A Necessidade de Entender a Vacuidade para o Tonglen

Elementos-Chave da Bodhicitta Mais Profunda

Já falamos sobre como desenvolver a bodhichitta mais profunda e vimos que é muito importante e útil praticar tonglen, dar e tomar. Agora, estamos prontos para conversar sobre o desenvolvimento da bodhichitta relativa, convencional, superficial. É nesse contexto que o tonglen é praticado, como parte do treinamento para se desenvolver a bodhichitta relativa.

Existem duas tradições principais para desenvolver e fortalecer o ideal de bodhichitta. Uma é a meditação de causa e efeito em sete partes; são seis passos ou causas que geram um sétimo, que é o resultado ou efeito, o desenvolvimento da bodhichitta. Depois de desenvolver a equanimidade que é livre de apego, repulsa ou indiferença em relação às pessoas, começamos a reconhecer todos os seres como tendo sido nossas mães, lembrando da bondade das mães e assim por diante. E o outro método é igualar e trocar nossas atitudes em relação a nós mesmos e aos outros.

Sua Santidade o Dalai Lama diz que há um certo perigo no primeiro método, e que o segundo é um pouco mais estável. O perigo com o primeiro método é que, se não obtivermos uma boa compreensão da vacuidade, principalmente da vacuidade de nós mesmos como pessoas, nossa base para sermos bondosos com os outros, desejar ajudá-los e assim por diante, com base em todo mundo ter sido nossa mãe e ter sido gentil conosco, pode ficar um pouco egocêntrica. Como eles foram muito gentis “comigo”, eu preciso e quero ajudá-los. Há uma certa ênfase no “eu”. Enquanto o outro método, de igualar e trocar as atitudes que temos conosco e com os outros, não tem esse perigo, pois baseia-se em vermos que somos todos iguais – nós, os outros, todos os seres –, todos querem ser felizes, e ninguém quer ser infeliz. Na verdade, não envolve nenhuma questão do “eu”.

Porém, se tivermos uma boa compreensão da vacuidade – que não precisa ser perfeita, obviamente – não corremos esse perigo nessas meditações de bodhichitta, e podemos seguir qualquer um dos métodos, ou o que é frequentemente recomendado – pelo menos no comentário de Serkong Rinpoche  − os onze estágios do desenvolvimento da bodhichitta, que combina os dois métodos.

Vimos a importância da compreensão da vacuidade para o tonglen, então vamos dar uma olhada novamente antes de eu apresentar essas onze rodadas ou etapas, mas não entrarei em grandes detalhes. Vamos ver como a compreensão da vacuidade é essencial – como ela funciona – para desenvolvermos bodhichitta sem o perigo de nos agarrarmos ao “eu” ou a “você”.

A questão que quero discutir aqui é a diferença entre cada ser vivo, o fato de cada contínuo mental ser individual e cada um ter uma identidade inerente e auto-estabelecida. Se não entendermos claramente a distinção, fica um pouco confuso e difícil. Essa não é uma distinção muito fácil de entender.

Ao lidar com os outros, queremos evitar dois extremos. Não queremos transformar todo o reino dos seres vivos, ou todo o universo, em uma grande “sopa” onde não se diferencia nada, como se tudo fosse uma grande unidade indiferenciada, uma grande sopa, ou pensar que existem seres vivos, existem contínuos mentais, mas eles são totalmente anônimos. O outro extremo é pensar que todos têm uma identidade auto-estabelecida e inerente com a qual os identificamos, como se essa fosse sua identidade carimbada e permanente. Seja a identidade estática que damos a eles, em termos do que eles são nesta vida específica − humano, mulher, homem, barata, ou o que quer que seja −ou a da nossa mãe. Não queremos dar a todos a identidade estática e inerente de ser nossa mãe.

Características Definidoras

Toda a questão aqui diz respeito às características definidoras. Todos os fenômenos validamente cognoscíveis, convencionalmente têm uma marca característica definidora que nos permite, por exemplo, distinguir um indivíduo do outro quando olhamos para um grupo de pessoas. Fazemos isso com o agregado do distinguir. Com base nessas marcas características definidoras, rotulamos mentalmente, conceitualmente, que essas coisas que vemos se encaixam nas categorias de itens individuais validamente cognoscíveis, pessoas, homem ou mulher, e Maria ou João.

Quais são essas marcas características definidoras? São fenômenos de imputação que não podem existir ou ser conhecidos independentemente de algo por eles caracterizado. No entanto, as marcas características definidoras não são “coisas” inerentes e autoestabelecidas que possam ser encontradas dentro dos itens caracterizados por elas. A sua existência só pode ser estabelecida como aquilo a que se refere a categoria ou conceito “marcas características definidoras” e as palavras “marcas características definidoras” quando rotuladas mentalmente e designadas com base em itens por elas caracterizados.

Agora, aqui é onde a Prasangika e a Svatantrika diferem. Suponha que rotulemos mentalmente algum objeto que vemos como uma “pessoa”, “Maria”. Em outras palavras, encaixamos o objeto nas categorias ou conceitos de “pessoa” e “Maria”.

  • A Prasangika afirma que a existência desse objeto como pessoa e como Maria é estabelecida apenas como aquilo a que os conceitos e palavras “pessoa” e “Maria” se referem, com base no objeto que vemos. Não há nada autoestabelecido, inerente, encontrável no objeto, estabelecendo sua existência como pessoa ou como Maria.
  • A Svatantrika afirma que, no contexto da rotulagem mental, há algo encontrável no objeto – suas marcas características definidoras como pessoa e como Maria – e a rotulagem mental válida trabalha em conjunto com elas.
  • A Prasangika diz, sim, convencionalmente, esse objeto tem as marcas características definidoras de uma pessoa e de Maria; são elas que nos permitem distingui-lo corretamente como pessoa, não como um manequim, e como Maria, não como João. Mas a existência dessas marcas características definidoras também é estabelecida apenas como aquilo a que os conceitos e palavras “marcas características definidoras” se referem, com base no que é caracterizado por elas. A sua existência não pode ser estabelecida definindo marcas características que são inerentes e encontráveis nos itens por elas caracterizados.

