Paz Mental e Suas Causas
O que é uma mente feliz? É um estado mental satisfeito e relaxado que tem uma visão ampla e de longo prazo e, portanto, não se perturba muito com nada. (Essa mente feliz) nos leva a um estado mental mais eficiente, com mais capacidade de discriminar a melhor maneira de lidar com os problemas, pois vê tudo com mais clareza.
Estar com a mente em paz não é simplesmente um estado onde não pensamos. Embora não pensar nos proporcione uma sensação de relaxamento, não é algo especial. Até um coelho, depois de ser alimentado, relaxa e quase se senta na postura de sete partes de Vairochana. No entanto, um coelho é facilmente perturbado. Portanto, não pensar em problemas não é a solução.
Por outro lado, o acúmulo de bens materiais tem suas limitações. Mesmo se tivéssemos todos os objetos materiais do mundo, ainda assim não estaríamos satisfeitos. Iríamos querer cada vez mais. Outra limitação dos objetos materiais é que, quando morremos, perdemos tudo o que acumulamos ao longo da vida. Portanto, é melhor desenvolver desde o início um sentimento de contentamento em relação às coisas materiais que acumulamos. Já com algo que não tem essas limitações, como o desenvolvimento mental, nunca devemos nos contentar, devemos continuar a nos desenvolver até atingirmos a iluminação.
Quando passamos por um grave trauma, não podemos deixar que isso nos impeça de continuar a trabalhar em nosso desenvolvimento. Quando analisamos o que já vivenciamos, podemos ver que foi o resultado de nossos potenciais cármicos. Ao refletirmos sobre o sofrimento condicionado, vemos que enquanto continuarmos a renascer no samsara por causa de nossa ignorância e emoções perturbadoras, que são nossos verdadeiros inimigos, continuaremos a vivenciar eventos traumáticos. Na verdade, somos afortunados por experimentarmos um grande sofrimento tendo como base uma vida humana, e não em um dos outros reinos.
Como Geshe Potowa explicou: “Não há nada surpreendente no fato de sofrermos. Afinal, nós já nascemos com emoções perturbadoras, nós nascemos delas.”
Generosidade de Longo Alcance
Para nos desenvolvermos ainda mais, precisamos adotar e expandir as seis atitudes de longo alcance (seis perfeições). A generosidade, a primeira delas, é enfatizada em todas as religiões. No budismo, existem três tipos de generosidade:
- Dar ajuda material
- Dar o Dharma
- Dar liberdade do medo.
Generosidade é estar disposto a dar – dar objetos materiais, por exemplo. Não é apenas uma ausência de avareza, mas também uma consciência a respeito dos benefícios de dar e dos problemas do apego. Os Shravakas e pratyekabudas desenvolveram a generosidade, porém sem a consciência ampla dos bodhisattvas.
Esses três tipos de generosidade são praticados principalmente por três tipos de pessoas. Dar apoio material é principalmente a prática dos leigos, enquanto dar ensinamentos do Dharma é principalmente a prática da comunidade monástica. Para os leigos com mais poder e riqueza, a principal forma de generosidade é salvar vidas, comprando animais destinados ao abate, por exemplo.
Também podemos ser generosos com nossos corpos, doando nossos órgãos quando morrermos, por exemplo. Mesmo em vida, podemos doar um rim ou uma córnea, e não apenas para familiares. Ao mesmo tempo, quando oferecemos alguma coisa, precisamos estar cientes do nosso propósito, bem como do objeto mais apropriado e do momento certo de darmos. Não ofereceríamos um jantar a um monge ou monja – eles fazem votos de não comer depois do almoço – ou uma comida gordurosa a uma pessoa com hepatite. Ou seja, é importante não dar coisas que podem prejudicar os outros, como armas ou veneno. Em alguns casos, claro, um veneno pode funcionar como remédio, como o veneno de cobra, por exemplo. Da mesma forma, é inadequado vender terras que serão usadas para a criação de animais para abate, como um pesqueiro ou um aviário.
