que isso seria "eu?" 

A Chittamatra, a Escola Mente Apenas, diz que a característica definidora do eu está no alayavijnana. O ramo Svatantrika da Madhyamaka diz que está na consciência mental. Mas, de acordo com o ramo Prasangika da Madhyamaka, as características definidoras do self e das redes de potencial positivo e consciência profunda não são encontradas no contínuo mental. Mesmo a característica definidora do próprio contínuo mental não é encontrada nele. Afinal, um contínuo mental é apenas um experimentar individual e subjetivo de coisas, momento a momento a momento, e há apenas um momento dele acontecendo de cada vez. A característica definidora do que é imputado não se encontra na base; é estabelecida apenas por rotulagem mental. 

Um contínuo mental, ou mente, assim como todos os outros objetos validamente cognoscíveis, tem, obviamente, sua natureza convencional e característica definidora convencional: do contrário, seríamos incapazes de distingui-lo de qualquer outra coisa. Mas não há nada por parte da mente que estabeleça que ela tem essa natureza e característica definidora convencionais. O mesmo acontece no que diz respeito à natureza mais profunda da mente, sua vacuidade. Não há nada que possa ser encontrado na mente que estabeleça sua vacuidade. O vazio não é algo como um buraco negro dentro de um objeto; e a característica definidora da mente - mera clareza e consciência - não é uma "coisa" que está dentro de cada momento e fazendo dele uma atividade mental, como anunciar: "Eu sou mera clareza e consciência". Isso não está lá. Só podemos estabelecer a existência convencional da “mente” em termos daquilo a que o conceito e a palavra “mente” se referem e só podemos estabelecer a existência convencional da vacuidade em termos daquilo a que o conceito e a palavra “vacuidade” se referem.                 

Dizer que as coisas não têm núcleo significa dizer que não há nada lá no âmago dessa coisa - nada no objeto - que possa ser encontrado mediante análise e que o esteja sustentando. Algo encontrável que tem o poder de sustentar o que é imputado em uma base é chamado de "natureza autoestabelecedora", rangzhin rang-bzhin ) em tibetano, às vezes chamado de "natureza inerente". A vacuidade é a negação, a ausência total, de uma natureza autoestabelecedora. Não há nada cuja existência possa ser estabelecida por uma natureza autoestabelecedora, pois não existe uma natureza autoestabelecedora. 

Mesmo no caso da natureza essencial das coisas - ngowo (ngo-bo) em tibetano -, a característica definidora convencional delas não as estabelece, por seu próprio poder, como aquilo que convencionalmente são. Esta palavra “estabelecer” - drub (grub) em tibetano - está relacionada à palavra “afirmar” (sgrub) que algo é o que é.        

Com a vacuidade, não estamos falando tanto sobre refutação e ausência de formas impossíveis de existência das coisas, mas sobre formas impossíveis de estabelecer que algo existe. Como estabelecemos ou sabemos que algo existe? O entendimento inicial seria que esse “algo” faz alguma coisa, funciona e, portanto, existe. Por exemplo: “Se dói, há dor; a dor existe.” Há uma certa verdade nisso; entretanto, parece enganosamente como se a ferida que está doendo fosse verdadeiramente estabelecida como uma ferida. Nosso entendimento da situação não é tão profundo. 

Então, o que estabelece que uma coisa existe? É o fato de a percebermos? Bem, também percebemos absurdos; de modo que isso não estabelece ou prova necessariamente que algo existe. Outra variação da mesma palavra “estabelecer”, “afirmar”, é “provar” que existe. O que prova que algo existe? O que estabelece que existe? A única coisa que prova ou estabelece que algo existe é o fato de termos um conceito e uma palavra para isso, com os quais um grupo de pessoas concorda - incluindo a característica definidora ou definição da palavra - e o conceito e a palavra se referirem a algo que podemos experimentar validamente e que não é contradito pela cognição válida de sua verdade convencional ou mais profunda. Mas não é que haja algo concreto e localizável lá fora, como uma tela em branco, e estejamos projetando nossos conceitos e palavras nela. Não é assim. Tudo isso requer muita reflexão e digestão, e não apenas do ponto de vista teórico. Precisamos tentar ver o que isso significa em nossas vidas. No início, devemos concentrar nossos esforços na compreensão da vacuidade das pessoas, "eu" e "você". Por exemplo, tendemos a pensar: “Estou muito aborrecido com você porque você fez isso e aquilo”. Quando começamos a trabalhar com a vacuidade, analisamos e contemplamos: “Quem é que está com raiva?” "Com quem estou zangado?" e então podemos prosseguir para a análise: "Do que estou com raiva?" 