A marca característica definidora mais básica de qualquer coisa é aquela que nos permite, ao tomar conhecimento disso, distingui-lo como um item individual, validamente cognoscível. Se, como afirma a Svatantrika, essa característica pudesse ser encontrada no objeto em si, como um contínuo mental de cinco agregados em constante mudança, seria como um código de barras em algum lugar dentro dele. Se ele tivesse o poder, mesmo que apenas em conjunto com a rotulagem mental, de estabelecer a existência desse contínuo mental como um item individual validamente cognoscível, seria como se esse código de barras estivesse gerando uma linha sólida em torno desse contínuo, estabelecendo assim sua existência como um item distinto, individual, validamente cognoscível, separado de tudo o mais.

A Prasangika diz que não é assim, que a existência dessa marca característica definidora que permite que esse contínuo mental seja distinguido como um item individual só pode ser estabelecida em termos do que o conceito e as palavras "marca característica definidora" se referem, com base em uma sequência de cinco agregados em constante mudança, e que constituem a base para a rotulagem mental, e que se manifestam em ordem de acordo com causa e efeito cármicos. Não é algo aleatório. Não é que qualquer momento de qualquer contínuo mental possa ser reunido em uma coisa.

É como quando olhamos para as coisas em uma sala; não é algo simplesmente arbitrário podermos desenhar linhas conceitualmente ao redor de todas as diferentes formas coloridas que vemos e juntá-las de maneira aleatória para constituir objetos. Há objetos na sala, objetos validamente cognoscíveis, mas, como um todo, eles só podem ser estabelecidos por imputação, com base em suas partes constituintes; não há linhas conectando diferentes formas coloridas. Dentro da minha mente eu poderia conectar, digamos, a forma colorida do cabelo dessa pessoa com a forma colorida da parede rosa atrás dela e a forma colorida do pequeno pedaço de branco na parte inferior da imagem acima, e desenhar uma linha ao redor, na minha cabeça, e transformar isso em um objeto, mas isso não transforma em um objeto, não é? Por quê? Como não funciona como um objeto, não consegue fazer nada.

Esta é uma questão muito interessante em termos de percepção. Percebemos padrões de formas coloridas com a visão. Essa é a informação que obtemos dos olhos, então como dividimos essa experiência em objetos que funcionam e são validamente cognoscíveis? Não é que existam linhas reais em torno de um aglomerado de formas coloridas, estabelecendo-o como um objeto individual e específico. Em qual forma colorida poderíamos encontrar a marca característica distintiva do objeto como um todo? No entanto, com base em convenções com as quais acordamos e que se baseiam em objetos desempenhando funções específicas, há um conjunto de marcas características definidoras do que é uma pessoa, o que é uma parede e assim por diante. A existência desses itens como esses objetos – uma pessoa, uma parede e assim por diante – só pode ser estabelecida em termos das estruturas conceituais com as quais são mentalmente rotulados e designados com palavras. E as palavras, afinal, são apenas padrões arbitrários de sons aos quais são atribuídos significados através de convenções. Nossa rotulagem mental de um item será válida se for feita com as convenções acordadas e se nossa cognição não for contrariada pela cognição válida da verdade convencional do objeto – por exemplo, quando colocamos nossos óculos, (a imagem que vemos) contradiz a validade de um objeto existir como o borrão que vimos sem os óculos. Nossa rotulagem mental também não precisa ser contrariada pela cognição válida da verdade mais profunda, que contradiz que as coisas existem de maneiras impossíveis.

Repetindo: convencionalmente, podemos dizer que existem características definidoras, e estamos falando aqui apenas das mais básicas, das marcas características definidoras de algo como um objeto validamente cognoscível e das marcas características definidoras do objeto individual validamente cognoscível; que tipo de objeto é, e assim por diante. Isso se aplica a cada contínuo mental individual, tendo como base uma pessoa como um fenômeno de imputação.

O “contínuo mental” tem uma característica definidora: é uma sequência individual de atividade mental, composta por cinco agregados que estão em constante mudança. A sequência é baseada no vivenciar dos resultados do comportamento de cada um de acordo com o carma, de acordo com causa e efeito. Um contínuo mental individual, portanto, não é apenas uma sequência aleatória de momentos de experiência. Ele tem uma marca característica definidora individual, de modo que nosso agregado da distinção consegue diferenciá-lo corretamente dos outros. Mas não há uma linha em torno de um contínuo mental individual, gerada por uma marca característica definidora autoestabelecida e encontrável em cada momento do contínuo, e que estabelece sua existência como indivíduo. Existem as categorias conceituais “itens individuais”, “contínuos mentais”, “pessoas” e assim por diante, e palavras para eles em todas as línguas, e há itens individuais que possuem as características definidoras dessas categorias, mas não têm a marca característica definidora em qualquer das categorias ou dos itens que se encaixam nessas categorias. É profundo, não é?

Agora, o sistema Chittamatra especifica explicitamente algo útil aqui. Não há “ganchos” – ou seja, marcas características encontráveis – no objeto que, quando ele é conceitualmente conhecido, funciona como um gancho no qual pode ser pendurado, ou seja, rotulado mentalmente, cada um dos nomes e categorias individuais, de − identidades individuais −que um contínuo mental teve ou poderia ter. Não há nenhum gancho no objeto para a identidade “masculina”, para a identidade “feminina”, para a identidade “humana”, para a identidade “barata”, para a identidade “mãe” ou “minha mãe em uma vida anterior”, que, por sua própria força − porque o gancho está lá − faz com que tenha a identidade de um contínuo que é masculino, feminino, humano, barata ou “minha mãe”. Esse é o caso, embora todos esses nomes ou categorias possam ser rotulados convencionalmente, validamente, com base na história da sequência de experiências que compõem esse contínuo mental individual.

Todos os contínuos mentais, convencionalmente, são individuais, e convencionalmente têm diferentes identidades em diferentes vidas, mas eles não têm uma individualidade inerente, autoestabelecida, um gancho dentro deles, onde se possa pendurar ou rotular identidades inerentes e autoestabelecidas em cada vida. Como sabemos que essa pessoa, como imputação em um contínuo mental individual, foi “minha mãe?” Não há nada que se possa encontrar nesse contínuo mental que estabeleça a existência dele como tendo sido “minha mãe”. Então, o que estabelece que esse contínuo mental específico foi “minha mãe”. O que prova isso?

