Roda de Armas Afiadas: Identificando o Verdadeiro Inimigo

Breve Revisão dos Textos Sobre a História do Treinamento da Mente

Estamos conversando sobre o texto Roda de Armas Afiadas, de Dharmarakshita, que pertence ao conjunto de textos de treinamento mental, e parece ser o precursor deles. Dharmarakshita foi um dos professores de Atisha, e Atisha estudou esse texto com ele. Mais tarde, ele o transmitiu a Dromtonpa e ao Tibete. A partir de Dromtonpa, sua transmissão e estudo continuou na linhagem da tradição Kadampa e, a partir daí, foi para todas as tradições do Budismo Tibetano.  

O texto fala sobre a prática de dar e tomar, tonglen, na qual tomamos o sofrimento dos outros e lhes damos felicidade, liberdade desse sofrimento e, finalmente, o estado de iluminação de um Buda. 

O foco principal, que também encontramos mais tarde na tradição de treinamento da mente, como por exemplo, no texto Treinamento da Mente em Sete Partes, de Geshe Chekawa, é fazer tonglen com as três atitudes venenosas, que são as causas do sofrimento, e derivam do apego a um “eu” cuja existência é impossível. Esses três venenos são o desejo, o apego ou a ganância - esses três vêm juntos em um único pacote -, a raiva e a ingenuidade. Eles provocam o comportamento compulsivo do carma, que produz, como resultado de seu amadurecimento, o sofrimento.     

Conforme costuma ser mencionado nos vários textos de meditação, o maior obstáculo à concentração e à meditação mais profunda é o desejo. E aquele que é impulsionado biologicamente pelo prazer sexual é sua forma mais forte. As partes principais do texto passam então a discorrer sobre os obstáculos que nos impedem de fazer a prática de tonglen e ajudar os outros com o sofrimento que resulta do comportamento compulsivo destrutivo.  

O que acontece é que temos vontade de fazer uma coisa e, ingenuamente, sem discernimento e sem saber quais serão as consequências, entramos em situações onde repetimos padrões de comportamento anteriores ou os outros agem conosco de maneira destrutiva, semelhante a como agimos (no passado) com outros.      

Dharmarakshita aponta que, quando percebermos outras pessoas agindo conosco de maneira desagradável, precisamos reconhecer que isso é o amadurecimento de um padrão nosso do passado, de agir de maneira destrutiva com os outros. Portanto, precisamos parar de repetir esses velhos padrões e começar a agir de maneira oposta. Isso nos dá uma indicação muito boa do que procurar em nosso próprio comportamento destrutivo e como mudar nossa maneira de falar e agir, além de perceber que essas circunstâncias não são apenas dolorosas, elas também nos impedem de ajudar os outros. 

Toda essa discussão sobre carma é para conseguirmos superar os efeitos negativos e prejudiciais de nosso comportamento cármico passado, de forma a ajudar melhor os outros e praticar tonglen com esse objetivo de ajudá-los. 

O Apego a um Eu Verdadeiramente Estabelecido

A causa que está por trás de nosso comportamento destrutivo, por trás dessas três emoções venenosas, ou tóxicas, que provocam nosso comportamento destrutivo, é no apego a um eu verdadeiro. “Verdadeiro”, aqui, é no sentido de que para aqueles que não têm um insight profundo ou uma realização da vacuidade ou vazio, parece que o que vivenciamos como sendo o “eu” é o eu verdadeiro, verdadeiramente estabelecido; mas não é. Esse, assim chamado “eu verdadeiramente estabelecido” não existe de forma alguma. Não é algo que corresponda à realidade. 

Quando acreditamos que existimos como um eu verdadeiramente estabelecido, ficamos autocentrados. O autocentramento é a atitude de nos considerar essa entidade impossível, solidamente existente, a mais importante, a única de quem queremos cuidar. Isso gera egoísmo, preocupação consigo mesmo e muitos outros aspectos descritos na psicologia ocidental. Além disso, ignoramos os outros. 

Na tradição de se igualar e trocar de lugar com os outros, que é onde estão as práticas de tonglen, há uma grande ênfase em perceber as desvantagens do autocentramento, como aquelas enfatizadas neste texto, e as vantagens de cuidar dos outros. Essa ênfase ajuda a nos motivar, a praticar tonglen e realmente querer tomar para si os sofrimentos e as dificuldades dos outros.    
      

Dois Aspectos do Apego a um Eu Verdadeiramente Estabelecido

Vamos começar a terceira parte deste texto em que Dharmarakshita identifica o verdadeiro inimigo que nos causa tantos danos. O verdadeiro inimigo é nosso apego a um eu verdadeiramente estabelecido. Como surge esse apego? É que nossas mentes automaticamente criam e emanam a aparência de um eu verdadeiramente estabelecido. Então temos o que geralmente é chamado de "ignorância". Prefiro chamar de “falta de consciência”, pois se chamamos de ignorância parece que somos imbecis, e não é que sejamos imbecis. A ignorância ou essa falta de consciência é definida de duas maneiras diferentes. Uma delas é não saber como as coisas existem,  pois não sabemos que essa aparência não corresponde a como realmente existimos; e a outra é que acreditar que (essa aparência) corresponde e considerar que realmente existimos dessa forma, que na verdade é o oposto da forma como existimos.        

Esse apego a um eu verdadeiramente estabelecido tem dois aspectos, pois a palavra que é traduzida como “apego” também significa tomar algo como um objeto cognitivo. O primeiro aspecto é que nossas mentes criam essa aparência falsa e enganosa de um eu verdadeiramente estabelecido que tomamos como objeto de cognição. Isso acontece automaticamente, o tempo todo, pois nossas mentes são limitadas e estão sob o controle do hábito contínuo de gerar essas aparências. A aparência enganosa surge e nós a percebemos. E aí tem o segundo aspecto, que é considerar que ela corresponde à realidade, acreditarmos que seja verdadeira.          

Esse segundo passo costuma ser chamado de “apego”, pelo menos na conotação do verbo inglês “grasp” (agarrar)“Acreditamos que é assim que existimos. Essa crença errônea é a primeira coisa que precisamos superar. Quanto mais percebemos a ausência de uma realidade que corresponde ao absurdo que nossa mente faz aparecer, ou seja, quanto mais nos concentramos na vacuidade disso - nessa ausência, nessa ausência total - mais quebramos a inércia de nossa mente que cria essa aparência enganosa. Quanto mais conseguirmos focar de maneira não conceitual nessa ausência de um eu verdadeiramente estabelecido, mais cedo nossa mente irá parar de criar essa aparência enganosa que tanto parece ser esse eu impossível.   

Cognição Conceitual com Categorias

Para esclarecer e compreender o que queremos dizer com cognição não conceitual, precisamos primeiro definir e compreender a cognição conceitual. Cognição conceitual significa tomar conhecimento, apreender algo por meio de uma categoria. "Cognição" é uma palavra geral para “ter consciência de algo”. O termo (que traduzo como) "categoria" às vezes é traduzido como "universal" ou "generalidade", mas não acho esses termos muito úteis.       

Uma categoria é como uma caixa mental na qual encaixamos as coisas. Por exemplo, temos a categoria mental "maçã". Quando encontramos muitas frutas semelhantes na loja, olhamos para elas por meio da categoria “maçã” e sabemos que todas se encaixam na mesma categoria de objeto. Elas são todas o mesmo tipo de objeto. Além disso, existem nomes designados para essa categoria em vários idiomas, por exemplo "apple" em inglês. Por meio da categoria, esses nomes também são designados aos itens que enquadramos na categoria.          

Quando se trata da categoria “maçã”, “cachorro” ou “gato”, é muito fácil ver quantos itens se encaixam nessas categorias. Mas, e quanto à categoria "eu?" O exemplo que geralmente dou para ajudar a entender isso é uma série de fotos nossas ao longo de nossa vida. Olhando para elas, podemos colocar todas na caixa mental "eu" e chamá-las de "eu". Todas são fotos de "eu" e, nesta vida, esse "eu" também tem um nome individual, como "Alex".    

