Treinamento em Bodhichitta Profunda

Análise

Ontem, começamos o Treinamento da Mente em Sete Pontos do Geshe Kadampa Chekawa, e cobrimos o primeiro dos sete pontos: os ensinamentos preliminares que nos servirão como base. O segundo ponto, que explicaremos hoje, é o treinamento em bodhichitta.

O texto trata primeiro da bodhichitta mais profunda. Conforme expliquei brevemente ontem à noite, existe a bodhichitta mais profunda, a compreensão da vacuidade, e a bodhichitta relativa, ou convencional ou superficial, que lida principalmente com as aparências. Nosso objetivo é alcançar três coisas: (1) a compreensão da vacuidade da mente onisciente, (2) ter essa compreensão com uma mente onisciente e (3) simultaneamente, aparecer em todos os diferentes tipos de formas para beneficiar a todos os seres. Para ajudar melhor os outros, temos que nos livrar de todos os nossos problemas e limitações, e o que fará isso é a compreensão correta da vacuidade e a cognição não conceitual da vacuidade. Também precisamos entender o que está fazendo com que os seres ajam da maneira que agem, e quais seriam as consequências de qualquer coisa que ensinássemos a qualquer um deles. Portanto, temos que ser oniscientes: temos que saber de tudo que diz respeito a causa e efeito.

De uma maneira geral, podemos dizer que, com a bodhichitta, estamos buscando nossa iluminação que-ainda-não-está-acontecendo para que possamos beneficiar a todos os seres. Se dividirmos essa bodhichitta em dois aspectos, temos a bodhichitta mais profunda (absoluta), com a qual almejamos obter a cognição não conceitual da vacuidade da mente onisciente, e a bodhichitta relativa, convencional ou superficial, com a qual almejamos nos manifestar nas várias formas que sabemos que ajudarão os outros. Isso requer ter uma mente onisciente, que também almejamos alcançar com a bodhichitta relativa.

Conforme mencionei, existem várias edições ou versões desse texto. Na versão mais antiga, a de Togme Zangpo – a que estamos seguindo – a bodhichitta mais profunda é explicada primeiro, e depois é explicada a relativa. Na versão que encontramos no Treinamento da Mente Que É Como os Raios do Sol, escrito por Namkapel, discípulo de Tsongkhapa, acontece o contrário: primeiro vem o verso sobre a bodhichitta relativa, e depois sobre a mais profunda. Além disso, numa edição que foi feita na primeira metade do século passado, por Pabongka Rinpoche, o verso sobre a bodhichitta mais profunda é colocado no final de todo o texto.

Começando com a Bodhichitta Mais Profunda

Aqui seguiremos o comentário oral de Serkong Rinpoche sobre a versão mais antiga, a versão de Togme Zangpo, que explica primeiro a bodhichitta mais profunda. Há uma importante razão e propósito para se apresentar a bodhichitta mais profunda primeiro. Como explica Sua Santidade o Dalai Lama, se compreendermos a vacuidade de todos os fenômenos, e em especial a vacuidade da mente, e da mente de clara luz, e também compreendermos a pureza natural da mente em termos de sua vacuidade, vamos nos convencer de que é possível não apenas alcançarmos a liberação para nos livrarmos para sempre de toda inconsciência e emoções e atitudes perturbadoras, mas também que é possível alcançar a onisciência. A menos que estejamos realmente convencidos desses dois pontos, não conseguiremos nos empenhar na bodhichitta relativa que podemos desenvolver para realmente trabalhar em atingi-los. Esta é a ordem em que Nagarjuna as apresenta em seu Comentário sobre (as Duas) Bodhichittas. Além disso, se estivermos convencidos, por compreendermos a pureza da mente e a vacuidade de causa e efeito, de que todos os seres são capazes de obter a liberação e alcançar a iluminação, termos a confiança de que, quando alcançarmos a iluminação, poderemos ajudar a levá-la a todos os outros seres.

E mais, ter a bodhichitta mais profunda primeiro segue a ordem do lam-rim, os estágios graduais do caminho, pois a compreensão da vacuidade que é comum tanto ao Hinayana quanto ao Mahayana é apresentada primeiro nos ensinamentos do escopo intermediário, como parte dos três treinamentos superiores: autodisciplina ética superior, concentração superior e consciência discriminativa superior, embora a discussão completa da vacuidade só apareça nos ensinamentos do escopo avançado - os ensinamentos sobre as seis atitudes de longo alcance (seis perfeições), que ocorrem após a apresentação da bodhichitta relativa. 

Na verdade, é apenas na versão Gelugpa da Prasangika que a compreensão da vacuidade para alcançar a liberação e a compreensão da vacuidade para alcançar a onisciência do estado búdico é a mesma e, portanto, é uma compreensão comum tanto ao Hinayana quanto ao Mahayana. Não apenas em outros sistemas filosóficos budistas indianos, mas também em outras tradições tibetanas, diz-se que o entendimento da vacuidade para alcançar a liberação ou a iluminação são diferentes. Esta foi uma das realizações e contribuições revolucionárias de Tsongkhapa.