Se fosse possível doarmos nosso cérebro para alguém que pudesse beneficiar mais os outros, não teria problema. Mas, isso só funcionaria se já tivéssemos atingido o estágio em que conseguíssemos doar o cérebro ou o corpo inteiro sem que isso nos causasse sofrimento mental ou diminuísse nossa bodhichitta. Se não estivermos nesse estágio, podemos nos eximir de tão extraordinários atos de generosidade.
Dar ensinamentos do Dharma não é apenas sentar em um trono, é também dar bons conselhos e ensinamentos de qualquer que seja a escola, com uma motivação pura. Ao aconselhar ou ensinar outras pessoas sobre a bondade e a responsabilidade, por exemplo, é essencial incorporar essas qualidades. Isso causa uma forte impressão.
Preparar e publicar livros também é um aspecto importante da generosidade de dar o Dharma. Mas quando ensinamos o Dharma a uma pessoa, precisamos ter certeza de que o que estamos ensinando é relevante e adequado à sua disposição mental. Um mestre budista ensinou a um rei que todos os fenômenos são vazios, mas o rei interpretou esse ensinamento como uma acusação de que ele não era nada. Tomando isso como um desafio à sua autoridade, mandou decapitar o mestre por traição!
Libertar do medo é libertar aqueles que foram presos injustamente, salvar espécies ameaçadas, apoiar a Anistia Internacional, trabalhar para acabar com a pena capital, juntar-se a movimentos pela paz, estabelecer santuários onde é proibido caçar e pescar, apoiar grupos de direitos humanos e assim por diante. Ser vegetariano por compaixão pelos seres sencientes, e não apenas por uma questão de saúde, é uma prática generosa de não-violência. Trabalhar como médico, enfermeiro ou assistente social em uma casa de repouso para idosos ou uma escola para cegos ou deficientes também é uma prática de generosidade. Podemos ajudar a cuidar de pacientes que estão morrendo de AIDS ou câncer e apoiar o socorro às vítimas de terremotos, fome e inundações.
No entanto, todos esses atos de generosidade dependem da motivação (com a qual os praticamos). Quando damos com orgulho, ou com um senso de competição, toda a força positiva, ou “mérito”, acumulada é totalmente desperdiçada. Da mesma forma, quando damos apenas para amigos e familiares, e nunca para inimigos ou pessoas de quem não gostamos, nossa motivação é obviamente tendenciosa e inadequada. Se oferecemos o Dharma ou salvamos vidas apenas com o objetivo de que nos agradeçam, de que nos reconheçam ou nos recompensem, isso é errado. Se é fama que queremos, ganhar um Prêmio Nobel, por exemplo, nossa prática de generosidade está sendo totalmente desperdiçada. Se damos algo pequeno com a esperança de receber algo maior em troca, temos a mente de um empresário. E se dermos com a esperança de que o resultado cármico seja termos riqueza e prosperidade em vidas futuras, isso é um exemplo de um motivo ulterior.
Quando damos, devemos dedicar, não apenas o objeto, mas também os frutos desse ato, ao benefício futuro de todos os seres limitados. Devemos dar sem qualquer expectativa do resultado ser bom. Dê com respeito a quem está recebendo, não olhe para a pessoa como se ela fosse inferior ou superior a você. Ao dar a alguém que se acha especial, tenha em mente que muitas vezes nós também nos achamos especiais. Com muita alegria, dê aos dez tipos de receptores de nossa generosidade: amigos, estranhos, inimigos, aqueles com qualidades, aqueles com defeitos, aqueles superiores, inferiores ou iguais a nós, os felizes e os aflitos.
Quando damos aos nossos inimigos ou a quem não gostamos, devemos dar sem hostilidade, com especial gentileza; quando damos a amigos e familiares, devemos dar sem apego; quando damos a estranhos, sem indiferença; quando damos aos com boas qualidades, sem inveja; quando damos aos que têm uma posição inferior à nossa, sem menosprezá-los; e assim por diante. Devemos dar a cada receptor com a atitude apropriada.
Em suma, todo ato de generosidade deve ser precedido de uma motivação altruísta. Mantemos a atitude altruísta durante o ato e completamos dedicando a força positiva. Fazemos tudo isso atentos à ausência de existência auto-estabelecida no doador, no receptor e no objeto dado.