As caixas mentais começam a se tornar um pouco mais complicadas quando falamos de emoções. Nós temos uma caixa mental chamada "amar" e uma caixa mental denominada "gostar", como em "eu amo você" ou "eu gosto de você." Todo mundo tem sentimentos diferentes e sente emoções diferentes; então, em qual caixa colocamos o sentimento que temos por alguém? Isso se torna muito interessante. Quando é que o que sentimos por alguém se encaixa na caixa "eu gosto de você", e quando é que muda para a caixa "eu te amo?" Se algo se encaixa ou não nesta ou naquela caixa depende, claro, das características definidoras ou, em outras palavras, da definição que damos a cada caixa. 

O problema com o pensamento conceitual é que sempre pensamos em termos dessas categorias, sempre colocando as coisas em caixas. As definições são definições pessoais ou definições do dicionário. Podemos ter palavras associadas a essas categorias, mas não necessariamente. Os animais, por exemplo, também percebem as coisas por meio de categorias. A vaca percebe "meu celeiro" e o cachorro, "meu dono" ou "comida". Eles têm essas categorias, mas não têm necessariamente palavras associadas a elas. O problema de perceber as coisas por meio de categorias - ou conforme falamos, caixas mentais - é que as coisas não existem em caixas. Categorias e palavras são apenas convenções que nos permitem compreender nossas experiências e comunicá-las a outras pessoas. Existem as convenções "amar" e "gostar", mas experimentamos todo um espectro de emoções. Todos vivenciam algo diferente, e cada vez que vivenciamos algo, é algo diferente. Categorias e palavras nos ajudam a dar sentido ao que vivenciamos.     

Distinguir e Rotular Mentalmente

O problema com a cognição conceitual é que a aparência à qual ela dá origem é a aparência de que as coisas realmente existem nessas caixas - elas realmente se encaixam nesta ou naquela caixa - e há algo por parte do objeto que o estabelece como se encaixando nesta ou naquela caixa. Isso, geralmente, é uma característica definidora encontrável.      

Se pensarmos nos cinco agregados, um dos agregados é o que se costuma chamar de "reconhecer". Prefiro o termo "distinguir". Quando percebemos as coisas em um campo dos sentidos, na visão, por exemplo, juntamos formas coloridas e percebemos objetos convencionais. Também distinguimos os objetos uns dos outros, como distinguir uma pessoa da parede, ou da almofada, e de outras pessoas ao seu redor. O agregado da "distinção" funciona o tempo todo para fazer isso; caso contrário, veríamos apenas um campo de formas coloridas ou pixels, e não objetos convencionais. Mas não vemos apenas pixels. Nós distinguimos uma coisa das demais.          

Para diferenciar uma coisa, distinguimos sua característica definidora individual – algo nesta foto, por exemplo, que nos permite dizer que sou "eu". Todo objeto validamente conhecível tem uma característica definidora convencional; caso contrário, não haveria individualidade. Assim, distinguimos alguma característica definidora convencional do "eu", na foto, que nos permite identificar corretamente a pessoa como "eu" e não como qualquer outra pessoa. 

Mas, como eu disse, quando imaginamos as coisas existindo em caixas, e sendo verdadeiramente estabelecidas como estando nessas caixas, nos parece que a característica definidora é verdadeiramente estabelecida e pode ser encontrada no objeto em si. Mas não é. Na verdade, a característica definidora é parte da caixa mental por meio da qual reconhecemos conceitualmente o objeto. Em outras palavras, assim como a caixa mental é uma convenção, a característica definidora também é.  

É difícil reconhecer o que exatamente é a característica definidora do "eu". Vamos dar um exemplo mais simples. Temos a caixa mental “amar” e a caixa mental “gostar”, e definimos, ou o dicionário define, o que é cada uma - são convenções - e então percebemos nossas emoções em termos de cada uma. 

Como estabelecemos convencionalmente o que algo é? Estabelecemos apenas em termos de um rotulo mental. O que uma coisa é? É meramente aquilo a que os conceitos e palavras se referem. Não há nada por parte do objeto que possa estabelecer que ele existe, mesmo que convencionalmente, como essa ou aquela emoção, ou como “eu” ou “você”. 

Isso não é muito fácil de entender. É algo que precisamos digerir com muito pensamento e análise.  

Um Estado Não Conceitual

Por favor, não pense que cognição não conceitual significa simplesmente parar a voz em nossas cabeças, e que se estiver silencioso, sem aquele “blá, blá, blá”, é porque alcançamos um estado não conceitual. Estar em um estado não conceitual é estar consciente de algo sem ser por meio de uma categoria ou caixa. Silenciar os pensamentos verbais da mente, portanto, é apenas o primeiro passo para chegar a um estado não conceitual. Também temos muitos conceitos não verbais: nossos preconceitos, nossos gostos e assim por diante. Todas essas coisas são não-verbais e, no entanto, tomamos consciência das coisas por meio de filtros o tempo todo. 

Tudo isso ainda é conceitual. Por exemplo, podemos tomar consciência de alguém através do filtro da caixa mental "estrangeiro". Além disso, temos todo tipo de coisa associada a essas caixas mentais, como suas características definidoras e atributos. Esse é outro insight que precisamos ter: atributos, sejam bons ou ruins, também são convenções estabelecidas pela conceituação. Sua existência não pode ser estabelecida por parte do objeto.     

Em uma linguagem bem simples, diríamos que cognição conceitual é ter uma ideia sobre o que é alguma coisa e tomar consciência dela através da ideia que temos do que ela é ou deveria ser. Por exemplo, "Tenho uma ideia do que é o amor" ou "Tenho uma ideia de quem é você". Portanto, quando o vejo, o encaixo nessa ideia (que tenho de você).           

Essas ideias são como preconceitos. Por exemplo, temos um preconceito de como alguém vai se comportar. Temos uma ideia de como essa pessoa se comportou no passado e o preconceito de que vai se encaixar nessa caixa novamente, pois acreditamos que sua maneira de se comportar é estabelecida por ela. "Você é esse tipo de pessoa". "Eu sou este tipo de pessoa." Também temos esses preconceitos em relação a nós mesmos. Eles são parte da nossa autoimagem.          

Analisando a Realidade Convencional 

Convencionalmente falando, é claro que existem padrões. Não queremos negar ou descartar totalmente a verdade convencional. Mas, uma outra maneira de traduzir "verdade convencional" do tibetano e do sânscrito, uma maneira mais literal, é "verdade superficial". Ela esconde algo mais profundo; está na superfície. 

Por exemplo, superficialmente, parece que sou uma pessoa verdadeiramente estabelecida, com uma existência sólida, sentada aqui diante de você; mas a verdade mais profunda é que não sou autoestabelecido como sendo uma pessoa. Estou apenas estabelecido como tal por conta do que os conceitos "eu" e "pessoa" se referem. Mas, não sou apenas um conceito. "Eu", "eu" ou “uma pessoa" não são apenas conceitos. Não é que, se (tivéssemos uma percepção) não conceitual, “eu” não existira ou “eu” não existiria mais como pessoa. Isso é um absurdo. Um mestre Zen nos bateria com uma vara se disséssemos isso. Claro, sou uma pessoa sentada aqui e falando com você. Não é que não existe ninguém aqui, ou que não seja eu, que seja outra pessoa. 

Como estabelecemos que sou “eu” (quem está aqui) e que sou uma pessoa? As escolas menos sofisticadas de filosofia budista, como a Sautrantika, dizem que as coisas são verdadeiramente estabelecidas, pois funcionam. E são objetivamente reais, pois estão sujeitas a causa e efeito. As categorias não são verdadeiramente estabelecidas, pois não fazem nada. Elas são o que a Sautrantika chama de "entidades metafísicas". 

Dharmarakshita era especialista em ensinar a visão Vaibhashika, embora isso não signifique necessariamente que essa era sua visão pessoal final. Os Vaibashikas dizem que até mesmo as categorias existem verdadeiramente, pois funcionam como objetos de cognição. Mas as escolas superiores dizem que não; que elas não fazem nada. Uma categoria não faz nada; mas, de acordo com a Sautrantika, objetos não estáticos, como o eu, são verdadeiramente estabelecidos, pois funcionam, produzem efeitos que podemos perceber. 