O que Tsongkhapa enfatizou como a diferença entre a compreensão da vacuidade para alcançar a liberação e a compreensão da vacuidade para alcançar iluminação é a força da mente que compreende a vacuidade. Se a força da mente vier apenas da força da renúncia, apenas da determinação de estarmos livres do sofrimento, essa compreensão da vacuidade só será forte o suficiente para nos livrar dos obscurecimentos emocionais que impedem a liberação. No entanto, se a mente que entende a vacuidade tiver bodhichitta relativa, ela terá a força adicional de se livrar também dos obscurecimentos cognitivos que impedem a onisciência. Para dar mais ênfase à necessidade de termos força suficiente na nossa compreensão da vacuidade se quisermos atingir a iluminação, a ordem das duas bodhichittas é invertida em várias das versões do texto feitas pelos mestres Gelugpa. Nelas, o verso sobre bodhichitta relativa vem primeiro, só depois vem o verso sobre a bodhichitta mais profunda.

Quando há duas tradições muito diferentes no budismo para uma determinada questão, é importante não sermos arrogantes e sectários e simplesmente dizermos que nossa posição é a que está correta e a outra está errada. Há boas razões por trás de cada alternativa; ambas fazem muito sentido e ambas são benéficas.

Da mesma forma, o Quarto Panchen Lama, ao falar sobre a meditação mahamudra, colocou a seguinte questão: “O que vem primeiro, shamata focada na natureza convencional da mente ou vipassana focada na natureza mais profunda da mente, na sua vacuidade?” Ele disse que depende do nível de inteligência do discípulo. O mesmo critério se aplica à meditação na bodhichitta. Para discípulos muito inteligentes, que conseguem entender coisas complexas com bastante facilidade, faz sentido meditar primeiro na bodhichitta mais profunda; porém, para os que são mais emocionalmente orientados, a bodhichitta relativa seria mais fácil de desenvolver primeiro.

Muitos dos pontos do Dharma podem ter sua ordem invertida de acordo com os diferentes tipos de discípulos e propósitos. Para uma pessoa mais inteligente e que pensa muito, é realmente importante saber se é ou não possível alcançar a iluminação. E a compreensão da vacuidade, conforme explicou Sua Santidade, convence essa pessoa de que é possível. Assim, ela consegue trabalhar para alcançar a iluminação e o faz mais relaxada. Seu coração e mente estarão muito mais abertos; caso contrário, estarão fechados. Por outro lado, uma pessoa mais emocional e talvez não muito analítica ou disciplinada nesse tipo de pensamento, realmente não se importa. Para essas pessoas, o fato da iluminação ser ou não possível não é um problema, pois estão realmente comovidas com o sofrimento dos outros seres e querem fazer o máximo que podem para ajudá-los agora. Elas trabalharão agora para ajudar melhor os outros, e nesse processo, acumularão força positiva suficiente para que suas mentes fiquem claras o suficiente e assim compreendam a vacuidade, o que talvez não conseguissem fazer com facilidade antes.

Acho que isso nos ajuda um pouco a entender que as duas formas estão corretas, e que depende do indivíduo. No entanto, no caso específico da purificação das atitudes, e especialmente para a prática de dar e tomar do tonglen, que é o que está especificado nos ensinamentos sobre a bodhichitta relativa, ter a compreensão da vacuidade de antemão é crucial. Isto porque, neste ensinamento extraordinariamente avançado que é o tonglen, o maior obstáculo para estarmos dispostos a encarar e sentir o sofrimento dos outros e dar-lhes nossa felicidade, nossa própria felicidade, é o medo: o medo do sofrimento. E o medo do sofrimento, claro, tem como base o autocentramento, o apego a um “eu” que não quer sujar as mãos, que pensa: “Eu não quero me machucar, não quero me envolver.” Isso é especialmente verdadeiro quando nos imaginamos assumindo o sofrimento dos outros. Se pensarmos em termos de um “eu” sólido e “Oh meu Deus! O que está acontecendo comigo?" e assim por diante, vamos surtar, e não vamos querer fazer a prática. É apenas com uma boa compreensão da vacuidade, e especialmente da vacuidade do “eu” das pessoas, você e eu, que conseguiremos saber lidar com a prática do tonglen. Caso contrário, será muito difícil.

Deixe-me enfatizar isso mais uma vez, pois é crucial para a prática do tonglen. Se quisermos realmente praticar o tonglen, e não só fazer uma versão banalizada e simplificada, precisamos nos preparar; e para isso, precisamos ter pelo menos alguma compreensão da vacuidade do “eu”, caso contrário, estaremos atacando nosso autocentramento com métodos muito fortes, visualizações muito fortes, que são muito assustadoras. Temos que estar preparados. Sem essa compreensão da vacuidade, a prática pode se transformar em uma luta, uma verdadeira luta. Essa compreensão da vacuidade, pelo menos em algum nível, nos dará a maturidade emocional para lidar com o verdadeiro tonglen. É disso que precisamos, de maturidade emocional. Se tivermos fortes problemas emocionais, não estamos prontos para o tonglen.