Bem, existem o conceito e a palavra “mãe” como convenções acordadas e que podem ser rotuladas e designadas nesse contínuo mental. A rotulagem não é contrariada pela cognição inferencial válida baseada na lógica – entraremos nessa lógica mais tarde. Também não é contrariado pela cognição válida da verdade mais profunda – essa pessoa, com base nesse contínuo mental, é desprovida de qualquer marca característica autoestabelecida e inerente que a estabeleça como tendo sido minha mãe, mesmo em conjunto com a rotulagem mental dela como tal. Assim, rotular mentalmente a pessoa que é uma imputação neste contínuo mental como “minha mãe” é válido, e é estabelecido apenas como o que esse conceito e palavra se referem com base nessa pessoa e contínuo mental. No entanto, a marca característica definidora que nos permite distinguir a pessoa como tendo sido minha mãe não se encontra na base da rotulagem, autoestabelecida ali, com um gancho no qual o conceito e a palavra “mãe” estão pendurados como uma identidade.

Eu não espero, e você também não deveria esperar, conseguir entender completamente tudo isso e suas implicações. Se esta é a primeira vez que você ouve esse tipo de explicação, por favor, não desanime. Mas é importante entender a questão envolvida para distinguir e tratar todos os seres igualmente como tendo nossa mãe. A questão é como resolver o fato de que todo mundo é um indivíduo e não tem uma identidade inerente auto-estabelecida, mas não é anônimo, tipo um contínuo mental número 12379, uma estrela ou algo assim, apenas um número impessoal. Como desenvolver um sentimento positivo e emotivo de amor e compaixão em relação a todos os seres, que não se baseie em se agarrar ao fato de terem sido inerentemente nossa mãe, mas nossa mãe apenas com base na rotulagem mental. É uma questão muito delicada.

Se fôssemos todos uma grande sopa, não existiria base para termos qualquer sentimento emocional positivo em relação a qualquer indivíduo. Se fôssemos todos anônimos, apenas um número, também não haveria base para termos uma conexão emocional de amor e compaixão com alguém. Por outro lado, se formos para o outro extremo e dermos a eles uma identidade inerente, como tendo sido nossa mãe, estabelecida por eles mesmos, teremos uma base para as emoções perturbadoras do apego e assim por diante. Precisamos da compreensão da vacuidade e da rotulagem mental para evitar esses dois extremos. É muito importante e muito delicado. É por isso que Sua Santidade o Dalai Lama aponta que há perigos no método de desenvolver bodhichitta baseado em reconhecer todos os seres como tendo sido nossas mães.

Lidando com as emoções

Quando estamos trabalhando com a bodhichitta relativa − amor, compaixão e todas as outras emoções positivas − precisamos ser muito cuidadosos. As emoções não são fáceis de trabalhar. Assim como no treinamento de sensibilidade que desenvolvi, temos que evitar os dois extremos, de sermos insensíveis ou emotivos demais. Somente nessa base podemos desenvolver adequadamente a bodhichitta, o amor e a compaixão. "Eu te amo! Você é tão maravilhoso!” É um desastre abordar a bodhichitta com esse tipo de emoção. É sempre mais estável trabalhar nessas questões em um nível anterior. Antes de nos aprofundarmos nessas práticas de bodhichitta, precisamos de maturidade emocional. O nível avançado é avançado, mas sem um gancho que implique em: “Ah, é avançado. Eu não consigo fazer isso!”

Podemos ver então que esse nível de explicação, embora não seja muito fácil de entender, é algo com que podemos trabalhar com outros professores, para ir mais fundo e gradualmente entender, pois isso tornará a prática da bodhichitta muito mais estável, muito mais madura emocionalmente. Quando somos super-emotivos, muitas vezes somos atraídos por esse tipo de compaixão, de bodhichitta, porque “Oh, é tão bonito! Amor para todos! Compaixão, não é lindo?!” Poderíamos, com isso, satisfazer nossa emotividade excessiva, mas há um grande perigo nisso, nos perder no caminho e transforma-lo em um exercício de cultivo de nosso excesso emocional. Falo na esperança de que isso seja benéfico, e não apenas para deixá-los confusos. É um material que realmente temos que digerir e trabalhar, e esta é a única maneira de obter essa estabilidade emocional e maturidade. 

Se realmente levamos a sério o caminho budista e alcançar a iluminação, é muito importante praticar direito, e não como gostamos. A maneira de praticar corretamente já foi dita repetidas vezes: é uma combinação de método e sabedoria – compaixão e compreensão da vacuidade. Temos que juntar as duas coisas; não podemos fazer apenas uma porque é o que gostamos, e pensar: “Isso é legal, vem fácil para mim”. Qualquer que seja o lado para o qual gravitamos, seja o da emoção ou o da compreensão, não faz a menor diferença. Estes são os dois extremos: a super-emotividade e a insensibilidade, como alguém que é super-intelectual a ponto de excluir a emoção.

Conforme costumo apontar no treinamento da sensibilidade, ser excessivamente emotivo é muitas vezes apenas um show. É um grande show e, na verdade, por dentro, lá no fundo, não é muito sincero. Vem automaticamente por causa do hábito e também da cultura que o sustenta, mas será que realmente sentimos isso? Se chegarmos a alguém com toda essa emoção, “Oh, eu te amo tanto! Eu quero te ajudar. Deixe-me ajudá-lo”, assustamos a pessoa. Ela se sente sufocada e com medo de a engolirmos. Essa não é uma maneira de ajudar alguém. Estamos agindo como uma enorme mãe aranha: “Oh, deixe-me ajudá-lo, eu te amo!” Esse absurdo método de imaginar a aranha, de levar para uma dimensão absurda − mas, muitas vezes as imagens do mundo animal que nos parecem absurdas podem ser muito, muito úteis – nos permite verificar se estamos caindo nesse extremo. Shantideva disse: “Permaneça como um bloco de madeira”. Só não vá a esse extremo. Recolha-se mais e então responda de uma forma mais madura e estável do ponto vista emocional. Não é que nos tornamos totalmente como um bloco de madeira e apenas sentamos lá e não fazemos nada.

Compreender a vacuidade é importante, não só no que diz respeito à prática de tonglen – de conseguir lidar com o sofrimento dos outros sem surtar – mas também é importante para nos ajudar a evitar os dois extremos da emotividade: não sentir nada ou ser excessivamente emotivo. Em conexão com isso, entendemos a diferença entre dizer, convencionalmente, que somos todos indivíduos, no sentido de que todo contínuo mental é individual e teve identidades convencionais como nossa mãe, nosso amigo e assim por diante, mas não haver nada inerente que possa ser encontrado em qualquer contínuo mental tornando-o essas coisas, por seu próprio poder.