Mas o que significa quando a Madhyamaka diz que as coisas não são verdadeiramente estabelecidas? Significa que não é só porque algo parece funcionar que essa aparência corresponde à realidade. Isso porque as aparências parecem ter uma existência verdadeiramente estabelecida. Por exemplo, você aparece para mim como uma pessoa realmente irritante, e essa aparência funciona, no sentido de que me deixa realmente irritado com você. Isso não demonstra que você realmente exista como uma pessoa irritante, certo? Mas funciona, pois na minha experiência é assim que aparece’. Isso é o que a Madhyamaka refuta.     

Quando dizemos que “não existe um eu verdadeiro”, estamos dizendo que o que nos parece verdadeiramente estabelecido por parte do objeto - neste caso, “eu” - não é verdadeiramente estabelecido. Não há nada encontrável por parte do objeto que possa estabelecer sua existência como um "eu" ou um "você", ou um "isto" ou um "aquilo". É apenas através da rotulagem mental com conceitos e designação com palavras que podemos estabelecer que algo é convencionalmente "isto" ou "aquilo".     

Por exemplo, rotulamos mentalmente "eu" em todas essas fotografias. As fotografias são a base para rotularmos a categoria "eu". Mas, a palavra "eu" designada nessa categoria se refere a algo. Refere-se a "mim"; não se refere a "você" e não se refere a “ninguém”. Refere-se a "mim"; mas não corresponde a algo para o qual podemos realmente apontar nas fotos – isso é o que está ausente – e dizer: "Aí está, 'eu'". Lembre-se, a cognição conceitual dá a impressão de que as coisas realmente existem em caixas mentais. O conceito "eu" refere-se ao "eu" convencionalmente existente, mas não corresponde a um "eu" verdadeiramente existente.           

Há outra palavra em tibetano, "mig-ten" (dmigs-rten), que significa "escora": algo, no objeto, que está escorando outra coisa. Não existe nada no "eu" convencional, não existe algo como um "eu" verdadeiramente existente, sustentando-o ou escorando-o, não há nada nele que corresponda à categoria ou à palavra "eu". Mas, a categoria e a palavra "eu" referem-se a algo. Precisamos fazer essa distinção entre aquilo a que categorias e palavras convencionalmente se referem e algo que realmente corresponde a um objeto verdadeiramente existente, como parece ser o caso das coisas que parecem realmente se encaixar em caixas mentais. 

Além disso, a rotulagem mental pode ser precisa ou imprecisa, dependendo das convenções normalmente aceitas e da cognição válida. Se eu colocasse tudo na categoria “borrão”, por ter tirado meus óculos e isso ser tudo o que vejo, outras pessoas não concordariam que você e eu somos borrões. Existem vários critérios por parte da mente que estabelecem se a verdade convencional sobre o que as coisas são é convencionalmente precisa ou imprecisa. Precisa haver algum tipo de acordo, uma convenção. 

Vacuidade, portanto, é a ausência de algo encontrável por parte do objeto, algo que estabeleça ou prove que ele existe convencionalmente como o aquilo que convencionalmente é. Pare um momento para pensar sobre isso. Este tópico é bastante profundo.    

Meditação Guiada

Um exemplo fácil pode ser nossas emoções, as caixas mentais em que as inserimos e como elas, na verdade, são convenções, como a diferença entre gostar de alguém e amar alguém. Existe realmente uma linha sólida e estabelecida nos nossos sentimentos separando as duas, e agora o que sentimos cruzou essa linha e está em uma caixa diferente? Ou essas caixas e o limite entre elas são apenas criações mentais? 

[pausa] 

Há uma convenção geral sobre o que é o amor - existem todas essas músicas sobre “eu te amo” e essas coisas. Mas embora o amor verdadeiro não exista em algum lugar no céu, ainda assim, sentimos algo. Essa é a questão. Nós realmente sentimos algo - amor. Não é que não sentimos nada.      

[pausa]

Como Identificar o Alvo

Identificar o objeto a ser refutado é essencial, especialmente porque o texto diz que reconhecemos nosso verdadeiro inimigo. Para refutar algo, ou como se diz, para atirar uma flecha em um alvo, temos que ver o alvo. Para refutar o falso “eu”, precisamos conseguir reconhecê-lo e identificá-lo em nossa própria experiência.   

Como o reconhecemos? Como o identificamos? Começamos estudando e trabalhando através dos chamados sistemas de princípios inferiores das diferentes posições filosóficas budistas. Esses sistemas budistas refutam a afirmação de que o que sentimos é esse “eu” - um “eu” que é permanente, no sentido de ser estático, de não ser afetado por nada e nunca mudar. Eles refutam a afirmação de que o "eu" é algo sólido, sem partes e imutável, capaz de existir independentemente de um corpo e uma mente. Eles refutam especificamente a afirmação de que, na liberação, ou moksha, o “eu” pode se livrar dos renascimentos e ainda assim existir solidamente em algum lugar, independente de um corpo ou de uma mente. O “eu” é, na verdade, uma imputação em constante mutação sobre uma base em constante mutação, que é um corpo, mente, emoções e assim por diante.     

O Todo e Suas Partes

Acho que será mais fácil de entender o tipo de fenômeno ao qual o “eu” pertence - uma imputação em uma base - se voltarmos ao exemplo de um todo e suas partes. Um todo é uma imputação nas partes. Se distinguirmos entre aquilo que nos sistemas inferiores são chamados de “entidades objetivas” e as “entidades metafísicas”, um todo e suas partes são objetivamente reais a partir desse ponto de vista. Eles não são entidades metafísicas não funcionais, como são as categorias. Tanto o todo como as partes funcionam. 

No caso do "eu", as partes são o corpo, as emoções, o que percebemos, nossa compreensão, a atenção que prestamos às coisas – tudo isso são partes do "eu" como um todo, e tanto as partes como o “eu” (como um todo) são objetivamente reais e funcionam. Podemos usar a carruagem de Chandrakirti ou, nos tempos modernos, um carro, como um exemplo mais claro de algo que muda o tempo todo e funciona. O carro é uma imputação nas peças, as peças são sua base de imputação; e assim como as peças funcionam e se movimentam, o mesmo acontece com o carro. O mesmo é verdade para o “eu”, como um todo, e as partes nas quais ele é imputado. 

Nosso corpo está mudando o tempo todo; nada permanece igual em toda a nossa vida. Se as partes estão mudando, como pode o todo, o "eu", ser algo estático e que não muda? Isso não faz sentido. Se o todo tem como base as partes, não podemos dizer que o todo não tem partes, pois ele depende das partes. Da mesma forma, não podemos dizer que o todo pode existir separado das partes. 

Além disso, o "eu" está mudando o tempo todo, pois é uma imputação sobre o corpo, e este está mudando o tempo todo: sensações, emoções e percepções que estão mudando o tempo todo - tudo, todas essas partes estão mudando o tempo todo. Até mesmo convencionalmente, falamos da minha vida familiar, minha vida profissional e minha vida esportiva ou recreativa. Existem partes em nossa personalidade, também dizemos isso. Não é que sejamos uma entidade sólida que nunca muda - "eu". Todos esses anos de fotos de "mim" mostram que não somos sólidos.     

Apego a um Eu Impossível com Base na Doutrina

Esse é o primeiro nível que precisamos refutar do “eu”. O primeiro nível é a crença baseada na doutrina de que existe uma alma, conforme é afirmado nas escolas indianas não budistas. Eles afirmam a existência de uma alma, um atman, que é o "eu", que nunca muda, não tem partes e, com a liberação, irá para moksha, para a liberação, livre de um corpo e de uma mente. Essa afirmação é baseada numa doutrina. Temos que aprender e acreditar nisso. Um cachorro ou um bebê não pensariam assim. Com base na crença de que é assim que realmente existimos, poderíamos imaginar que é esse "eu" que vivencia o sofrimento e as causas do sofrimento, esse "eu" que pode ser liberado e que tem que obter uma compreensão. Quando acreditamos que essa alma é o "eu" e que é assim que existimos, desenvolvemos emoções perturbadoras, para tentar proteger ou afirmar esse "eu". Desta forma, desenvolvemos o que chamamos de “emoções baseadas na doutrina” e problemas. Acreditar que existimos dessa forma, com base numa doutrina, é a primeira crença errônea de que precisamos nos livrar.         