Bodhichitta Profunda: Entendendo a Vacuidade de Todos os Fenômenos

As quatro linhas do texto sobre a bodhichitta mais profunda podem ser compreendidas de várias maneiras. Se olharmos para a versão mais antiga, a versão de Togme Zangpo, ele era da tradição Sakya, e essas linhas têm um vocabulário muito no estilo Sakya, Kagyu e Nyingma, mas principalmente Sakya. Então vamos primeiro olhar para a maneira Sakya de entender este versículo.

A Interpretação Sakya

O método Sakya de meditar sobre a vacuidade é em etapas graduais. Cada vez que meditamos sobre a vacuidade, primeiro nos lembramos da visão Chittamatra (mente apenas), e então a refinamos com a compreensão Madhyamaka e vamos para o nível da mente de clara luz.

A primeira linha é:

Pondere que os fenômenos são como um sonho.

Isso se refere a todos os fenômenos convencionais. Lembre-se, estamos falando de fenômenos imputados. De acordo com a Sakya, todas as formas convencionais e de senso comum de fenômenos físicos, como nosso corpo, o corpo de outra pessoa ou mesmo um telefone celular, são fenômenos imputados com base em momentos sequenciais de diferentes informações sensoriais. Da mesma forma, todos os tipos de consciência de senso comum, como a consciência ocular ou a compaixão, são fenômenos imputados com base em momentos sequenciais de cognição. Esses dois tipos de fenômenos de senso comum são objetos conhecidos apenas pela cognição conceitual. O “eu”, uma “pessoa”, é um fenômeno imputado com base nos cinco agregados compostos por esses dois tipos de fenômenos imputados, e também só é conhecido pela cognição conceitual. Essa é a posição Sakya.

Todas essas aparências de objetos convencionais e de senso comum que experimentamos meramente como objetos de nossa cognição conceitual são hologramas mentais, como os que aparecem em um sonho. Não podemos ver, cheirar ou tocar um objeto de senso comum, como um corpo. Só podemos tomar conhecimento de informações sensoriais visuais, as visões, com a consciência ocular, e informações sensoriais olfativas, cheiros, com a consciência do nariz e as informações sensoriais táteis, sensações físicas, com a consciência corporal – e apenas um momento de cada vez. Só a consciência mental é capaz de sintetizar e imputar conceitualmente um holograma mental que representa um corpo de senso comum, permeando todos esses diferentes tipos de informações sensoriais e toda uma sequência de momentos delas. E também é apenas a consciência mental que consegue sintetizar e imputar conceitualmente um holograma mental que representa uma pessoa, permeando todos os cinco agregados – um corpo, os vários tipos de consciência, sentimentos de sofrimento, outros fatores mentais etc. – e toda uma sequência de momentos deles. Nenhum desses objetos de senso comum pode ser estabelecido como existindo externamente, uma vez que todos os tipos de cognição sensorial só conseguem tomar conhecimento de um tipo de informação sensorial e apenas um momento de cada vez.

É nesse sentido que a Sakya afirma algo semelhante à afirmação da Chittamatra: que o holograma mental de um corpo de senso comum, de uma pessoa de senso comum, de um problema de senso comum ou de um sofrimento de senso comum que surgem na cognição conceitual, e também a consciência mental que toma conhecimento dele, vêm da mesma fonte natal. Todos esses hologramas surgem como a “atividade” do aspecto de clareza da natureza da mente. A natureza da mente é clareza e consciência. “Clareza” refere-se ao aspecto da atividade mental que cria as aparências de um holograma mental; e “consciência” é o aspecto de se engajar cognitivamente de alguma forma com a aparência. Esses dois aspectos da atividade mental ocorrem simultaneamente; eles são inseparáveis e, portanto, surgem da mesma fonte, a natureza convencional da mente. Apesar de serem funções distintas, eles são “não-duais”.

Com base nesse ponto, as aparências de todos os fenômenos de senso comum são como um sonho, pois os sonhos claramente surgem também da mente. Todas as aparências de fenômenos, então, são hologramas mentais que surgem como aquilo que o aspecto criador de aparências da mente faz aparecer. Não obstante, coisas como aparências e mente existem; não é que não existam. Mas existem apenas como fenômenos imputados e só podem ser conhecidas de forma conceitual. E não é que nossa cognição conceitual os crie e que se não os conhecêssemos conceitualmente, eles não existiriam. É apenas que só podemos conhecê-los conceitualmente.

Este é um ponto extremamente sutil e difícil de digerir emocionalmente, em especial no contexto do tonglen. Com a prática do tonglen, olhamos para o sofrimento dos outros e o tomamos para nós; então o que estamos tomando se o sofrimento e a pessoa que o vivencia são hologramas mentais, como um sonho? Quem está vivenciando o sofrimento? Você? E sou eu que vou vivenciá-lo a partir de agora? O que está acontecendo? Você só está apenas na minha cabeça? Você é apenas um sonho? Como eu sei que você realmente existe? A solução Zen seria a outra pessoa nos dar um tapa na cara, e então saberíamos que ela existe. É por isso que é como um sonho, mas não é o mesmo que um sonho.