Como Todos Percebemos a Mesma Coisa?

Podemos acrescentar mais um ponto ao fato de todos percebermos as coisas mais ou menos da mesma maneira. Todos vemos e rotulamos esse objeto de madeira acima como uma “viga” ou todos somos capazes de ver e rotular um contínuo mental específico como tendo sido nossa mãe. Mas será que estamos todos vendo e rotulando o mesmo objeto individual? Novamente, devemos analisar em termos de convenção.

Todos seguimos a mesma convenção, não apenas em termos de linguagem específica, por exemplo, as palavras que usamos para essas coisas como “mãe”, mas as convenções que usamos em termos do que são objetos convencionais – o que é uma mãe? Não é que haja algum objeto lá fora que todos nós estamos vendo, autoestabelecido como tendo sido nossa mãe, e todos nós estamos pendurando o mesmo rótulo mental e palavra em um gancho que pode ser encontrado nesse objeto.

Aqui, a compreensão da Chittamatra é muito útil, embora sua visão não seja tão precisa. Ela tem que ser qualificada de muitas, muitas maneiras pelas duas escolas Madhyamaka, mas é muito útil para começarmos a entender como todos nós conseguimos ver o que parece ser o mesmo objeto sem que ele seja autoestabelecido lá fora. A Chittamatra explica que cada um de nós vê o que parece ser o mesmo objeto por causa do carma coletivo. Além disso, as aparências são sempre individuais. Como existem diferenças no ângulo, na distância e assim por diante, quando olhamos para algo, o que cada um de nós vê é ligeiramente diferente.

Por exemplo, se cada um de nós tirasse uma foto da sala, todas as fotos seriam bem diferentes, embora convencionalmente tenhamos que dizer que estamos na mesma sala. Como sabemos que estamos na mesma sala? Não quero voltar atrás, mas esse é o verdadeiro problema. Como provar a alguém que estávamos todos na mesma sala? Se cada um de nós tirasse uma foto e mostrássemos isso para alguém, bem, são todas fotos diferentes; (parece que) não estávamos na mesma sala! Como podemos provar que estávamos na mesma sala? Essa é uma pergunta muito difícil. Podemos tocar o chão para ter certeza de que ainda estamos aqui, mas não pense que a posição Chittamatra sobre isso é para idiotas simplórios.

Precisamos amar a vacuidade para estudá-la adequadamente. Somente se a amarmos e a acharmos divertida – mas não demais – a estudaremos profundamente. Somente esse tipo de discípulo é o discípulo adequado para os ensinamentos sobre a vacuidade. Quem não a ama não é um discípulo adequado para estudar a vacuidade.

Em termos de vacuidade, se pudermos entender a explicação da Chittamatra, de que todos vemos o mesmo objeto com base no carma coletivo, apesar de esse objeto ser desprovido de existir separadamente de uma mente que o percebe, podemos tentar entender a explicação Prasangika, de que todos podemos rotular mentalmente o mesmo objeto com o mesmo rótulo e palavra mental, apesar de esse objeto ser desprovido de ter sua existência estabelecida como isto ou aquilo por uma marca característica definidora encontrável nele.

Perguntas

É porque tendemos a ver o que parece ser o mesmo objeto que tendemos a pensar que há algo nesse objeto estabelecendo sua existência objetiva. Mas, então a verdadeira pergunta é: todos nós realmente vemos a mesma coisa, ou não? E o que significa a palavra “mesma”? Estamos todos aqui na “mesma” sala?

A pergunta tem a ver com as convenções e palavras que usamos para nos referir a objetos iguais ou semelhantes. Obviamente, algumas convenções aprendemos quando bebês, com a linguagem – “isso é uma mesa, isso é uma cadeira”. Todo mundo que fala o mesmo idioma aprende essas mesmas palavras. Outras convenções, como “isto é um objeto”, não requerem uma linguagem e parecem surgir automaticamente. Ninguém precisa nos ensinar. Mas embora todos conheçamos a mesma palavra, “mesa”, o meu conhecimento (da mesa) não é o seu conhecimento (da mesa). Além disso, este objeto e aquele objeto são ambos mesas, mas não são a mesma mesa. Pense nisso.

Tem alguma importância essas chamadas convenções existirem?

Essa é uma questão muito delicada, pois realmente precisamos entender o que significa as convenções existirem. Como sabemos que elas existem? O que estabelece ou prova que elas existem é o fato de que funcionam, funcionam para nos comunicarmos. Chamamos vários objetos semelhantes pela convenção “mesa”. Colocamos todos na categoria conceitual “mesa” e designamos a categoria e os itens que se encaixam nela com a palavra “mesa”. Na conversa com outras pessoas que compartilham as mesmas convenções e palavras, rotulamos e designamos um objeto como “mesa”, e elas entendem o que queremos dizer. Assim, essas convenções e palavras funcionam para a comunicação.

Convenções e palavras são fenômenos de imputação que não podem existir ou ser conhecidos independentemente de um significado e uma referência a algo. Entendemos uns aos outros e o mundo ao nosso redor com base nessas convenções ou categorias e palavras.

Um contínuo mental, além de gerar sofrimento, também gera carma?

Sim. Felicidade e sofrimento são definidos como a maneira pela qual experimentamos o amadurecimento de nossos potenciais cármicos.

Um contínuo mental gera carma da mesma forma que uma criança gera carma, ou da mesma forma que uma pessoa idosa gera carma? Pois conforme o contínuo mental, o sofrimento da velhice é maior do que o sofrimento da infância.

O mecanismo para crianças e idosos é exatamente o mesmo. Agora, a intensidade e o tipo de força cármica, é claro, dependerão muito da força da intenção, da motivação e assim por diante. Um bebê pode ter muito egocentrismo e ganância: “Eu, eu, eu! Comida, comida, comida! Se eu não conseguir o que quero, vou chorar.”  No entanto, é um pouco diferente de um adulto sair e atirar em alguém. Obviamente, vários bebês diferem na intensidade da ganância ou raiva quando não conseguem o que querem.

E a terceira pergunta é: existe a cessação de um contínuo mental?

Não, não há cessação. Os contínuos mentais não têm começo nem fim. Isso é verdadeiro para todos os indivíduos, e o entendimento deste ponto é crucial para praticarmos com sucesso as meditações de bodhichitta. Isto porque “todos já foram nossas mães” se baseia no fato dos contínuos mentais não terem começo. E isso realmente requer uma compreensão da vacuidade de causa e efeito.