O Apego Automático a um “Eu” Impossível

Também temos as emoções e atitudes perturbadoras que surgem automaticamente. Nós as desenvolvemos porque nossas mentes automaticamente dão origem à aparência enganosa de um "eu" que pode ser conhecido separadamente de suas partes, separadamente de sua base de imputação. Isso surge automaticamente e acreditamos que corresponde à forma como realmente existimos. Ninguém teve que nos ensinar isso. Por exemplo, tentamos nos conhecer.  Como nos conhecer? Só podemos nos conhecer conhecendo alguma coisa sobre nós mesmos. Não há como conhecer o “eu”, por si só.     

O exemplo que uso é o pensamento “Quero que as pessoas me amem pelo que sou, não pelo meu corpo, nem pela minha mente, nem pelo meu dinheiro, nem por nada assim. Me ame apenas por 'mim'”. É como se esse “eu” pudesse ser amado separadamente de tudo o mais. Essa é uma crença que surge automaticamente - é assim que aparecemos para nós mesmos. Parece haver um "eu" sólido, que pode ser conhecido por si só. Com base nessa inconsciência ou ignorância automática do fato de que não existe tal coisa, automaticamente surge um desejo e, com base nele, agimos de maneiras destrutivas. Esse (“eu”) também deve ser refutado.         

Trabalhando com a Vacuidade: Descascando a Cebola

Quando trabalhamos com a vacuidade, queremos descascar a cebola para níveis cada vez mais sutis de aparências enganosas de que existimos nessas formas falsas, ou mais precisamente, de que nossa existência se estabelece dessas formas impossíveis. Como a mente não sabe - e isso é ignorância -, e por causa de nosso hábito sem princípio de nos apegar à uma existência impossível, nossas mentes fazem com que pareçamos existir dessas maneiras falsas. 

Quando falamos em "mente", no budismo, estamos falando de atividade mental. A atividade mental é o surgimento de hologramas mentais e a simultânea cognição deles. Mesmo do ponto de vista ocidental, é assim. Os raios de luz entram nos olhos e são transmitidos como impulsos elétricos e químicos para várias partes do cérebro. Portanto, o que percebemos é basicamente um holograma mental. Isso é o que significa ver algo ou saber algo. O holograma mental que aparece não é apenas daquilo que algo parece ser, convencional ou superficialmente, mas também daquilo que o estabelece como sendo isso, como existindo assim. 

Quando pensamos em nós mesmos, não é que haja um "eu" permanente, imutável, sem partes, existindo de forma independente e que pode ser conhecido por si mesmo, como um holograma mental do "eu". Pense em você. Pense no seu “eu”. Como você pensa sobre si mesmo? 

Mesmo que só pensemos "eu", há o som mental da palavra "eu". Não conseguimos pensar em “eu” sem que haja uma base, como esse som mental, conseguimos? Ou pensamos em nosso corpo, em nossa personalidade, em alguma coisa. Não é necessário que uma imagem mental de nosso corpo apareça, mas aparecerá o som mental da palavra “eu”, ou algum tipo de sensação, se não pensarmos verbalmente. Existe uma sensação de "eu".     

No nível mais grosseiro, achamos que existe um “eu” sólido, independente de um corpo e de uma mente, e que esse “eu” não é apenas uma imputação no corpo e na mente. Em um nível mais profundo, pensamos que o "eu" pode ser conhecido por si mesmo. Em um nível ainda mais profundo, imaginamos que o “eu” é “auto estabelecido”, o que significa que teria uma natureza auto estabelecida ou uma característica definidora que o sustenta e o torna “eu”. Desenvolvemos diferentes níveis de emoções perturbadoras e comportamentos compulsivos com base na crença em cada um desses níveis de um "eu" impossível.     

O Exemplo de um Telefone Celular Tocando

[Um celular toca.] 

Acabamos de ser interrompidos pelo som de um celular tocando, e isso é um bom exemplo. Convencionalmente, em que caixa colocamos o que ouvimos? Podemos colocar na caixa mental “aborrecimento” ou “obstáculo” e, com base nisso, sentiremos uma emoção. Temos o conceito do que é um obstáculo e desenvolvemos uma emoção com base nisso. Mas poderíamos colocar apenas na caixa "música", só isso, sem nenhum julgamento ou "som". Ou é um "exemplo" e colocamos na caixa "exemplo", um exemplo do que estamos falando.   

Podemos transformar uma circunstância potencialmente negativa em positiva colocando-a em uma caixa diferente. Isso é treinamento mental, treinamento de atitude, no sentido de que mudamos nossa atitude a respeito de como percebemos as coisas, embora saibamos que as coisas não se encaixam inerentemente em uma caixa ou não existem realmente em uma caixa. Dependendo da definição que damos à caixa, desenvolvemos uma emoção diferente. “Que maravilhoso o telefone ter tocado” ou “Que horrível e irritante o telefone ter tocado”; tudo depende da caixa em que colocamos o som e de como definimos essa caixa ou categoria - não é? 

É a mesma coisa no que diz respeito ao "eu". Em que tipo de caixa colocamos o “eu” e como o definimos? Que qualidades atribuímos a ele, tipo "Sou sempre assim, não importa o que aconteça, sou assim". Não é que eu tenha partes, eu sou algo sólido: "Tudo a meu respeito é ruim" ou "Tudo a meu respeito é maravilhoso." Esse sou “eu”, “Estou tentando me encontrar, ser eu mesmo, e você está me impedindo. É por isso que fico com raiva de você”. Ou, "Se eu tivesse você por perto o tempo todo, isso me deixaria seguro e estabeleceria que existo". Com base nisso tudo, agimos destrutivamente e entramos em situações em que outros agem destrutivamente conosco. Tudo isso nos impede de ajudar os outros.     

É disso que estamos falando, quando tentamos identificar o inimigo que está causando todos os nossos problemas. É essa crença de que existimos na forma desse eu impossível, que isso é realmente eu, verdadeiramente "eu" - verdadeiramente um "eu" que nunca muda, que não tem partes, que é sólido, monolítico, existe de maneira independente de tudo mais, pode ser conhecido por si só e se auto estabelece, independentemente daquilo a que o conceito "eu" se refere.    

Por exemplo, da maneira como lhe vejo, você é muito desagradável; ou com amor romântico, você é muito linda, muito maravilhosa. “Se eu me casar com você, todos os meus problemas acabarão. Serei a pessoa mais feliz do mundo se você disser que vai se casar comigo." Existem níveis cada vez mais sutis do que é impossível.   

Pegando o Inimigo

Dharmarakshita continua:

(49) É assim mesmo! Peguei o inimigo! Eu peguei o bandido, o ladrão que me emboscou e me enganou, a fraude que, disfarçada de "eu", me enganou! Aha! Isso é apegar-se a um "verdadeiro eu!" Não há dúvidas!

Em certo sentido, Dharmarakshita está dizendo que é esse fantasma que parece ser realmente “eu” que causa nossos problemas, quando tentamos afirmar, proteger e defender essa fraude. Mas isso não significa que não façamos nada na vida; fazemos. Temos um bom termo em inglês, “inseguro” (ing. self-conscious), e talvez em norueguês seja o mesmo. Não seja tão hesitante; apenas aja, sem "eu, eu", sem se preocupar com o que as outras pessoas vão pensar e essas coisas. Precisamos ser atenciosos, mas não obcecados pelo "eu" e pelo que os outros vão pensar de "mim".   

“Todo mundo está olhando para mim”, por exemplo, pensa o adolescente com acne, que imagina que todo mundo está olhando para o seu rosto com nojo de suas espinhas. As pessoas não se importam. Elas são obcecadas por elas mesmas e não pela acne de outra pessoa! Por que achamos que somos tão importantes a ponto de todos ficarem olhando para nós? Não somos tão importantes, mas achamos que somos, por causa dessa fraude, desse “eu”: “Eu sou importante e deveria ser o centro das atenções. As pessoas devem ‘me’ ouvir e fazer o que 'eu' digo.” Precisamos aplicar oponentes para destruir esse inimigo.     

Destruindo o Inimigo

(50) Agora, (Yamantaka,) levante sobre sua cabeça a arma afiada de suas ações! Energicamente faça um círculo três vezes em volta da sua cabeça! Plante seus dois pés separados para as duas verdades! Resplandeça com os olhos bem abertos para o método e a sabedoria! Mostre suas presas para as quatro forças e perfure o inimigo!