É muito importante perceber que todo sofrimento que tomamos dos outros seres, seres que existem e que sofrem, é um sofrimento que eles vivenciam na forma de uma aparência criada pela mente, na forma de um holograma mental que surge como a atividade da mente. O mesmo acontece conosco. Se tomássemos o sofrimento para nós e o vivenciássemos, isso também seria uma atividade da mente, um holograma mental. Claro que doeria −, não negamos que vai dor, porque vamos senti-lo, −mas ele é uma aparência criada pela mente. Da mesma forma, não existe um “eu” sentindo isso e dissociado da atividade da mente – seja na sua experiência ou da minha. O “eu” da experiência de sofrimento de qualquer pessoa é um fenômeno de imputação que tem como base esse sofrimento e, como fenômeno de imputação, não pode existir e ser conhecido separadamente de sua base. Portanto, a pessoa que experimenta o sofrimento é parte inseparável do holograma que aparece do sofrimento. Obviamente, isso é muito difícil de entender e exige que pensemos muito sobre essa linha que diz que todos os fenômenos são como um sonho.

A próxima linha é:

Discerne a natureza fundamental da consciência que não tem surgimento.

“Discerne” é a mesma palavra usada para meditação “analítica”. A investigação é apenas uma preliminar para isso e, tendo investigado algo, como a natureza da consciência, realmente a discernimos. O discernimento é com um estado mental excepcionalmente perceptivo, vipassana. A natureza fundamental da consciência é a natureza vazia fundamental da consciência, ou a mente. Temos que ter cuidado com essa palavra “natureza”. Existem cerca de três ou quatro termos técnicos que são fundidos em nossas línguas ocidentais em uma única palavra, “natureza”, e isso faz com que as diferenças técnicas dessas diferentes palavras sejam perdidas. Aqui, o termo que traduzo por natureza fundamental, gshis, tem a conotação da personalidade fundamental de algo, que aqui se refere à sua vacuidade.

Esta frase, natureza vazia fundamental, acrescenta o entendimento Madhyamaka ao Chittamatra, o que precisamos, pois a Chittamatra afirma que a mente, sendo a fonte desses hologramas mentais, tem uma existência autoestabelecida, uma existência verdadeiramente estabelecida e não imputada. Em outras palavras, a existência autoestabelecida e não imputada da mente poderia ser estabelecida ou provada independentemente de ser um fenômeno imputado em uma base. Apenas o fato de funcionar e produzir hologramas mentais estabeleceria incontestavelmente a sua existência.  Mas a Madhyamaka objeta e diz: “Não, não, não, não é assim. O fato de alguma coisa funcionar não prova que ela existe incontestavelmente, pois se as coisas existissem de forma não imputada e autoestabelecida, elas não poderiam funcionar.”

A apresentação Sakya sempre enfatiza a criação de aparências, o aspecto de clareza da mente. Essa linha está dizendo que a criação de aparências não pode ser encontrada existindo independentemente, por si só, com base em alguma natureza autoestabelecida e encontrada dentro dela, responsável por ela poder desempenhar a função de criar as aparências. Como não existe uma natureza autoestabelecida, não existe um verdadeiro surgimento, uma verdadeira permanência e uma verdadeira cessação de uma mente que tem uma natureza autoestabelecida.

Não é como se houvesse uma mente autoestabelecida esperando em algum lugar fora do palco, e que depois entrasse no palco, fizesse a cena desempenhando sua função de dar origem a uma aparição, e depois saísse do palco e descansasse. Para colocar isso em termos de refutação da afirmação padrão da Chittamatra, a mente, a atividade mental que dá origem às aparências, não está como se sentada dentro de uma tendência cármica, de uma assim chamada “semente cármica”, já determinada quanto à aparência que irá criar, só esperando para sair. E, quando dadas as circunstâncias apropriadas, ele sai, desempenha sua função, e então volta para a tendência, esperando o próximo conjunto de circunstâncias que a farão sair novamente e dar origem a algo semelhante: outra circunstância de desapontamento, raiva ou desprezo– essas coisas.

Essa natureza fundamental da mente, que dá origem a aparências que são como um sonho, é desprovida de uma natureza autoestabelecida que lhe dê uma existência verdadeiramente estabelecida e não imputada. A mente, ou consciência, portanto, não tem origem, conforme é dito no texto, o que é resumido em “sem surgimento, sem permanência e sem cessação” com base em tal natureza autoestabelecida. Isso se soma ao fato de que, assim como as aparências, a mente também é como um sonho, pois “mente” é uma síntese conceitual que é uma imputação em uma sequência de momentos de atividade mental. Além disso, não é que exista uma máquina, chamada “mente”, criando essa atividade mental, separada dessa atividade e das aparências que cria. A atividade mental está simplesmente acontecendo. O surgimento das aparições dos hologramas mentais simplesmente acontece, afetado pelas circunstâncias.