Podemos estabelecer nossa motivação altruísta todas as manhãs, especialmente se for difícil estabelecê-la antes de cada ação. Pensamos: “Hoje, darei sentido à minha vida” e, durante o dia, tentamos nos lembrar de nossa atitude altruísta, mantê-la e tê-la sempre em mente. À noite, nos lembramos das coisas positivas e altruístas que fizemos e nos alegramos, e também nos arrependemos das coisas negativas e egoístas e tentamos não as repetir.
Autodisciplina Ética de Longo Alcance
Autodisciplina ética é uma mente que nos impede de nos envolver em ações ou atitudes que causem danos aos outros. É uma mente que nos faz nos engajarmos em ações positivas que geram algum benefício aos outros. Assim, nos impedimos de ter uma atitude de autoapreço. Isso não quer dizer que negligenciamos nossos próprios objetivos. Abster-nos da atitude de autoapreço contribui para o objetivo de alcançarmos a iluminação.
Existem três tipos de autodisciplina ética, que permeiam toda a prática dos bodhisattvas:
- A autodisciplina ética de abster-se dos comportamentos destrutivos
- A autodisciplina ética de se envolver em atos construtivos
- A autodisciplina ética de ajudar os outros.
A ordem das três é fixa. Como bodhisattvas, praticamos a autodisciplina ética para ajudar todos os outros seres a alcançarem seus objetivos. E para isso, precisamos desenvolver nossas faculdades e capacidades tanto quanto possível; ter apenas uma boa motivação não é suficiente. Podemos ajudar os outros a alcançar a felicidade temporária, a felicidade de um renascimento humano, e também a felicidade suprema da liberação e iluminação. Mas para ajudá-los em qualquer um desses objetivos, precisamos conhecer o processo para isso. Não se trata apenas de conhecer a linhagem e a história dos ensinamentos; precisamos conhecer o processo a partir de nossa própria experiência pessoal de praticar os métodos. Fazemos isso desenvolvendo as qualidades que ainda não temos e fortalecendo as que já temos. Essa é a autodisciplina ética de se envolver em atos construtivos.
Para isso, precisamos nos livrar das características negativas que já temos e não desenvolver as que não temos. Esta é a autodisciplina ética de evitar o comportamento destrutivo.
No Tratado de Quatrocentos Versos, Aryadeva aconselhou:
(VIII.15) Primeiro, afaste-se de ações deméritas.
Isso se refere a ações que surgem como resultado de emoções perturbadoras. Portanto, primeiro precisamos nos abster de pensar, falar e agir com base em emoções perturbadoras. Esta é a autodisciplina ética de evitar o comportamento destrutivo. Com base nisso, precisamos desenvolver os fatores oponentes (antídotos) que irão combater e remover as emoções perturbadoras – ou seja, os três treinamentos superiores. Desenvolvê-los requer a autodisciplina ética de se engajar em atos construtivos. Para ajudar os outros, precisamos conhecer suas necessidades e como ajudá-los: aquilo que eles precisam obter e do que precisam se livrar. Para isso, precisamos desenvolver consciência discriminativa, para que possamos empregar a autodisciplina ética e ajudar os outros.
A Autodisciplina Ética de Evitar Comportamentos Destrutivos
A autodisciplina ética de abster-se de comportamentos destrutivos implica em tomar e manter os votos de pratimoksha (liberação individual), de bodhisattva e os votos tântricos. Os votos de pratimoksha e de bodhisattva compartilham o voto de abandonar as ações destrutivas. Sem os votos de pratimoksha, não desistiríamos de nos envolver nas dez ações destrutivas. Para leigos, há votos de pratimoksha de um dia e votos de upasaka ou upasika para toda a vida. Para os monásticos, há a ordenação plena e os votos de noviço.