Esse verso está repleto de termos para os quais precisamos de referências: 

Faça um círculo três vezes, com a compreensão correta da verdade convencional, da verdade mais profunda e das duas verdades simultaneamente. Isso não é fácil de entender.       

  • A verdade convencional de alguma coisa é como ela aparece. Aparece de forma enganosa, como se fosse verdadeiramente estabelecida. A verdade convencional é enganosa; mas ela pode ser precisa ou imprecisa. Isso não significa que tudo é impreciso.      
  • A verdade mais profunda é que isso não existe da maneira que parece existir.   
  • Quando focamos na ausência de alguma "coisa" encontrável que corresponda à aparência enganosa, não há como simultaneamente esse objeto aparecer de forma enganosa. Não há como algo aparecer de forma enganosa e ao mesmo tempo haver uma ausência dele aparecendo de forma enganosa. Ele não pode aparecer e não aparecer simultaneamente. Quando um Buda vê as duas verdades simultaneamente, ele vê a vacuidade das duas verdades de forma não conceitual e explícita simultaneamente. Um Buda não tem a cognição das aparências enganosas da verdade convencional; ao invés disso, ao mesmo tempo em que tem a cognição da vacuidade das duas verdades, um Buda simultaneamente tem a cognição do que na tradição Gelug se chama de "meras convencionalidades". Isso se refere à onisciência de um buda, com a qual ele ou ela tem a cognição da interdependência e do surgimento dependente de todos os fenômenos simultaneamente.               

O que significa que o Buda é onisciente? O que se segue é apenas meu próprio entendimento e pode não estar correto. Temos algumas analogias que podem ser úteis para entender a onisciência. O exemplo mais simples, como disse Richard Feynman, é considerar que nesta sala estão presentes as frequências eletromagnéticas de todas as estações de rádio, sites, chamadas telefônicas e mensagens que já existiram. Tudo isso está aqui, presente nesta sala e, dependendo do dispositivo que temos - nossa mente limitada e assim por diante - podemos fazer com que algumas dessas coisas apareçam em nossa tela. Podemos fazer aparecer uma mensagem, um site, um programa de TV, um programa de rádio, etc. em nossa tela. Quando aparecer, vai parecer que é a única coisa que está acontecendo e que está realmente estabelecida lá, independente de partes ou de todas as pessoas que fizeram o site, ou qualquer coisa assim. Apenas - "tcharam!" - aí está, auto estabelecido. Essa é a nossa percepção limitada, ou consciência limitada. Com ela, percebemos uma aparência enganosa convencionalmente verdadeira. Um Buda possui hardware ilimitado e percebe todas as frequências eletromagnéticas simultaneamente. 

A outra analogia ou imagem é a de que nossas mentes limitadas colapsam um campo quântico em uma coisa aparentemente concreta, mas a onisciência de um Buda não colapsa o campo. Um Buda está ciente de tudo - todos os estados quânticos - simultaneamente, e não colapsa (nada) porque essa não é a realidade das coisas. Não é que haja apenas um site, ou uma mensagem, ou uma chamada telefônica, ou um estado quântico acontecendo neste momento.         

Se essas duas analogias descrevem com precisão a mente onisciente de um Buda e uma mente limitada, eu não sei. Mas, pelo menos para mim, acho que são imagens úteis.  

Portanto, quando você entrar em uma situação, não a colapse de acordo com o seu preconceito sobre o que está acontecendo. Tente obter todas as informações. É como na terapia familiar, a forma como a criança, a mãe ou o pai percebem o problema familiar são todas válidas. Temos que levar tudo em consideração. Não é só o ponto de vista do pai. Embora para o pai pareça ser assim, para a mãe é algo completamente diferente. E claro que para a criança também é completamente diferente.   

Há um problema na família? Sim, há um problema na família. Onde está o problema? Está em alguma das partes? Está na criança? Está na mãe? Está na interação? Onde está a interação? Está em cada momento da interação ou em algumas partes? Não conseguimos localizar a característica definidora do problema. Então, onde está o problema? O problema existe; não é que não exista um problema. Tentamos perceber quais fatores afetam a situação e o que podemos fazer nas relações de causa e efeito para alterar os fatores. Não há nada sólido. Não há nada por parte da família que a estabeleça como sendo uma família problemática. 

Temos a categoria "problema". Como a definimos? Essa característica definidora existe na situação familiar? A situação deve ter essa característica definidora, caso contrário, caberia na categoria "não problema". Nós distinguimos em qual caixa colocamos, “problema” ou “não problema”, com base na rotulagem mental. Temos a categoria "problema" com sua definição que vem do dicionário ou de algum livro didático. Cada cultura define de uma maneira diferente e cada psicólogo define de uma maneira diferente. Portanto, a categoria não tem uma definição definida, e mesmo a definição é uma convenção. 

Conseguimos encontrar a característica definidora de “problema” no objeto? Se sim, onde? Podemos olhar para a situação, e com base em alguma característica definidora, a distinguir de outras situações, embora não consigamos localizar essa característica definidora em nenhum ponto específico. O agregado da distinção está funcionando aqui, mas o que distinguimos como a característica definidora é, novamente, estabelecido por convenção. O problema não está na família, com o poder por si só de estabelecer a família como tendo um problema. 

Recapitulando, circule três vezes, representa a compreensão correta da verdade convencional, ou seja, que as coisas parecem ser aquilo que convencionalmente são aceitas como sendo, mas que o fato de que parecem estar verdadeiramente estabelecidas por si só é enganoso. A compreensão correta da verdade mais profunda é a compreensão de que há uma ausência total, um vazio, de algo que realmente corresponda à maneira como a existência de objetos convencionalmente verdadeiros parece estar estabelecida. Portanto, a compreensão correta da verdade convencional e da verdade mais profunda simultaneamente é a compreensão de que, apesar do fato de que objetos convencionalmente verdadeiros parecem existir de uma maneira impossível, e embora essa aparência não corresponda à sua realidade, tudo surge na dependência de causa e efeito, partes, rotulagem mental e funções.            

O problema é que, quando focamos na vacuidade, surge uma ausência. Por exemplo, podemos ter a ausência da maçã na mesa. Não há nada aparecendo, mas sabemos o que é. É a ausência da maçã. Da mesma forma, quando focamos na ausência de uma existência verdadeiramente estabelecida, nada aparece, mas sabemos que é a ausência de uma existência verdadeiramente estabelecida. Nada aparece, portanto, quando focamos de forma não conceitual na vacuidade, não há nenhuma aparência de maçã ou de “eu” ou de sua base - suas partes, ou meu corpo, ou meu nome. 

Nossa compreensão subsequente, quando saímos de nossa absorção meditativa não conceitual sobre essa vacuidade, é que, embora as coisas convencionais continuem a parecer verdadeiramente estabelecidas, sabemos implicitamente que elas não existem dessa forma. Durante essa fase de realização subsequente de nossa meditação, a cognição da vacuidade é apenas implícita, o que significa que a ausência não aparece ao mesmo tempo em que aparecem os objetos verdadeiramente estabelecidos e convencionalmente verdadeiros. Esse é o problema. Queremos poder perceber ao mesmo tempo a aparência de um objeto convencional e a ausência de suas formas impossíveis de existir; mas para que isso aconteça, a aparência não pode ser de um objeto convencionalmente verdadeiro, uma vez que ele pareceria estar verdadeiramente estabelecido. Precisamos perceber a aparência das meras convencionalidades que surgem meramente de maneira dependente.           

Por exemplo, tudo o que está nesta sala não está envolto em plástico. Não é que cada website e cada chamada telefônica estejam envoltos em plástico e separados de todo o resto. Não é assim; está tudo presente sem a aparência de estar encapsulado em plástico. Esse é o nosso entendimento correto das duas verdades simultaneamente, ou algo parecido. 

Olhos bem abertos para o método e a sabedoria. Como método, temos a bodhichita convencional, que está associada à aparência ou verdade convencional. Temos a aparência de todos os seres, e todos parecem ser verdadeiramente estabelecidos. Queremos conseguir atingir a iluminação para ajudá-los, então precisamos da bodhichita convencional. A bodhichita mais profunda está associada à verdade mais profunda, de que todos são destituídos de serem estabelecidos como existindo da maneira como parecem existir. Nossos olhos precisam estar bem abertos para essa sabedoria. Dois pés referem-se às duas verdades. 