Isso também é muito importante em termos de prática de tonglen. Temos que discernir e realmente perceber, com um estado mental excepcionalmente perceptivo, que é assim que a atividade mental existe e funciona. Caso contrário, acabaremos assumindo o sofrimento dos outros e depois nos apegando a ele. Mas todos os momentos da nossa experiência só estão acontecendo no exato momento, e é isso. Não é algo que podemos encontrar, segurar, e então pensar: “Oh, meu Deus. Agora tenho esse sofrimento que trouxe para dentro de mim!” Se pensarmos assim, vamos surtar, como se fossemos ficar com ele para sempre. Não é que esse sofrimento tenha se originado em “você”, surgido de “você”, e agora eu esteja com o “seu” sofrimento dentro de “mim”, e meu grande “eu” esteja vivenciando o “seu” sofrimento. Não é nada disso. É apenas o surgimento de uma aparência; é apenas um vivenciar, e ele não tem uma existência verdadeiramente estabelecida e encontrável.

A terceira linha:

A própria força opositora libera-se por si só.

Agora, entramos no entendimento Sakya Prasangika. A força opositora (antídoto) ao apego à existência não imputada e autoestabelecida, que é a causa de todo sofrimento, é a cognição não conceitual da vacuidade, muitas vezes traduzida como “vacuidade”. A vacuidade refere-se à ausência de uma existência não imputada e autoestabelecida, pois tal existência seria impossível; não existe tal coisa.

A vacuidade, como tudo o mais, é um fenômeno imputado em uma base; é a vacuidade de um modo impossível de existir – ou, mais precisamente, de um modo impossível de se estabelecer a existência de algo. Aqui, estamos falando especificamente sobre a vacuidade da mente e das aparências que ela cria. Mas, como fenômeno imputado, a vacuidade é conhecida de forma conceitual e, como todas as aparências conceituais, ela também parece ter existência verdadeira, não imputada e autoestabelecida. Para atingirmos a iluminação, precisamos ir além da cognição conceitual da vacuidade; precisamos da cognição não-conceitual.

Há quatro extremos que precisamos ultrapassar, e todos eles são sínteses conceituais que parecem ser verdadeiras, não imputadas e autoestabelecidas. São eles: (1) a própria existência verdadeira, não imputada e autoestabelecida, (2) a falta de existência não-imputada, autoestabelecida – em outras palavras, a vacuidade, (3) ambos e (4) nenhum. Como são sínteses conceituais, cada um desses quatro extremos são o que chamamos de “conceitos” e podem ser designados com palavras. Mas, a verdadeira cognição não conceitual da vacuidade é a que está além das palavras e dos conceitos; está além dos quatro extremos, pois todos os quatro são conceituais.

Ir de uma cognição conceitual da vacuidade para uma não conceitual é a coisa mais difícil de realizar na meditação, e todas as quatro tradições do budismo tibetano oferecem um método diferente. Embora a Sakya, assim como a Kagyu e a Nyingma, tenham seus próprios estilos de meditação, todas formulam a vacuidade que é conhecida de maneira não conceitual como uma vacuidade que está além de palavras e conceitos.

Qualquer que seja o método que usemos, precisamos aplicá-lo, para ir além das palavras e conceitos, em nossa meditação tonglen. Não estamos falando aqui sobre o conselho que é dado no texto, de praticar tonglen “enquanto treina com palavras em todos os caminhos do comportamento”. Isso está se referindo a recitar o mantra “om mani padme hum” para ajudar a manter a compaixão enquanto praticamos. Estamos falando aqui de, ao tomar para si o sofrimento dos outros, parar pensamentos verbais como: “Esse sofrimento horrível dos outros, que tomei pra mim e estou vivenciando agora, é apenas uma aparência da mente, como um sonho." Temos que parar de pensar verbalmente – e não só não parar de colocar mentalmente em palavras, mas também não pensar e sentir conceitualmente – que esse sofrimento é algo verdadeiramente e inimputavelmente estabelecido, como se estivesse sentado lá, horrível, dentro de mim, agora, mesmo que seja como um sonho. E também temos que parar de pensar, seja verbalmente ou apenas através de um conceito: “Esse sofrimento é destituído de existência não imputada; não há nada com que me assustar. Calma! Ele não tem existência verdadeira. Pare com isso!”

Esse é o ponto que a terceira linha do versículo está abordando. O método para ir além das palavras e dos conceitos é abrir mão desses pensamentos conceituais, pois a força opositora – a cognição conceitual da vacuidade – libera-se por si só. “Libera-se” significa que se dissolve automaticamente. Como não tem um verdadeiro surgimento, permanência ou cessação, todos os pensamentos e todas as aparências nos pensamentos surgem e cessam simultaneamente; até mesmo o pensamento conceitual da vacuidade e a aparência onírica da vacuidade no pensamento. Mas, importante, quando deixamos de nos agarrar a esse pensamento conceitual da vacuidade, precisamos manter uma compreensão dela. Se conseguirmos fazer isso, nossa cognição da vacuidade será não-conceitual.

A quarta linha diz:

A natureza essencial do caminho é estabelecer-se em um estado que é como uma base que tudo engloba.