Podemos perceber a importância dos votos de pratimoksha considerando os grandes mestres budistas que os tomaram. Por exemplo, entre os Cinco Mestres Sakya, os Três Mestres Brancos [Sachen Kunga Nyingpo, Sonam Tsemo e Dragpa Gyaltsen] eram leigos com os cinco votos de upasaka, mas os Dois Mestres Vermelhos [Chogyal Phagpa e Sakya Pandita] eram bhikshus (monges com ordenação completa). Marpa, Milarepa e Rechungpa eram leigos, mas Gampopa e o Primeiro Karmapa, por outro lado, eram monges. Em Nalanda, na Índia, provavelmente havia alguns estudantes leigos, embora a maioria fosse monges. Nagarjuna, Aryadeva e todos os discípulos mais próximos do Buda eram monges. Shantarakshita e Kamalashila também eram monges, e Dromtonpa era um upasaka celibatário.
Manter o Dharma significa manter o Tripitaka e seu conteúdo. A maneira mais completa de fazer isso é como um monástico totalmente ordenado. No mínimo, você precisa ser um leigo que mantém todos os votos de upasaka ou upasika. Em ambos os casos, você precisa ser alguém que mantém todos os três conjuntos de votos: pratimoksha, bodhisattva e tantra.
Com a prática do Dharma, buscamos nos libertar do sofrimento e nos refugiar no nirvana. Para atingir o nirvana, a liberação, precisamos superar todas as nossas emoções perturbadoras. São elas os nossos verdadeiros inimigos. Para nos livrarmos das emoções perturbadoras, precisamos destes três votos – pratimoksha, bodhisattva e tantra – todos com o objetivo de eliminar as emoções perturbadoras. Precisamos entender que as ações destrutivas surgem de nossas emoções perturbadoras. Quando entendemos isso, podemos pelo menos nos abster das dez ações destrutivas.
A Autodisciplina Ética de Engajar-se em Atos Construtivos
A autodisciplina ética de engajar-se em atos construtivos implica em construir as duas redes (duas coleções), a rede de força positiva (mérito) e a rede de consciência profunda (sabedoria), ou seja desenvolver método e sabedoria. O lado do método envolve o desenvolvimento do amor e da compaixão, o lado da sabedoria, uma compreensão da vacuidade e também da impermanência. Quanto às emoções perturbadoras a serem eliminadas, algumas surgem baseadas conceitualmente em uma visão distorcida e outras surgem automaticamente, sem essa visão.
Dentre aquelas que surgem com base em uma visão distorcida estão o apego a um eu estático, sem partes, existente independentemente de tudo mais, ter uma visão extrema, considerar como suprema uma visão deludida e considerar como suprema uma moralidade ou conduta deludida. Essas emoções perturbadoras também surgem com base na consciência discriminativa incorreta. Elas são mais fortes, em certo sentido, do que as que não são baseadas em uma visão distorcida. Nelas há um grau de certeza e convicção, pois sentimos que são baseadas na razão.
Existem antídotos para as emoções perturbadoras baseadas em uma visão distorcida e as não baseadas em uma visão distorcida. Alguns deles as diminuem e outros as eliminam completamente. Por exemplo, o amor e a compaixão diminuem a raiva. E quando vemos falhas e defeitos nos objetos que conceituamos como muito bonitos, ver sua feiura diminui o desejo. Mas não funciona assim para as emoções perturbadoras baseadas em uma visão distorcida. Para neutralizá-las, precisamos de uma visão correta e de um modo de apreensão que seja exatamente o oposto em relação ao mesmo objeto. O oponente que elimina completamente nossas emoções perturbadoras é a absorção total e não conceitual (equilíbrio meditativo) na vacuidade. Perceber as coisas de forma diferente – por exemplo, perceber o que consideramos bonito como feio – é algo que só podemos aplicar durante a fase posterior de realização posterior à meditação (pós-meditação). A absorção por si só não é suficiente. Precisamos da consciência profunda da vacuidade na fase de absorção total.
A meditação, portanto, é uma das práticas essenciais da autodisciplina ética de se engajar em atos construtivos. A meditação é um método para nos habituarmos a um estado mental benéfico através do esforço. Obter um estado mental benéfico não acontecerá naturalmente, sem esforço. No contexto em que estamos discutindo, esse estado benéfico refere-se à obtenção de uma visão correta, com absorção meditativa não conceitual na vacuidade.