O que está acontecendo neste momento quando a raiva surge? Analisamos pensando nos cinco agregados. Existe a visão de determinadas ações, a audição de sons e palavras, a sensação física de ser atingido, o que seja. Estamos distinguindo essa sensação física da temperatura da sala. Há atenção: Eu estou prestando muita atenção. Há concentração: estou muito desperto. Existem muitas partes, e o “eu” como pessoa é uma imputação em tudo isso.     

Mas onde está esse “eu?” Não existe um “eu” separado de todos esses fatores e que os está vivenciando. Se o “eu” fosse encapsulado em plástico e todas essas coisas que estão acontecendo aqui também estivessem encapsuladas em plástico, isso seria a dualidade clássica. Como pode haver alguma conexão entre elas? Existe um cabo entre elas no qual as informações são transmitidas? Isso é tolice. Mas também, não sou idêntico a nenhuma dessas partes da minha experiência, então onde estou "eu”? Onde está a característica definidora de “eu” em tudo isso? 

E quanto a “você”, a pessoa de quem estou com raiva, que disse uma série de palavras e agiu de determinada maneira. A ação dessa pessoa foi composta de uma série de momentos em que suas mãos estavam aqui, depois ali e ali. A pessoa, “você” e a ação são todas imputações em todos esses momentos. Mas, assim como analisamos no caso do “eu”, onde podemos encontrar o objeto de nossa raiva - a pessoa, “você” - e onde, em todos esses momentos, podemos encontrar a ação? Do que estamos com raiva e de quem estamos com raiva? É importante desconstruir não apenas o objeto de nossa raiva, mas principalmente o “eu” que está sentindo essa raiva. Se desconstruirmos apenas o objeto de nossa raiva, e negligenciarmos a desconstrução do “eu” que está com raiva, sem dúvida ficaremos com raiva novamente, mais tarde, de alguma outra pessoa ou coisa.            

Começamos a analisar nossa experiência assim. Só quando começamos a trabalhar com esse tipo de desconstrução, e sentimos algum efeito disso, é que realmente começamos a nos convencer. Trabalhamos com a vacuidade, primeiro através da logica e depois experiencialmente. Primeiro usamos a lógica, para nos convencer de que a análise faz sentindo, de que não é uma maluquice. Não queremos começar a aplicar algo que consideramos uma maluquice. Primeiro, usamos lógica e isso leva tempo. Nossas vias neurais negativas estão profundamente enraizadas, mesmo se pensarmos apenas nesta vida. Pensar por esses caminhos vem acontecendo desde que éramos crianças, sem falar de vidas anteriores. Esses chamados “agregados contaminados” são quase que biológicos. O instinto de autopreservação é muito forte; é "eu, eu, eu!" 

Sempre se diz que os momentos mais fáceis de reconhecer esse falso “eu” são os momentos de emoção muito forte. O exemplo clássico é quando alguém nos acusa de algo que não fizemos. "Você é um ladrão, você roubou alguma coisa!" e então respondemos “O quê? Eu? Eu não fiz isso!” Então, a sensação de um “eu” separado de tudo se torna muito forte: “Como você ousa dizer isso para mim!” Em um nível realmente avançado, precisamos conseguir fazer tonglen nos momentos em que os outros também estão com o pensamento “eu, eu, eu” muito forte e com a mesma emoção.     
 

Como escolher quem ajudar

Posso pedir alguns conselhos sobre como ajudar os outros? Tem gente que diz para a gente cair fora. Dizem que precisam de ajuda, mas não querem conversar. Eles são solitários e não querem interagir, como muitos moradores de rua. Como ajudar e a quem ajudar?

Deixe-me compartilhar com vocês o conselho que Sua Santidade o Dalai Lama me deu quando mencionei que havia muitas áreas em que eu podia trabalhar para ajudar os outros e perguntei em qual deveria focar. Ele disse: “Faça aquilo que você é mais qualificado para fazer e não há muitas pessoas fazendo; e onde exista seres receptivos à sua ajuda.” E quando discuti isso mais tarde com Ringu Tulku, ele acrescentou: "Algo que você também goste é bom". Podemos acrescentar isso também. Portanto, veja onde você pode ser mais eficaz e aquilo que você é mais qualificado para dar. Digamos que se você é médico, pode dar ajuda médica, e será muito mais eficiente do que ajudando alguém a armar uma barraca. Talvez precisem de ajuda para montar a barraca, mas se você pudesse ajudar clinicamente, melhor. Se tiver uma tonelada de médicos por perto ou não tiver mais ninguém para ajudar a armar a barraca, isso é outra coisa. Mas ajudar, de qualquer que seja a forma, só é possível se o outro estiver receptivo. Se não for receptivo, nem mesmo Buda poderá ajudar. Há um ditado budista que diz: "O sol brilha igualmente para todos, mas para se aquecer, você tem que se expor a ele."   