Isso descreve o que estamos fazendo nesta meditação não conceitual sobre a vacuidade. De acordo com a apresentação Sakya, estamos nos estabelecendo na mente de luz clara, que é o nível mais sutil da mente. Isso porque, uma das afirmações específicas da Sakya é: quer sigamos os métodos do sutra Mahayana ou do tantra, toda cognição não conceitual da vacuidade é com a mente de clara luz. A diferença entre sutra e tantra está nos métodos usados para chegarmos ao nível mais sutil da mente.

Na Sakya, a mente de clara luz é chamada de “base que tudo engloba” – é a palavra “alaya”, como em alayavijnana. É a base de tudo. O nome mais completo seria “continuum alaya causal”. É a mente fundamental, a mente de luz clara, que engloba tudo, pois é a causa de todas as aparências. É a causa última mais profunda de todas as aparências, puras e impuras – ou seja, todas as aparências impuras, que são baseadas na inconsciência e no carma, e todas as aparências puras, que não são baseadas nisso – as aparências que um Buda emana. Na Sakya, essa visão é chamada de “inseparabilidade do samsara e do nirvana”, no sentido de que tanto as aparências puras quanto as impuras vêm da mente de luz clara.

Essa visão é extremamente útil para a verdadeira prática de tonglen. Quando tomamos para nós o sofrimento dos outros e focamos em sua vacuidade, se conseguirmos focar de maneira não conceitual, teremos nos estabelecido no nível da mente de clara luz. Mesmo que só consigamos focar na vacuidade de maneira conceitual, podemos pelo menos imaginar que alcançamos esse nível de luz clara, que é totalmente puro. Em vez de ter esse nível mental de clara luz como fonte de aparências perturbadoras, de confusão e sofrimento, emanamos a partir desse nível aparências puras de felicidade e o que quer que ajude outras pessoas, e é isso que damos para o outro. É assim que se faz.

Essas aparências puras são imaculadas, ou seja, não são misturadas com confusão, como o apego a elas como se fossem verdadeiramente existentes e a atitude mesquinha que vem disso. Não há nada confuso sobre o que queremos dar aos outros. Isto é muito importante: que nossa doação seja sem pensamentos de “espero que você goste, ou espero que funcione, e espero que você goste de mim por causa disso”.

Fazer a prática corretamente não significa fazê-la completamente desprovido de qualquer emoção e sentimento; não é que nossa prática de tonglen seja totalmente impessoal. Fazê-la corretamente é algo muito delicado, pois quando nos livramos das emoções negativas e do apego à existência verdadeira e não imputada de todas as emoções, tanto negativas quanto positivas, quando emanamos felicidade, etc., precisamos fazer isso com as emoções positivas do amor e da compaixão, mas, claro, sem nos apegar a elas como se fossem verdadeiramente estabelecidas,  autoestabelecidas e não imputadas. É por isso que, para nos livrarmos dessa criação de aparências verdadeiramente estabelecidas pela mente de clara luz, precisamos ir à origem de todas as aparências, puras e impuras, e então poderemos emanar aparências puras e emoções positivas.

A confusão e todas as aparências se dissolvem automaticamente – “se libertam” – pois não são fenômenos verdadeiramente estabelecidos e vindos de algum lugar, nem mesmo da mente de clara luz, e que depois vão embora. A força opositora, a vacuidade, também se liberta. Com a liberação da vacuidade do sofrimento que recebemos dos outros, e de todas as emoções negativas, como o medo que podemos sentir dele, conseguimos emanar aparências puras dentro dessa base que tudo engloba, e que é a causa de todas as aparências, e oferecê-las aos outros seres.

Podemos ver que esta explicação Sakya não é apenas incrivelmente profunda, mas incrivelmente útil, e se encaixa extremamente bem nesse treinamento de sete pontos. Com essa compreensão da bodhichitta mais profunda como base, podemos praticar o tonglen e desenvolver a bodhichitta relativa. Sem essa base, a prática do tonglen pode ser psicologicamente muito perigosa.

A Interpretação Gelug

Agora, vamos à interpretação Gelug da bodhichitta mais profunda, mas apenas muito brevemente, para vermos como essas linhas podem ser interpretadas de maneiras diferentes, o que também é útil, obviamente. Pondere que os fenômenos são como um sonho refere-se a todos os fenômenos que são conhecidos pela mente e indica que todos os fenômenos carecem de existência autoestabelecida. Então, Discerne a natureza fundamental da consciência que não tem surgimento, refere-se à vacuidade da mente que conhece todos os fenômenos. Os objetos da mente e a própria mente carecem de existência autoestabelecida.

Agora isso abrange todos os cinco agregados, todos os aspectos de nossa experiência e todos os fatores que compõem nossa experiência, momento a momento, e são a base para o “eu”, que é um fenômeno imputado nessa base. O eu de uma pessoa também carece de existência autoestabelecida.

Precisamos entender que essa sequência, de primeiro compreender a vacuidade dos agregados, especialmente da mente, e depois a vacuidade do “eu”, é uma refutação Prasangika da posição Svatantrika. De acordo com as afirmações Gelug, fenômenos de imputação, como o “eu” e até mesmo objetos de senso comum inteiros, não são construções conceituais; eles também podem ser conhecidos de forma não conceitual. No entanto, o que estabelece que eles existem é que eles são aquilo a que as palavras ou conceitos para eles se referem, com base em suas bases de imputação – no caso do “eu”, um contínuo individual dos cinco agregados. Isso significa que, embora possamos conhecer o “eu” de uma pessoa de forma não conceitual, só podemos estabelecer que ele existe em termos de cognição conceitual, por meio de palavras e conceitos. Essa cognição conceitual é chamada de “rotulagem mental”.