Por que é impossível que uma sequência de causa e efeito tenha um começo absoluto ou um fim absoluto? Quando falamos de algo tão básico quanto a atividade mental, será que algo pode surgir sem uma causa e se mudar, e será que pode haver algo que muda sem produzir um efeito, e simplesmente termina? Se, como dizem no Hinayana, quando alcançamos o estado búdico, e então morremos, o contínuo mental cessa, como podemos ajudar a todos, a todos os seres sencientes, se nosso tempo é muito limitado e quando morremos é o fim? Isso não condiz em nada com o Mahayana.

No entanto, a não-consciência e as emoções perturbadoras que se baseiam na não-consciência, embora não tenham começo – não há um pecado original no budismo, como “no princípio entendíamos e depois caímos” – a não-consciência pode ter uma verdadeira cessação e nunca mais continuar. Isso ocorre porque o entendimento correto é exatamente o oposto (do não entendimento), e não apenas substitui o não entendimento ou o entendimento incorreto, como também pode se opor a ele e destruí-lo, pois têm a sustentação da lógica e da cognição válida. Quando conseguimos manter uma compreensão correta de forma ininterrupta, para sempre, nunca mais experimentamos a não-consciência. Alcançamos uma verdadeira cessação da não-consciência.

A atividade mental é o surgimento do holograma mental de um objeto simultaneamente com o envolvimento cognitivo com esse objeto. Não há algo que seja exatamente seu oposto, que possa destruí-la. A morte, por exemplo, que é a perda de uma base física grosseira para essa atividade, não é exatamente o oposto dela, especialmente à luz da visão budista, de que uma energia sutil permanece como sua base física, mesmo com a morte.

Para entender que a atividade mental não tem cessação, precisamos realmente entender a vacuidade, pois isso entra na questão de como podemos ter uma continuidade. Quando paramos de pensar em algo, como podemos pensar nisso de novo? Quando paramos de pensar em alguma coisa ou de ficar com raiva, só porque não estamos mais pensando nisso e não estamos mais com raiva, isso significa que houve uma verdadeira cessação e nunca mais vamos pensar nisso ou ficar com raiva de novo? Só ficamos com raiva uma vez? A vacuidade é crucial para a compreensão dessa questão.

Conforme você explicou, temos convenções para a comunicação, e é para isso que servem as convenções. Mas, sendo praticantes budistas, como devemos tratar as convenções? Temos que desconstrui-las ou entender que são vazias? Como devemos nos relacionar ou lidar com as convenções, como praticantes budistas? Estou um pouco confuso.

Sim, temos que desconstruir tudo. Precisamos entender a vacuidade das convenções, e que elas funcionam, que são como uma ilusão. Elas não são encontradas em nenhum lugar com uma linha ao redor, com num grande dicionário no céu, existindo por si só e contendo todas essas convenções de palavras com os significados inerentes a elas. As palavras são apenas um padrão acústico ao qual um grupo de pessoas atribui um significado. Podemos agrupar tudo que é tipo de objeto e depois dizer: “Vamos chamá-los de 'mesas', e essa palavra se referirá a todas essas diferentes coisas”. É realmente extraordinário que a linguagem e as convenções tenham se desenvolvido. É algo totalmente criado pela mente. Não há nada nesses objetos que os torne inerentemente associados a um padrão acústico de sons ao qual é atribuído um significado.

Como as convenções realmente funcionam? Porque não temos apenas uma câmera diferente ou um ângulo diferente para uma foto, mas na verdade temos câmeras diferentes com lentes diferentes, etc., e algumas pessoas são boas fotógrafas, outras não. Como saber se estamos pensando da mesma forma que todo mundo?

Por isso, é como uma ilusão. É incrível. Isto é o que Tsongkhapa diz: a ilusão é criada como algo que surge na dependência de outra coisa. Ele diz que é incrível que coisas ilusórias surjam na dependência de uma rotulagem mental com base na vacuidade. É incrível − ele usa muito essa palavra − é incrível, e ainda assim tudo funciona.

Quanto à pergunta "Bem, como funciona?" temos que voltar ao que mencionei mais cedo hoje, o enigmático comentário de Serkong Rinpoche: “Se houvesse paredes sólidas, não poderíamos atravessá-las. Como não há paredes sólidas, podemos caminhar.” Nada impede que as coisas funcionem. Essa é a maneira que é explicado e abordado do ponto de vista budista. É como o espaço. A vacuidade é como o espaço. Espaço é a ausência de qualquer coisa tangível ou obstrutiva que impeça algo de ocupar três dimensões.

Se estivéssemos dentro de uma jaula com paredes sólidas, não conseguiríamos sair dela. Não conseguiríamos ir a lugar nenhum. Como não há paredes sólidas nas jaulas, tipo uma linha sólida, conseguimos sair; conseguimos fazer coisas. Se estivéssemos encapsulados com um revestimento plástico sólido e inflexível ao nosso redor, estaríamos congelados e isolados de tudo e, portanto, não poderíamos fazer nada. Não conseguiríamos nos relacionar com nada; causa e efeito não poderiam se conectar, e nada poderia funcionar. A vacuidade é a total ausência disso.

No entanto, em nossas mentes, estamos sempre encapsulando as coisas em um plástico sólido: “Você acabou de me dizer isto”. Ou que tal: “Você me disse isso há 20 anos e feriu muito os meus sentimentos”. Ainda guardamos rancor. É disso que se trata a culpa. “Eu cometi esse erro. Eu fui tão idiota!” Isso está encapsulado em uma forma sólida; nós o consagramos neste plástico sólido, o colocamos lá, e agora estamos presos. “Eu não vou abrir mão disso; este é o meu troféu!” Isso é culpa, “Eu sou terrível!”

Só mais duas perguntas sobre este tópico.

Os cinco agregados são uma base válida para se rotular o “eu”?

Sim. Os cinco agregados são a base para se rotular o “eu”. Nós não o rotulamos nas diferentes partes de uma parede.

Mas por que?

Por quê? Porque eles compõem cada momento da experiência. É disso que se trata os agregados. Eles são fatores em constante mudança que compõem cada momento da experiência de um contínuo mental individual. Com base nisso, se quiséssemos conectar os pontos de cada momento de experiência em um contínuo, a maneira de conectá-los seria com o rótulo “eu”.