Qual a Melhor Forma de Ajudar

Eu fui voluntário na Cruz Vermelha por algum tempo, ajudando as pessoas a terem uma vida normal quando saíam da prisão. Fiquei um pouco frustrado em dar esse tipo de ajuda, se é que fez diferença. Além disso, sou eletricista e estava um pouco cansado de consertar fios. Eu realmente não achava que fosse algo útil para a maioria das pessoas, porque elas precisavam de ajuda espiritual.

Se olharmos para os ensinamentos sobre os chamados “reinos inferiores” - os estados onde há as piores situações de sofrimento - primeiro, vamos querer aliviar esse grande sofrimento. Quando alguém está morrendo de fome, não começamos ensinando uma oração. Damos comida. Quando a eletricidade não funciona e as pessoas não conseguem cozinhar ou aquecer suas casas, consertamos os fios. Temos que começar no nível material. Se o sofrimento físico for muito intenso, elas não serão receptivas à ajuda espiritual. 

Grande parte da habilidade de ajudar os outros consiste em assimilar informações. Procure obter o máximo de informações, veja qual é a situação em questão, o que está disponível. Descubra todas as informações e veja o que realmente está incomodando. 

Para isso, precisamos empregar os cinco tipos de consciência profunda (sabedoria):  

  • Com a consciência profunda semelhante a um espelho, captamos as informações sobre a pessoa.   
  • Com a consciência profunda da igualdade, combinamos essas informações com as que são semelhantes, para entender os padrões. 
  • Com a consciência profunda da individualização, vemos a pessoa específica como um indivíduo; não como se fosse uma roupa tamanho único.  
  • Com a consciência da realização, estamos dispostos a realmente fazer algo, para ver o que aplicar para ajudar.  
  • Com a consciência profunda da esfera da realidade, dharmadhatu, vemos a situação pelo que ela é e como ela existe; não surtamos, "Oh, isso é um problema horrível."   

Esses ensinamentos sobre os cinco tipos do que se chama sabedoria búdica, os cinco tipos de consciência profunda, indicam os estados mentais e os tipos de consciência que precisamos para realmente ajudar os outros. Se não recebermos todas as informações, não entenderemos qual é o problema. Nós perguntamos, olhamos, observamos, vemos. Temos que ter alguma base de nossa própria experiência para que possamos encaixar o que observamos em algum padrão, a fim de ter alguma ideia do que fazer. Mas precisamos personalizar o padrão e como trataremos essa pessoa. Não vamos simplesmente buscar informações em um livro. Além disso, precisamos estar dispostos a realmente fazer alguma coisa, e não nos desesperar.   

Renascimento e os Seis Reinos

Eu tenho uma pergunta sobre o que o budismo professa em comparação com nossa filosofia atual, que é muito materialista e reducionista. No fundo, só sabemos que existe esta vida, e o que está além dela é apenas uma especulação, e é considerado, basicamente, uma perda de tempo. Às vezes, os budistas parecem se ajustar a essa filosofia, sendo bastante vagos quando falam de seus pontos de vista sobre outros estados de existência, vidas anteriores, vidas futuras e também o estado transcendental que é o estado búdico. Primeiro, você pode simplesmente considerar todas essas coisas como uma questão de fé. Se você quiser acreditar, acredite, e se não quiser, não acredite. Você pode até mesmo considerar o budismo como uma forma de relaxar e de ser uma pessoa legal. Ou você pode ser como os estudiosos da Índia antiga, e explicar as coisas com provas e evidências, sugerindo que existem coisas como renascimento e carma. Coisas como essas parecem tornar a empreitada budista significativa. Talvez não devêssemos olhar apenas para este planeta e as pessoas aqui em nossa vida; há muito mais do que isso. Agora, parece ser um tópico um tanto desafiador, porque se você enfatizar a parte intelectual do budismo, o budismo tradicional pode ser considerado altamente dogmático ou algo pior. Quais seriam seus comentários sobre este assunto?