As quatro presas costumam ser explicadas nos textos de treinamento mental como as quatro forças de purificação. Temos isso na prática de Vajrasattva. Temos o arrependimento, onde admitimos abertamente que o que fizemos foi um erro. É importante admitir que foi um erro, mas não que foi concretamente "ruim" e "Eu sou mau!" Lamentamos ter feito isso por ignorância, ou termos sido esmagados por nossos hábitos - "Eu não estava pensando." Portanto, em vez de nos sentirmos culpados, lamentamos ter agido dessa forma. Realmente desejamos não ter agido dessa forma ou falado o que falamos. Em seguida, prometemos fazer o possível para não repetir o erro e, então, reafirmamos nossa direção segura e bodhichita. O que estamos tentando fazer com nossa vida é seguir a direção significativa indicada pelo Buda, o Dharma e a Sangha. Estamos tentando atingir a iluminação e ajudar a todos os seres. Reafirmamos isso e então aplicamos uma força opositora, sendo que a mais profunda é a compreensão da vacuidade.  

As Quatro Maras 

No próprio ensinamento de Yamantaka, as quatro presas de Yamantaka devem perfurar as quatro maras, muitas vezes chamadas de forças demoníacas. A palavra sânscrita "mara” vem da palavra para morte. As quatro maras são a morte, as emoções perturbadoras, os agregados e o filho dos deuses - que se refere às visões incorretas. Essas são as quatro coisas que realmente geram obstáculos. As Maras, quando personificadas como demônios, são o que causam esses obstáculos.    

Se você pensar bem, a morte é terrível. Passamos toda a nossa vida praticando e, quando finalmente obtemos um pouco de compreensão, morremos e temos que começar tudo de novo, desde que renasçamos com uma vida humana preciosa. Talvez tenhamos algum instinto que torne isso um pouco mais fácil; mas temos que ser um bebê de novo, temos que aprender a ir ao banheiro de novo, ir para a escola de novo, todas essas coisas – Uma chatice! Esse é o grande obstáculo da morte.   

E há as emoções perturbadoras, que já discutimos. Como podemos ajudar alguém se queremos apenas levá-lo para a cama conosco ou estamos com raiva porque ele não ouviu o que dissemos ou o ignoramos porque estamos muito ocupados? Essas coisas são emoções perturbadoras. 

A próxima mara são os agregados: estou doente, estou velho, estou resfriado, não posso ajudá-lo agora. Os obstáculos são essas coisas. O filho dos deuses refere-se às visões erradas; deuses referem-se às divindades não budistas que representam as visões não budistas. Não é que essas visões sejam totalmente inúteis, mas elas não conduzem à verdadeira liberação e iluminação. Isso é enfatizado nos ensinamentos sobre os dezesseis aspectos das quatro nobres verdades. Por exemplo, existe o perigo de darmos muita ênfase a shamata, que também é praticada nos ensinamentos não budistas, e não nos contentarmos em apenas atingir shamata, querermos ir além nessa direção e atingir estados ainda mais profundos de estabilidade mental, os dhyanas. Podemos, então, confundir esses estados cada vez mais elevados de concentração com a liberação, pois, enquanto absorvidos neles, temos cada vez menos sentimentos samsáricos. Mas esses estados são apenas temporários. Os sentimentos samsáricos retornam quando estamos fora desses estados. Além disso, podemos ficar muito apegados a eles. A concentração por si só não gera um verdadeiro cessar das barreiras à liberação. Acreditar que gera é um grande obstáculo. Somente a cognição não conceitual da vacuidade pode nos levar a obter as verdadeiras cessações. 

Com a cognição não conceitual da vacuidade, nos livramos de todas as emoções perturbadoras - tanto as baseadas na doutrina quanto as que surgem automaticamente - e alcançamos a verdadeira cessação delas. Ambas contêm dois conjuntos de emoções perturbadoras.  

  • O primeiro conjunto de emoções perturbadoras são as associadas ao plano dos desejos sensoriais, onde estamos apegados aos outros, ao dinheiro, ao nosso telefone, e ficamos incomodados com o trânsito e todas essas outras coisas. Com elas vêm as emoções perturbadoras associadas ao “eu” que está experimentando todas essas emoções em relação aos objetos sensoriais.  
  • O segundo conjunto são as emoções perturbadoras associadas aos planos superiores da existência samsárica, onde nossas mentes são absorvidas nesses dhyanas e além. Quando estamos nesses estados de profunda concentração, podemos ficar excessivamente fascinados por eles. Ficamos muito apegados a eles e não queremos deixá-los. Então, focando no “eu” que experimenta esses estados, desenvolvemos emoções perturbadoras, como “não me interrompa”, esse tipo de coisa. Nos apegamos a esse “eu” absorvido nesses estados de transe como sendo liberado, onde “agora não sinto nada” ou “agora sinto apenas felicidade” ou “minha mente está muito aguçada; é fantástico. "  

A visão equivocada é pensar que esses estados de maior concentração são a liberação. Eles podem ser úteis; ninguém está dizendo que não. Mas tome cuidado e não fique obcecado em obter concentração perfeita, pensando que esse é o objetivo final.    

O Poder do Mantra

Dharmarakshita continua:

(51) Ó Rei dos Mantras de Pura Consciência que atormenta o inimigo, acabe com o destruidor de nossos laços espirituais, o que traz à ruína a nós e aos outros - ao cruel selvagem chamado "O Demônio do Apego a um 'Eu Verdadeiro'", que faz com que sejamos atingidos pelas afiadas armas do carma, que nos faz correr sem controle pela selva do samsara.

Mantras de pura consciência, de acordo com a definição, são aqueles que nos mantêm atentos à consciência discriminativa, ou sabedoria, como o mantra prajnaparamita, "Gate gate paragate parasamgate bodhi svaha". O velho Serkong Rinpoche, meu antigo professor, costumava dizer que as três coisas mais poderosas do universo são: o poder da medicina, o poder da tecnologia e o poder dos mantras. A medicina pode nos livrar das doenças, a tecnologia pode nos ajudar a nos livrar dos tipos comuns de sofrimento, mas nunca entendi direito por que ele incluía os mantras. Achei que talvez tivesse algo a ver com o trabalho com as energias sutis, algo assim. Mas seu tulku, a reencarnação de Serkong Rinpoche, me explicou. Ele me disse para ler os versos do Sutra do Coração, que dizem:

Assim sendo, a consciência discriminativa de longo alcance (perfeição da sabedoria) é o grande mantra de proteção da mente, o mantra de proteção da mente de grande conhecimento, o mantra de proteção da mente que é insuperável, o mantra de proteção da mente igual ao inigualável, o mantra de proteção da mente que nos livra totalmente do sofrimento. Por não ser enganoso, deve ser conhecido como a verdade. Na consciência discriminativa de longo alcance, o mantra de proteção da mente foi proclamado, 'Tadyatha, (om) gate gate paragate parasamgate bodhi svaha. A natureza real: que foi, que foi, que foi além, que foi muito além, estado purificado, assim seja.' Ó Shariputra, um bodhisatva mahasatva cuja mente é grandiosa precisa treinar assim (para se comportar) de acordo com a consciência discriminativa profunda e de longo alcance.

Este mantra, prajnaparamita, é para os estágios de compreensão da vacuidade dos cinco caminhos até a liberação e iluminação. Essa é a referência para o mantra ser uma das três coisas mais poderosas do universo. Este mantra se refere a uma compreensão e familiaridade cada vez mais profundas com o vazio. Isso é o que há de mais poderoso. O mantra da consciência pura nos mantém atentos a isso, a essa consciência pura ou consciência discriminativa.             

Usando Formas Enérgicas de Consciência Discriminativa 

 Dharmarakshita continua:

(52) Atraia-o! Atraia-o! Yamantaka Enérgico! Bata nele! Bata nele! Fure o inimigo, o “eu verdadeiro”, bem no coração! Caia, caia com tudo, bem na cabeça (deste) conceito ruinoso! Dê o golpe mortal no coração deste açougueiro, o “eu verdadeiro”, nosso inimigo.