Há três coisas envolvidas na rotulagem mental do “eu”, por exemplo: a palavra, conceito ou rótulo mental “eu”; um contínuo individual de cinco agregados como base para o rótulo, e aquilo a que o rótulo mental se refere – o objeto de referência, o “eu” convencionalmente existente. Só se pode estabelecer que o “eu” existe como esse objeto de referência porque o pensamento conceitual se refere a algo. Isso não significa que a rotulagem mental o cria. Significa apenas que só podemos estabelecer a existência do “eu” na dependência do fato de ele ser aquilo a que o rótulo mental para ele se refere.

A Prasangika afirma que é apenas em termos de rotulagem mental que a existência do “eu” – ou de qualquer coisa validamente cognoscível – pode ser estabelecida; ela surge na mera dependência da rotulagem mental. A Svatantrika, no entanto, afirma que, além da rotulagem mental, deve haver alguma marca característica definidora daquilo que o conceito ou palavra se refere, que pode ser encontrada na base para a rotulagem mental e que permite a rotulagem mental correta das coisas. Essa afirmação equivale a dizer que essa marca característica definidora é como uma natureza autoestabelecida do “eu”, por exemplo, e que pode ser encontrada na base da rotulagem mental. A Svatantrika diz que a existência do “eu” e de todos os outros fenômenos é estabelecida pela rotulagem mental junto com esta marca característica definidora localizável. Além disso, a Svatantrika afirma que a marca característica definidora do “eu” pode ser encontrada especificamente no contínuo individual de consciência mental – em termos mais gerais, o contínuo individual de uma mente – como sendo a base.

A sequência indicada aqui neste versículo é que primeiro precisamos reconhecer a ausência de marcas características definidoras encontradas nas aparências, e especialmente uma marca característica definidora encontrada numa sequência de momentos da mente que, juntamente com a rotulagem mental “mente”, estabelece que isso é uma mente. Então, uma vez que a mente não tem uma marca característica definidora “mente” localizável dentro dela, como ela teria uma marca característica definidora do “eu”? Isso não faz sentido.

Essa compreensão da vacuidade do “eu” de uma pessoa, é a interpretação Gelug da terceira linha do verso, O próprio oponente se liberta em seu próprio lugar. O oponente é entendido aqui como o “eu” que está fazendo esta meditação. Se compreendemos que os agregados, que são conteúdo das aparências da mente, e também a própria mente, são desprovidos de existência autoestabelecida e de existência estabelecida por uma marca característica definidora, então, como acabei de explicar, automaticamente compreendemos a vacuidade do “eu”. E, assim, o “eu” autoestabelecido, que simplesmente não existe, “se liberta em seu próprio lugar”. Todas as aparências desse “eu” impossível desaparecem.

Assim, na prática do tonglen, precisamos entender que o sofrimento dos outros que tomamos para nós não tem existência autoestabelecida; nem a mente deles nem a nossa própria mente, que está experimentando isso, têm existência autoestabelecida; e nem eles nem nós, como pessoas que experimentam esse sofrimento, temos uma existência autoestabelecida.

Essas três primeiras linhas do versículo referem-se à meditação de discernimento, às vezes traduzida como “meditação analítica”, que precisamos fazer com a prática do tonglen. Uma vez que nos familiarizamos com as linhas de raciocínio para provar a vacuidade de todos os fenômenos, precisamos nos lembrar delas antes da meditação e então tentarmos ficar atentos para discernir a vacuidade do sofrimento, da mente e do “eu” durante a meditação. Quando tomamos para nós o sofrimento, discernimos que o sofrimento, a mente e a pessoa que o vivencia – tanto a outra pessoa quanto nós – são desprovidos de existência autoestabelecida. Discernimos tudo isso.

A quarta linha, A natureza essencial do caminho é estabelecer-se em um estado que é como uma base que tudo engloba, refere-se à meditação estabilizadora que fazemos uma vez que tomamos para nós o sofrimento dos outros. A “base que tudo engloba” refere-se à vacuidade, e agora simplesmente nos estabelecemos em uma meditação estabilizadora sobre a vacuidade – a vacuidade das três esferas: da pessoa que está meditando, daquilo em se está meditando e da meditação em si. E então, mantendo esse “gosto”, como se diz, o gosto do vazio, nos imaginamos emanando felicidade e tudo o mais que estamos dando aos outros, percebendo que tudo isso é como uma ilusão. Esse é o estilo Gelugpa de aplicar a bodhichitta mais profunda à meditação tonglen.

Ambas as explicações, Sakya e Gelug, são muito aplicáveis ao tonglen, e ambas são extremamente úteis. Eu quis detalhar isso um pouco porque, sem a bodhichitta mais profunda primeiro, é muito difícil fazer o tonglen corretamente.