Sua Santidade o Dalai Lama diferencia três áreas no budismo. Há a ciência budista, a filosofia budista e a religião budista. A ciência budista trata da análise da mente, das emoções, da percepção, da lógica, essas coisas. A filosofia budista lida com a visão da realidade, que é muito próxima da física quântica. A religião budista lida com carma, renascimento, diferentes reinos e assim por diante. Ele diz que a ciência e a filosofia budistas tratam de assuntos dos quais qualquer pessoa pode se beneficiar se aprender, e que não é necessário mergulhar na religião budista - isso é para os budistas. Mas os ensinamentos do budismo na ciência e na filosofia podem beneficiar a todos. Ele patrocinou um projeto para buscar os textos que tratam de ciência e filosofia nas escrituras budistas, e seus comentários indianos, e traduzi-los em várias línguas. Acho que essa é uma maneira muito adequada e útil de olhar para essa sua preocupação.       

 O esquema que eu criei e tenho usado diferencia “Dharma-Lite” de “Dharma Real”. Dharma-Lite é uma versão mais leve do dharma, onde não se fala em renascimento, reinos infernais e coisas do gênero. Nessa versão estão os ensinamentos gerais sobre a análise budista da mente, da realidade e assim por diante. Isso é bom, contanto que não chamemos a versão Dharma-Lite de Real, e não afirmemos que isso é tudo o que o budismo ensina e neguemos que o Buda tenha falado sobre tópicos como renascimento, os seis reinos e assim por diante. Esses tópicos estão no budismo, e esse é o Dharma Real. 

Há muitas razões pelas quais é necessário fazer essa distinção, de que Dharma-Lite não é Dharma Real, especialmente para entender a apresentação budista de causa e efeito comportamental. Se não considerarmos que as mentes individuais são sem princípio, chegaremos a muitas conclusões ilógicas a respeito de como causa e efeito funcionam. Por exemplo, como as coisas podem vir a existir e começar do nada e terminar em nada? Como pode um nada se tornar alguma coisa? Existem muitos problemas nisso. Um nada não pode se tornar alguma coisa, e alguma coisa não pode se tornar nada. Este ponto é muito importante quando consideramos as consequências de nosso comportamento em termos de causa e efeito comportamental. A posição niilista de afirmar que nosso comportamento não tem consequências se seus efeitos sobre nós não aparecerem nesta vida é um problema importante que surge quando a mente sem princípio não é incluída na versão Dharma-Lite do budismo. O carma não vai fazer muito sentido.        

Quanto aos ensinamentos do dharma sobre outros reinos, o espectro de felicidade e infelicidade ou prazer e dor, se os considerarmos em um nível sensorial, veremos que essas coisas não se limitam apenas ao que o hardware de um corpo humano pode experimentar. O espectro é muito maior. O corpo humano fica inconsciente quando a dor e o sofrimento são demais. Agora, imagine um corpo que não desliga. Esse corpo poderia experimentar muito mais da escala de dor e infelicidade. Esse tipo de análise abre (nossa mente e coração) não apenas para pensar nas limitações do hardware humano, mas também para desenvolver mais compaixão por quem sofre. 

Mas não confunda as coisas. Não seja injusto com os ensinamentos budistas, dizendo que é apenas meditação e atenção plena; que é apenas ser uma boa pessoa e assim por diante. Existem alguns fatores básicos que tornam um ensinamento budista, e não podemos simplesmente abandoná-los ao afirmar o Dharma-Lite. Os quatro selos do dharma (o sofrimento, impermanência, ausência de um eu e nirvana é paz) são as coisas básicas que identificam um ensinamento como sendo budista, portanto, elas devem estar lá.    

Conselhos de Conclusão

Acho que a conclusão de todas essas perguntas é que é muito importante pensar e analisar esses pontos que Dharmarakshita apresenta sobre o carma e outras coisas. Sua Santidade o Dalai Lama sempre enfatiza que a análise e a compreensão correta são os fatores mais importantes para a prática correta do Dharma. Aquilo a que ele mais se dedica é a meditação analítica, para combinar todos os diferentes ensinamentos e entender como aplicá-los.      

Assim como Sua Santidade, precisamos tentar entender os ensinamentos. Depois, precisamos nos familiarizar totalmente com eles, através de repetidas meditações analíticas, para que os apliquemos automaticamente em nossa vida diária. Isto é muito importante. Quanto mais aprendemos os ensinamentos, mais peças do quebra-cabeça do dharma conseguiremos montar. Essa é a aventura do dharma: pegamos as peças do quebra-cabeça aqui e ali e quanto mais peças conseguirmos, mais conseguiremos encaixar. E elas se encaixam de muitas maneiras diferentes, não de apenas uma. Divirta-se. Obrigado.     

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