Da mesma forma que você estava falando sobre convenções e acordos, o sofrimento é um acordo convencional?

Sim claro. Temos momentos de experiência, e eles se encaixam em uma determinada convenção, certas características definidoras de uma convenção específica. Quando rotulamos um determinado tipo de experiência como sofrimento, o que estabelece que é sofrimento? Sofrimento é aquilo a que se refere o conceito “sofrimento”. No entanto, isso não significa que ele não existe. Nós o vivenciamos, e ele dói. Mas é como uma ilusão. O problema é quando dizemos: “Ah, estou sofrendo, coitado de mim!” nós o encapsulamos em um grande, sólido e inflexível plástico. E então pensamos: “Ohhhhh, estou sofrendo!”

Quando falarmos de sofrimento apenas em termos de infelicidade versus felicidade, sua característica definidora é aquele sentimento que, quando surge ou o vivenciamos, gostaríamos que não continuasse, que não se repetisse. Felicidade é aquilo que, quando experimentamos, gostaríamos que continuasse e não desaparecesse. Quando comemos um determinado alimento de que gostamos, por exemplo, o experimentamos com felicidade; queremos comer mais. Mas alguém pode comer a mesma comida e odiá-la, quando a experimenta tem um sofrimento incrível e nunca mais quer dar outra mordida. Todos concordamos com a marca característica definidora do sofrimento e da infelicidade; é uma convenção.

Desenvolvendo a Equanimidade Que É Livre de Apego, Repulsa e Indiferença

Vimos que a compreensão da vacuidade é essencial para o desenvolvimento da bodhichitta, então vamos ver como ela se aplica a essas onze rodadas ou onze passos do desenvolvimento da bodhichitta – o contexto do tonglen.

O primeiro passo é desenvolver a equanimidade em relação a todos os seres. Esta é a mesma equanimidade que se desenvolve nas práticas Hinayana, e ela é desenvolvida ao passarmos do estado mental em que temos apego a alguns seres, repulsa por outros e indiferença por outros ainda, para um estado em que não consideramos ninguém como amigo, inimigo ou estranho. Esse tipo de equanimidade é o estado mental de estar livre das emoções perturbadoras do apego, indiferença e repulsa em relação aos seres.

A compreensão da vacuidade é muito necessária aqui. Claro, alguns seres são nossos amigos, inimigos ou estranhos. Isso diz respeito às circunstâncias, mas se pensarmos em termos de contínuos mentais sem começo, todos já foram nossos amigos, inimigos ou estranhos em diferentes momentos. Não há diferença; é só uma questão de quando. Não há um gancho em ninguém para pendurarmos o conceito “amigo”, “inimigo” ou “estranho” e então nos agarrarmos a isso como sua identidade verdadeira e inerente. Ninguém é auto-estabelecido como um ou outro.

Sem atração, repulsa ou indiferença, nivelamos o terreno para que tenhamos equanimidade para com todos. Embora às vezes eles tenham sido nossos amigos, inimigos ou estranhos, não há gancho neles para pendurar isso como sua identidade inerente. Com base nesse nível de equanimidade, podemos então reconhecer que todo mundo, em algum momento, foi nossa mãe. Isso ocorre porque não há um gancho neles para pendurarmos a identidade inerente de “mãe”.

Provando que Todo Mundo Já Foi Nossa Mãe

Esse é um ponto difícil em que estávamos trabalhando recentemente, em minha aula sobre o nono capítulo do texto de Shantideva, que trata da vacuidade. Como provar que todo mundo já foi nossa mãe algum dia? Temos de estar convencidos, através da lógica, de que isso é correto. Afinal, as leis da probabilidade e da física quântica nos levam à conclusão de que pode ser que uma pessoa sempre tenha sido nossa mãe, ou nunca tenha sido nossa mãe. Isso não está no reino da probabilidade? Então, em vez dessas conclusões, queremos uma prova matemática de que todos os seres já foram nossas mães, não algo baseado apenas na fé cega ou na probabilidade. Por exemplo, considerando um tempo infinito, mas um número finito de seres sencientes, como provar que todos em algum momento foram nossas mães? Pergunta muito, muito interessante e difícil. Algum matemático aqui pode provar isso?

Como provar que todo mundo já foi nossa mãe quando há um número finito de seres, cada um com vidas infinitas, e todos são iguais? Nós criamos uma prova e alguns Geshes, que são especialistas em lógica, confirmaram que é válida. Eu quero lhes mostrar a prova, caso haja alguém que encontre uma falha no pensamento. Você tem a prova?

Você diz que não pode ser provado.

Meus alunos mostraram que, se houvesse vidas infinitas e seres sencientes infinitos, não poderíamos provar. No entanto, como existem vidas infinitas e seres sencientes finitos, pode ser provado.

Eu concordo. O verdadeiro problema é, como você pode provar que existe um número finito de seres sencientes?

Essa não é a questão aqui. Este é um valor dado. O valor dado é que o número de seres sencientes é “n”. Estamos falando apenas de um problema matemático, pois, veja bem, esse problema destaca uma questão interessante, que é a importância de não pular para essas práticas e meditações e, depois de um tempo, começar a pensar: “Bem, isso é ridículo! Como todo mundo poderia ter sido minha mãe? Isso é fantasia. Não está correto que todos já foram minha mãe; isso é bobagem!” Então, alguma prova?

Precisaríamos de um quadro e papel, mas a ideia básica é esta: imagine que temos um pote, um pote muito grande e cheio de bolinhas de gude. Neste pote, cada bolinha representa um ser senciente. Então, toda vez que alguém renasce…

Certo, “toda vez que alguém renasce” como nossa mãe…

você tira uma bolinha do pote e, quando essa vida específica termina, você joga a bolinha de volta no mesmo pote. Então, temos que verificar qual é a probabilidade de você não tirar uma bola de gude específica daquele pote – uma bola de gude específica em infinitas tentativas, em infinitas vidas. Se essa probabilidade for zero, não há dúvida, todo ser senciente já foi nossa mãe. Mas preciso fazer o cálculo matemático no papel.

Excelente. Deixe-me dar-lhe a nossa prova Prasangika. Ela veio de um dos meus alunos, eu apenas a formulei corretamente, mas é uma prova Prasangika, e é maravilhosa.