O que queremos é ser enérgicos em nossa aplicação da consciência discriminativa da vacuidade. Precisamos ser enérgicos quando nos sentimos egoístas, e pensamos, por exemplo: “Eu quero isso para mim; não quero compartilhar isso com você." "Quero passar na frente da fila e ser o primeiro." Agimos de forma muito egoísta e isso está profundamente enraizado em nós. É uma via neural muito forte. Em todas as nossas vidas fizemos isso; portanto, temos que ser enérgicos conosco.   

(53) Hum! Hum! Produza emanações miraculosas, ó grande figura búdica! Dzah! Dzah! Amarre esse inimigo com força! Phat! Phat! Liberte-nos, eu te imploro, de todos os nossos grilhões! Slash! Slash! Suplico-te, corta o nó do nosso apego!

Essas sílabas duplas, “hum hum” “dzah dzah” e assim por diante, são um estilo tibetano forte de escrita para expressar ênfase. Queremos que Yamantaka apareça de várias formas. Yamantaka é uma forma enérgica de consciência discriminativa. No entanto, não é como se ele fosse uma coisa sólida, congelada em uma forma; existem diferentes emanações em diferentes situações. Isso significa que queremos que nosso entendimento se manifeste de diferentes maneiras em diferentes circunstâncias, para que possamos aplicar os ensinamentos, a compreensão e os métodos aos vários problemas que podem surgir, e lidar com eles com flexibilidade e habilidade.      

(54) Venha aqui, feroz Yamantaka, figura búdica! Explosão de orações, agora mesmo - pow! pow! - este saco de carma e cinco emoções perturbadoras venenosas, que nos mantém presos no pântano dos atos samsáricos.

Acho que essas frases enérgicas ajudam a aumentar nossa energia. Existem muitos versos enumerando os problemas que nosso autocentramento e auto apego nos causam, e evocando Yamantaka, a compreensão da vacuidade, para destruí-los. Mais uma vez, precisamos tentar ver esses versos como tópicos de meditação. O que queremos perceber, trabalhando com esses versos, é como nosso apego a um eu verdadeiramente estabelecido causa esses problemas. Em outras palavras, precisamos examinar nossa crença de que existimos como uma entidade sólida e auto estabelecida, e identificar o autocentramento que vem disso: “Eu sou tão importante - esse 'eu' é tão importante, que as coisas sempre devem ser como ele quer".  “Todo mundo deveria gostar de 'mim'” e assim por diante. Perceba como isso causa problemas.          

Utilizando Versos para Meditar sobre as Desvantagens do Auto Apego 

Vamos tentar meditar em um ou dois desses versos. Esta é uma meditação sobre as desvantagens do apego a um verdadeiro eu e do auto apego.                          

(56) Nosso desejo de felicidade é enorme, mas não conseguimos construir uma rede de causas para ela. Nossa tolerância à infelicidade é pequena, mas nossos desejos ambiciosos e ganância são grandes. Caia, caia com tudo, bem na cabeça (deste) conceito ruinoso! Dê o golpe mortal no coração deste açougueiro, o “eu verdadeiro”, nosso inimigo.

Pense nisso: "Eu quero ser feliz!" Isso é extremamente motivador. Queremos ser felizes, mas não queremos nos empenhar nas causas para isso. Por quê? Porque estamos pensando em “eu, eu, eu” e agindo de todas as maneiras que não vão trazer felicidade, por causa do egoísmo. Na verdade, estamos bloqueando nossa própria felicidade. O problema é o apego ao "eu", e o autocentramento que ele acarreta. 

Nossa tolerância à infelicidade é pequena - não queremos trabalhar - mas nossos desejos ambiciosos e ganância são grandes. Queremos muito, mas não estamos dispostos a trabalhar duro. É “eu, eu, eu”: “Eu sou tão especial, quero obter as coisas com facilidade. Eu quero obter que as coisas sem fazer esforço. " Isso é auto apego, autocentramento.   

Isso é o que realmente ajuda. Como diz Dharmarakshita, e como Geshe Chekawa repete: “Coloque toda a culpa em uma coisa, o autocentramento.” Esse conselho é muito útil quando nos sentimos infelizes. Sempre que estiver infeliz, pense: "E daí se estou infeliz." Nós simplesmente continuamos o que temos que fazer. “Não estou com vontade de trabalhar”, trabalhe assim mesmo. Sabemos que é por causa do autocentramento, do auto apego que estamos infelizes. "Eu não quero ir trabalhar" - eu - "Eu quero ficar na cama." " Eu quero olhar o celular, porque eu posso estar perdendo alguma coisa." "Eu não quero sentar aqui na mesa e trabalhar." Até mesmo no nível "pobre de mim" - essa é uma causa clássica de infelicidade, não é? "Pobre de mim, estou sozinho, estou infeliz." "Pobre de mim, não estou com vontade de fazer nada."         

"Eu, eu, eu" - esse é o verdadeiro inimigo. Pare de ser tão obcecado por "eu" e pelo que "eu" sinto. Em termos de causa e efeito, simplesmente faça o que precisa ser feito e não faça de qualquer coisa uma grande coisa. Vamos contemplar este verso: 

(56) Nosso desejo de felicidade é enorme, mas não conseguimos construir uma rede de causas para ela. Nossa tolerância à infelicidade é pequena, mas nossos desejos ambiciosos e ganância são grandes. Caia, caia com tudo, bem na cabeça (deste) conceito ruinoso! Dê o golpe mortal no coração deste açougueiro, o “eu verdadeiro”, nosso inimigo.

Caia, realmente caia, bem na cabeça deste conceito ruinoso. Isso se refere ao conceito, à categoria "eu, eu, eu". Dê o golpe mortal no coração deste açougueiro, o eu verdadeiro, nosso inimigo. 

[pausa]      

Perguntas e Comentários

Que perguntas ou comentários vocês têm?

Ingenuidade 

Você usa a palavra "ingenuidade" em vez de ignorância. Poderia comentar um pouco sobre isso?

Uso a palavra "ingenuidade" porque acho que transmite um pouco mais o sabor (do termo original). Existem dois termos em tibetano. Existe "ma rigpa”ma-rig-pa ) ou "avidya" em sânscrito - que geralmente é traduzido como "ignorância" e para ele eu uso "inconsciência" ou “falta de consciência”. É quando simplesmente não sabemos, não temos consciência; "Unwissenheit" em alemão funciona muito melhor. Ou não sabemos ou sabemos de alguma forma incorreta ou invertida. Essa é a definição. Geralmente pego as palavras e definições da literatura abhidharma. A ingenuidade é uma subcategoria dessa inconsciência. A palavra é “timug” ( gti-mug ) em tibetano ou “moha” em sânscrito. Para esse termo, uso a palavra "ingenuidade". Uma definição desse termo é a ignorância ou inconsciência em relação ao comportamento destrutivo. Outra definição é um tipo de inconsciência que é dirigida especificamente às pessoas.              

Acho que é muito útil usar a palavra "ingenuidade". Eu o uso no treinamento de sensibilidade. Existem dois tópicos sobre os quais não temos consciência: somos ingênuos no que diz respeito a causa e efeito comportamental e sobre como nós e os outros existimos. Por exemplo, posso ser ingênuo no que diz respeito a como meu comportamento me afeta e, de uma forma destrutiva, sou ingênuo no que diz respeito a como meu comportamento lhe afeta. Fico trabalhando e não faço pausas, isso é prejudicial a mim. E se eu chegar atrasado, será prejudicial a você.     

Em relação a como existimos, também sou ingênuo no sentido de não perceber que você pode estar ocupado, por exemplo. Acho que um caso clássico é quando ficamos em casa o dia todo e nosso parceiro chega do trabalho ou chegamos em casa do trabalho, parece que o outro simplesmente surgiu do nada. "Onde está meu jantar?" Somos ingênuos no que diz respeito ao fato de que a pessoa teve muitas coisas para fazer com os filhos durante o dia, é como se isso não existisse, como se não tivesse acontecido. Por outro lado, a pessoa chega em casa do trabalho e parece que ela não existia, não parece que passou o dia inteiro no escritório, e pode ter sido um dia terrível. Nesse caso, somos ingênuos no que diz respeito a isso e ao fato de estarem muito cansados - esse tipo de coisa.      