Vamos terminar aqui, e discutiremos a bodhichitta relativa em nossa próxima sessão.

Pergunta sobre hologramas mentais

Teve uma pergunta, no entanto, durante o intervalo, que eu gostaria de responder brevemente antes de prosseguirmos. Foi sobre essa afirmação de que os hologramas mentais não têm origem, permanência ou cessação e, portanto, “liberam a eles próprios”. Eu poderia explicar isso mais um pouco?

A expressão “liberar a si próprio” é uma terminologia padrão que também é usada em textos dzogchen e mahamudra. Às vezes é traduzida como “autolibertação”. O significado é que os pensamentos se dissolvem automaticamente; não temos que fazê-los ir embora. Os pensamentos se liberam e se dissolvem automaticamente, pois surgem, permanecem e desaparecem simultaneamente. A imagem que às vezes é usada para ilustrar esse ponto é que os pensamentos são como uma escrita na água.

Se a gente analisar, como é que pensamos? Será que um pensamento surge, e então o pensamos, e depois ele vai embora? Esse processo de três etapas só poderia acontecer se um pensamento fosse uma entidade autoestabelecida que, conforme expliquei, entrasse no palco, desempenhasse sua função e depois saísse. No entanto, nem os pensamentos, e nem qualquer outra coisa, existem dessa maneira.

Além disso, se pensarmos em tempo, não há uma unidade de tempo que seja a menor unidade. O tempo sempre pode ser dividido em unidades cada vez menores. Será que conseguiríamos apontar para três microssegundos específicos: quando o pensamento surgiu, quando o pensamos e quando ele foi embora? Não conseguiríamos. O pensamento só poderia ocorrer assim se microssegundos existissem como entidades autoestabelecidas e encontráveis.

Quando compreendemos a vacuidade, compreendemos que pensamentos, hologramas mentais e aparências surgem, permanecem e cessam simultaneamente. Nesse sentido, eles desaparecem automaticamente, por si próprios; eles se libertam automaticamente. Os pensamentos não têm como durar. “O tempo passa”, como dizemos. É apenas quando nos agarrarmos a um pensamento, como se ele tivesse uma existência autoestabelecida, que sentimos, por exemplo, “Esse meu mau humor vai durar para sempre”. O fato de um pensamento surgir, permanecer e desaparecer automaticamente, por si só, é a evidência de que, quando o compreendemos, ele atua como uma força opositora ao nosso apego. Se conseguirmos reconhecer esse fato, que é bastante sutil, e se conseguirmos permanecer atentos a isso, o que significa que nossa cola mental se adere a esse entendimento, isso ajudará muito nossa prática de tonglen. Na verdade, ajudará em tudo na nossa vida.

Quando os textos dzogchen e mahamudra dizem apenas para mantermos a naturalidade e relaxar, isso não significa que devemos fazer isso literalmente. Isso está se referindo a esse processo que acabei de explicar. Nossos pensamentos e emoções perturbadoras estão simultaneamente surgindo, permanecendo e cessando. Não precisamos fazer nenhum esforço para que esses pensamentos e emoções perturbadoras desapareçam. Se conseguirmos manter essa percepção, que na verdade é a percepção da vacuidade do pensamento e da mente, não teremos problemas com nossos pensamentos. Então, simplesmente relaxe e não se prenda a nenhum pensamento – isso pode parecer muito fácil, mas não é. É extraordinariamente difícil.

Embora pensamentos, emoções, etc. surjam, permaneçam e cessem simultaneamente, isso não significa que não surgem. Pensamentos, emoções e aparências surgem, mas são como uma ilusão, como um sonho. Não é que não está acontecendo nada. A última linha deste versículo diz: 

Entre as sessões, aja como uma pessoa ilusória.

Serkong Rinpoche colocou isso muito bem, de forma muito enigmática, resumindo esse verso, essas cinco linhas. Ele disse: “Se tem um muro, não tem como atravessar, mas se não tem um muro, tem como atravessar”. Por exemplo, se as coisas tivessem uma existência verdadeira e autoestabelecida, elas seriam sólidas como um muro. Elas estariam congeladas, em certo sentido, como entidades autoestabelecidas e independentes e, portanto, seriam incapazes de funcionar, pois funcionar implica fazer algo, o que implica em mudar.

Da mesma forma, se cada momento, cada microssegundo, fosse uma entidade autoestabelecida e independente, como um microssegundo poderia levar a outro? Como os microssegundos poderiam se conectar? Se uma causa fosse autoestabelecida, se existisse, por si só, como causa, como poderia levar a um efeito? Como as coisas poderiam funcionar, como as coisas poderiam acontecer? Mas, como não existe existência autoestabelecida, como não há muro, em certo sentido, tudo funciona.

Então, como afirmou Serkong Rinpoche: “Se tem um muro, não tem como atravessar, mas se não tem um muro, tem como atravessar”. Esse é um exemplo da maneira enigmática como os lamas tibetanos costumam ensinar. Eles expressam coisas complexas com exemplos muito simples – simples, talvez, mas muito profundos.

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