Se todos os contínuos mentais são iguais, e um deles foi minha mãe, a mãe desta vida, então todos já foram igualmente minha mãe, pois todos são iguais. Não há razão para que um outro ser também não tenha sido minha mãe. Agora, aqui vem a parte Prasangika. Se isso não fosse verdade, se houvesse um ser senciente que nunca tivesse sido minha mãe, como todos os seres sencientes são iguais, nenhum ser senciente jamais poderia ter sido minha mãe. E chegaríamos à conclusão absurda de que não temos mãe nesta vida. Gostaria de ver se essa lógica pode ser refutada.

Eu não estou refutando isso.

Essa é uma prova não matemática muito simples. Muito profunda, na verdade. É muito boa.

Mesmo o esboço da prova que tenho em mente é uma simplificação exagerada da realidade, porque começar com a suposição de que todo contínuo mental tem a mesma probabilidade de ter sido minha mãe vai contra o estudo de probabilidade de tendências, pois existem tendências em probabilidade, também. É uma simplificação excessiva.

Certo. Agora chegamos a isso que discutimos, que, do ponto de vista Prasangika, é claro, não há tendências inerentes em nenhum desses contínuos mentais. Tudo o que podemos dizer é que quando alguém já foi nossa mãe, temos uma conexão próxima com esse ser. Então, poderíamos dizer que há uma tendência mais forte de ele ser nossa mãe novamente. No entanto, isso ainda não nega que todos tenham a mesma probabilidade de ser nossa mãe. Como o tempo é infinito, não importa.

Meu problema não é com todos terem sido minha mãe; é com o tempo ser infinito. Porque eu poderia provar igualmente que, dado um tempo infinito e seres sencientes finitos, todos deveriam ser iluminados. Como eu teria encontrado o Dharma um número infinito de vezes, eu deveria estar iluminado agora.

Essa é uma pergunta muito difícil. É uma pergunta interessante e boa para se pensar. Meu pensamento inicial, sem analisá-la com muita profundidade, é que a não-consciência também não tem começo. Eu acho que é um tipo diferente de variável, todo mundo se livrar dessa não-consciência. É um tipo de variável diferente da variável de ter sido nossa mãe.

Em outras palavras, a não-consciência não vai desaparecer por si só. Temos que fazer um grande esforço para que desapareça. Para que a não-consciência e os hábitos da não-consciência desapareçam, precisamos nunca desistir da bodhichitta, para que continuemos a gerar a força positiva necessária ao longo de três zilhões de éons, para nos livrarmos dela para sempre. Existem grandes obstáculos que precisamos superar para alcançar a iluminação, e os hábitos de não-consciência não têm começo; já a consciência discriminativa da vacuidade que vai se livrar dela não é algo sem começo.

No caso de alguém ser nossa mãe, não há nenhum grande obstáculo que que deve ser superado com esforço para alguém se tornar nossa mãe. Acho que essa é a diferença. Temos que nos opor a algo para nos livrarmos da não-consciência. Não há nada a que temos que nos opor, que esteja impedindo alguém de ser nossa mãe.

Além disso, apenas um ser senciente de cada vez pode ser nossa mãe, mas não é apenas um ser senciente que pode se iluminar por vez. Essa é outra diferença. Se alguém já foi nossa mãe, não continua sendo nossa mãe atualmente. Ao passo que se alguém se ilumina, isso dura para sempre. Se o que você disse fosse verdade, que todos já deveriam ser iluminados, deveríamos observar isso. No entanto, nossa observação contradiz isso porque certamente não somos iluminados. Ser nossa mãe é algo que apenas um ser pode ser de cada vez, e isso é só agora, depois não é mais nossa mãe. Já ser iluminado seria para sempre, e não é que apenas uma única pessoa pode ser de cada vez. São coisas muito diferentes – ser nossa mãe e ser iluminado.

A prova que descobrimos em minha aula, de que todos foram nossas mães, é uma prova maravilhosa que também podemos usar para provar que todos podem se tornar iluminados, o que é muito, muito importante de estarmos convencidos. Se não tivermos convicção disso, se não estivermos convencidos de que podemos alcançar a iluminação e realmente ajudar todos os outros, qual o nosso objetivo?

A prova é assim: se uma pessoa, Buda Shakyamuni, se iluminou, e todos são iguais no que diz respeito a todos terem os fatores da natureza búdica que nos permitem nos iluminar, então, dado um tempo infinito, todos podem eventualmente tornar-se iluminados, embora não haja garantia de que isso acontecerá. A questão é que ainda não estamos iluminados porque temos que nos esforçar para obter a consciência discriminativa da vacuidade e, para isso, temos que gerar força positiva ao longo de três incontáveis éons, sem interrupção, e, para isso, precisamos não desistir da bodhichitta. Mas, se uma pessoa não pudesse se iluminar, ninguém jamais poderia, pois somos todos iguais. Então, o Buda Shakyamuni não seria iluminado. Isso nosso levaria a toda uma discussão, já houve um buda? Essa é uma pergunta muito interessante, e que traz à tona muitos outros pontos.

A Importância da Discussão e Debate

Em suma, o motivo pelo qual me ative a isso, e o que eu queria demonstrar com esse raciocínio, é que o desenvolvimento da bodhichitta e o trabalho com todas essas coisas, como todo mundo já ter sido nossa mãe, não é algo que possa ser feito independentemente da compreensão da realidade. Temos que questionar tudo e tentar entender por que as coisas são como são, senão surgirão dúvidas em nossa meditação: “O que, afinal, estou fazendo? Isso não faz nenhum sentido!”

Não tenha medo de pensar. Todos nós temos mentes com a capacidade de compreender e raciocinar; é isso que nos torna seres humanos – essas são nossas características definidoras como seres humanos, embora não possam ser encontradas dentro de nós, e não tenhamos um gancho para pendurá-las. Por isso o debate é tão importante. Era disso que queria lhes dar um gostinho. Se nos sentarmos em meditação analítica e tentarmos descobrir as coisas por nós mesmos, nunca vamos nos desafiar nossa compreensão da maneira que as outras pessoas vão. Como a pergunta que fizeram “todo mundo já não deveria ter se iluminado, segundo essa linha de raciocínio?” “Ah, nunca pensei nisso.” Então, pensamos nisso e tentamos chegar a uma resposta.