Acho que "ingenuidade" se encaixa melhor, no sentido de sermos insensíveis e assim por diante; se encaixa melhor no sentido de não termos consciência de que uma situação é destrutiva, prejudicial. É “não saber”; nós simplesmente não sabemos. "Eu não sabia que você estava ocupado." “Eu não sabia que você iria se ofender com o que eu disse. Eu não sabia disso." Então, não é que eu seja um idiota, eu simplesmente não sabia. Em inglês, “ignorância” (ing. ignorance) tem um forte sabor de ser ignorante no sentido de ser estúpido. Mas não é disso que estamos falando. (O significado aqui) é não saber ou saber incorretamente. "Eu pensei que você teria tempo para mim, mas você não teve." "Pensei que estaria em casa quando eu fui visitá-lo, mas não estava." Sabemos algo de forma incorreta ou contrária (à realidade).  

Falando com Habilidade

Eu me pergunto, na sua vida particular, quando você fala com uma criança ou um familiar, não como um tradutor profissional, você usa a tradução do dicionário ou as palavras que você acha que lhes fará fazer a associação correta? Parece muito mais importante usar uma palavra com a qual os outros se conectem. Isso faz sentido?

Certamente, quando falo com as pessoas procuro ser habilidoso e usar o tipo de terminologia que elas entendem. Mas isso não significa que precisamos ser imprecisos ou desleixados em nossa terminologia. Há uma diferença na maneira como você fala com uma criança, com um adulto, com um adolescente, com um professor ou com uma pessoa sem instrução. Pode ser bem diferente. Certamente não tento corrigir as pessoas. Não sou um "nazista da gramática"; aprendi isso, porque costumava ser, mas estou me recuperando.  

Precisamos ser habilidosos em nossa comunicação. A comunicação é extremamente importante. O Buda é elogiado pelas palavras hábeis que usou para ensinar. Em Louvor à Originação Dependente, Tsongkhapa escreve:   

(19) "Por causa da linha de raciocínio do surgimento dependente, não nos fundamentamos em uma visão extrema." Esta excelente afirmação é o motivo do seu discurso, ó Guardião, ser incomparável.

O que faz com que o Buda seja tão fantástico é a (maneira como) fala, como falou sobre o surgimento dependente. Portanto, temos que nos comunicar da melhor maneira possível.

Rebaixar os Outros

Achei o versículo 81 difícil de entender e queria saber se você poderia falar um pouco sobre isso.

Este é o versículo:

(81) Nosso (hábito de) rebaixar os que estão por cima é muito forte; consideramos seres sagrados como inimigos. Visto que nossa luxúria é enorme, ansiosamente aceitamos os jovens (como parceiros). Caia, caia com tudo, bem na cabeça (deste) conceito ruinoso! Dê o golpe mortal no coração deste açougueiro, o “eu verdadeiro”, nosso inimigo.

Nosso hábito de rebaixar os que estão por cima é muito forte. “Rebaixar”, (put-down em inglês,) é um termo que significa criticar, colocar em um lugar de menor respeito. Por exemplo, alguém é um santo, um grande lama ou um grande mestre espiritual, e nós o criticamos. Dizemos que não é tão bom assim e coisas do gênero, e pensamos nele como uma ameaça para nós. Portanto, ele parece ser nosso inimigo, pois vai nos corrigir, ou algo assim. Isso porque estamos preocupados com “eu”, “minha” reputação. Numa competição também é assim.     

Esse verso não precisa se referir apenas a pessoas santas. Podemos perceber isso quando encontramos alguém que está melhor do que nós e nos sentimos ameaçados. Existe a tendência de querer rebaixar essa pessoa, de descobrir seus pontos fracos e ficar falando sobre eles, ao invés de elogiar, admirar e se sentir inspirado por seus pontos fortes. Nesse sentido, nós o consideramos um inimigo, uma ameaça para nós. Uma vez que nossa luxúria é enorme, aceitamos avidamente os jovens como parceiros. Somos tão apegados ao corpo e ao sexo, que mesmo sendo velhos tentamos seduzir os jovens, como se ainda fôssemos jovens e eles nos achassem atraentes. Novamente, existe o conceito de um "eu" sólido que nunca muda.        

Falando do ponto de vista pessoal de uma pessoa mais velha, nossa autoimagem não está de forma alguma associada à nossa imagem no espelho. Como uma pessoa mais velha, é muito difícil imaginar - e as pessoas mais velhas aqui também devem sentir isso - o ponto de vista das pessoas que estão olhando para nós, o que elas veem. Não achamos que eles vejam uma pessoa idosa de cabelos grisalhos ou brancos.  Ainda imaginamos que parecemos uma pessoa mais jovem. Com esse tipo de atitude, podemos tentar seduzir alguém na casa dos vinte anos quando estivermos na casa dos sessenta ou setenta - é um absurdo. É disso que esta linha do verso está falando, dessa ideia fixa de “eu” que não está associada em nada a como os outros nos percebem e como realmente é a nossa imagem no espelho. 

É só quando estamos cansados que sentimos nossa idade; fora isso, imaginamos que continuamos iguais, não importa quantos anos tenhamos. Essa é uma aparência enganosa, “Sou eu”, não pensamos em termos de idade. Pessoalmente, não posso acreditar que vou fazer setenta e três anos. Minha irmã acabou de fazer oitenta anos e disse: “Não posso acreditar que estou com oitenta. Você consegue me imaginar com oitenta anos?" Mas é assim, essa aparência enganosa, como se houvesse um “eu” que pudesse ser conhecido independentemente da base, um corpo velho, envelhecido.        

Superando o Auto Apego com Base em Diferentes Visões

O verso 49 parece bem direto. Parece tratar mais de uma questão ética do que mostrar a visão da escola Vaibhashika, o que é um pouco estranho, já que ele fala sobre Yamantaka. O que me inspira é ver como o termo “auto apego” é exemplificado nos versos e como ele introduz esse conceito de auto apego. As reflexões filosóficas das diferentes escolas estão lá, mas não de uma maneira explicita. Você pode comentar um pouco sobre isso?

Vamos repetir o versículo ao qual você está se referindo: 

(49) É assim mesmo! Então, peguei o inimigo! Eu peguei o bandido, o ladrão que me emboscou e me enganou, a fraude que, disfarçada de "eu", me enganou! Aha! Isso é apegar-se a um "verdadeiro eu!" Não há dúvidas!

Se olharmos para os ensinamentos budistas, para as diferentes posições filosóficas, (veremos que) os chamados sistemas de princípios filosóficos explicam o autocentramento contrastando-o com a abnegação, “anatta”, e em muitos níveis progressivamente mais sutis. Acho que também podemos explicar isso em um nível não filosófico. Neste nível, o apego a si mesmo é apenas egoísmo. A atitude “primeiro eu” – “Eu sou o mais importante; Eu sou mais importante do que você, e as coisas devem ser feitas do meu jeito”- não precisamos de uma base filosófica profunda (para entender isso). O egoísmo surge automaticamente, junto com o interesse próprio e assim por diante. A (busca pela) sobrevivência do indivíduo e pela sobrevivência da espécie é instintiva, simplesmente existe. Acho que podemos entender esses versos em muitos níveis diferentes. 

Quando lemos que Dharmarakshita afirmou a visão Vaibhashika, que Maitriyogi afirmou a visão Sautrantika e que Serlingpa afirmou a visão não-budista, o que isso significa? Isso não significa que esses eram seus entendimentos mais profundos ou suas próprias filosofias. No caso da Vaibhashika e Sautrantika, Dharmarakshita e Maitriyogi eram especialistas em ensinar esses sistemas e explicar os textos que ensinam essas visões. E Serlingpa ensinou a bodhichitta convencional primeiro, não a bodhichitta mais profunda. Serlingpa estava dizendo que podemos praticar esses ensinamentos mesmo quando pensamos como não-budistas. Podemos ter primeiro a bodhichitta convencional, embora tenhamos todas as visões errôneas a respeito do “eu”. E podemos desejar atingir a iluminação para poder beneficiar a todos. Mas, para isso, precisaremos da bodhichitta mais profunda e da compreensão da realidade.  Podemos praticar lojong, o treinamento da mente, ainda que mantenhamos essas visões não-budistas. Da mesma forma, podemos praticar o treinamento mental sustentando a visão Vaibhashika ou Sautrantika, ou podemos praticá-lo de acordo com a Madhyamaka.     

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