Não temos que continuar debatendo agora, embora fosse bom, porque assim todo mundo teria que responder, e todo mundo teria que pensar; ninguém poderia ser apenas um observador. Por exemplo, depois do ensinamento geral, podemos formar duplas e perguntar um ao outro: “Bem, o que você entendeu?” E poderíamos trazer dúvidas para a aula e discuti-las. Esse é o processo com o qual realmente compreendemos os ensinamentos e nos convencemos deles, dirimindo nossas dúvidas. Só assim conseguiremos nos concentrar em algo na meditação sem questionar “O que estou fazendo? Será que realmente estou entendendo?” Isso vale até para a bodhichitta, assim como para o amor e a compaixão.

Esse processo de questionar, perguntar e trabalhar uns com os outros pode ser divertido e excitante. Não fica tão seco, intelectual e chato. Se você reparar, o nível de energia está muito, muito mais alto do que se estivéssemos sentados sozinhos em meditação tentando analisar. A nossa concentração é melhor. Como o jovem Serkong Rinpoche me apontou, todo esse processo, esse treinamento no debate, é tudo uma preparação para a meditação. Tem a ver com concentração, com entusiasmo, com energia, com se livrar de suas dúvidas e assim por diante, e então podemos meditar adequadamente. Eu queria lhes dar um gostinho disso.

Podemos começar a apreciar a importância de trabalhar com o Dharma: não é apenas treinar nossos corações, treinar nossos sentimentos, mas também treinar nossas mentes para entender. Treinamos ambos, purificamos ambos, purificamos os hábitos negativos e treinamos os hábitos positivos para apoiarem um ao outro. Caso contrário, ao tentar trabalhar e desenvolver emoções positivas, se não tivermos o cuidado de eliminar as dúvidas antes, elas entrarão em conflito com as emoções positivas e isso se tornará um verdadeiro obstáculo.

O que queremos fazer é não ter emoções conflitantes. “Eu sinto amor, mas hmmm, mas não sei;” ou, "Será que eu realmente tenho uma conexão com você?" “Será que realmente é possível alcançar a iluminação? É o que estou buscando, mas será que realmente conseguirei? e assim por diante. Não conseguiremos trabalhar plenamente dessa maneira. A dúvida gera emoções negativas, e o que estamos tentando fazer com as meditações de bodhichitta é desenvolver todas as emoções positivas. Para fazer isso corretamente, temos que nos livrar do lado negativo das duas áreas, que chamamos de mente e coração.

Podemos então, talvez, entender um pouco melhor por que os textos do abhidharma – os textos sobre tópicos de conhecimento – incluem a hesitação ou dúvida entre as emoções perturbadoras, junto com raiva, apego e assim por diante. Estar “indeciso” significa que permanecemos inseguros e descomprometidos com nossa postura. Está correto? Está incorreto?  É isso que está sendo ensinado? É aquilo que está sendo ensinado? Esse é um estado mental muito perturbador, quer o chamemos de emoção ou atitude; é difícil encontrar uma palavra que o incorpore.

A palavra sânscrita para emoções e atitudes perturbadoras (aflições mentais) é “klesha”,  descrita como doença. Para nos curar delas, precisamos de um médico, o Buda, e de um remédio, o Dharma, e assim por diante. Nesse sentido, alguns tradutores as chamam de “aflições”. No entanto, essa não é a definição; é apenas uma analogia. A definição é que são estados mentais que, quando surgem, causam duas coisas: nos fazem perder a paz e o autocontrole. É por isso que eu chamo de “emoções e atitudes perturbadoras”.

Palavras Finais

Não vamos muito longe neste texto, obviamente, mas tudo bem, porque o mais importante é obter uma base para conseguirmos fazer essas práticas de lojong, essas purificações de atitudes corretamente. Podemos ver que não é algo que possa ser banalizado ou simplificado demais.

Se vamos praticar corretamente, precisamos reconhecer que esses ensinamentos são incrivelmente profundos, incrivelmente difíceis e exigem muita preparação. No entanto, se estivermos devidamente preparados, podemos praticá-los. Se alguém fez isso e alcançou o estado búdico, podemos fazer também. Temos uma frase no Lama Chopa, O Guru Puja, que diz que o Buda sempre valorizou os outros, enquanto que nós sempre nos valorizamos; e olha o que ele conseguiu e o que nós conseguimos. Se o Buda conseguiu fazer o que fez, se alguém conseguiu fazer, se praticarmos corretamente, também conseguiremos.

Com os grandes mestres e Budas chegaram a esse estado? Como Sua Santidade o Dalai Lama se tornou o que é? Praticando esses ensinamentos, esses ensinamentos de lojong – purificação de atitudes. É muito difícil nos identificarmos com o Buda e seu exemplo para levar esses ensinamentos a sério e apreciar seu valor. Não conseguimos ver o Buda, mas muitos de nós tivemos a oportunidade de ver Sua Santidade o Dalai Lama. Podemos pensar: “Uau. Seria fantástico ser como Sua Santidade.” Bem, isso é o que ele pratica. Foi assim que se tornou o que é, praticando os ensinamentos do lojong. Como ele sempre diz, sua coisa favorita, a que ele considera a mais importante, é o texto Engajando-se no Comportamento do Bodhisatva (O Caminho do Bodisatva), de Shantideva, onde esses ensinamentos são amplamente discutidos. Se quisermos ser como ele, é isso que precisamos fazer, e se o fizermos, temos que fazer direito.

Um dia, um jovem hippie, que provavelmente estava chapado, veio ter com Serkong Rinpoche, meu professor, e para quem eu traduzia. E esse hippie disse: “Eu gostaria de praticar os Seis Yogas de Naropa. Você pode me ensinar os Seis Yogas de Naropa?” Sua atitude era: “Isso é tão exótico! Ensine-me; eu queria praticar.” O que sempre foi extraordinário em Serkong Rinpoche, o anterior, era que ele levava todo mundo absolutamente a sério. Ele levou esse hippie a sério, esse jovem hippie chapado, muito, muito a sério. E disse: “Isso é maravilhoso, é maravilhoso que queira praticar isso. Se realmente quer praticar, é assim que você começa: este é o primeiro estágio de preparação, e para isso, seria bom que você fosse à biblioteca tibetana e estudasse isso e aquilo, e quando alcançar o nível adequado de preparação, volte.” Isso ajudou muito o jovem, pois alguém o levou a sério.

É muito importante nos levarmos a sério se vamos seguir o caminho budista. Estamos todos aqui porque, obviamente, gostamos de nos imaginar seguindo o caminho budista e praticando o Dharma. Bem, para isso, é muito importante nos levarmos a sério e praticarmos corretamente.

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