Existem duas maneiras de disciplinar nossa mente indisciplinada a fim de gerar esse estado benéfico de compreensão correta da vacuidade. Uma é através da obtenção da plena convicção na verdade da visão correta; a outra é baseada em apenas presumir que isso é verdade. Mas apenas presumir que isso é verdade não é suficiente. Somente por meio da análise minuciosa é que impediremos que nossa compreensão e convicção sejam influenciadas. Uma vez que tenhamos uma firme convicção, podemos nos concentrar unifocadamente na visão correta.
Mas como descrever a mente que buscamos manifestar quando nos absorvemos meditativamente na visão correta da vacuidade, especialmente em termos da mente de clara luz? Até que atinjamos os estágios avançados, precisamos deixar que os livros sejam nossos professores. Só conseguimos acessar os “ensinamentos do Dharma da realização” (rtogs-bstan) depois de termos nos confiado aos “ensinamentos do Dharma das escrituras” (pulmon-bstan) no Tripitaka.
A escola Sakya explica a clara luz em termos do “continuum causal que é a base alaya de tudo” (kun-gzhi rgyu'i rgyud, o continuum causal eterno da base que tudo engloba).
[O continuum causal alaya é um “fator essencial para Aquele Que se Foi” (de-gshegs snying-po, sânsc. tathagatagarbha; literalmente, “ventre para um Tathagata”), um fator da natureza búdica. Estamos nos referindo à mente de clara luz; que, quando não manifesta, dá origem a todas as aparências impuras. Assim sendo, é a base a ser purificada.]
Kyentse Wangchug na transmissão lobshay (slob-bshad, explicações para discípulos avançados) dos ensinamentos lamdre (o caminho e seus resultados), afirma que esse continuum causal alaya é um fenômeno convencional, superficialmente verdadeiro, que é tanto um fenômeno afetado (condicionado, não estático) quanto uma maneira de se estar ciente de algo. A clara luz como um objeto é muito difícil de alcançar e, como está além das palavras e conceitos, nunca se manifesta como “objeto”. Embora o continuum causal que é a base alaya para tudo se manifeste como a mente de clara luz quando o estado de clara luz se manifesta, e neste estado dá origem a aparências puras, não é algo que possa ser transformado e usado como caminho.
Mangto Ludrub Gyatso, que, assim como Kyentse Wangchug, também era um discípulo de Tsharchen Losel Gyatso, explicou que esse continuum causal alaya é um fenômeno supremo, e se referiu a ele como a base absoluta que a tudo engloba (mthar-thug-gi kun-gzhi) uma vez que é, em última análise, a fonte de todas as aparências, impuras e puras.
O mestre Nyingma Longchen Rabjampa, em Tesouro Realizador de Desejos (Yid-bzhin mdzod) considerou a mente de clara luz, quando referindo-se à consciência pura, à rigpa (rig-pa), como absoluta, e quando obscurecida por máculas adventícias, como convencional. Na tradição Guhyasamaja, a mente de clara luz é tomada como sendo a verdade mais profunda e o corpo ilusório como sendo a verdade convencional. Então, aqui estão três maneiras diferentes pelas quais o termo “absoluto” ou “mais profundo” é usado em referência à mente de clara luz; e alguns mestres indianos e tibetanos não dão uma explicação conclusiva sobre isso.
Portanto, embora precisemos manter uma visão pura dessas grandes pessoas, precisamos examinar o que elas ensinaram. Em outras palavras, precisamos das quatro bases (ston-pa bzhi):
- Não se se baseie na pessoa, mas em seus ensinamentos
- Não se baseie em suas palavras, mas em seus significados
- Não se baseie em seus significados interpretáveis, mas em seus significados definitivos
- Não se baseie na consciência comum, mas na consciência profunda.
É difícil praticar meditação na nossa sociedade, não por causa da sociedade em si, mas por causa de nossa falta de familiaridade com a meditação. Afinal, grandes praticantes, praticantes experientes, conseguem meditar perfeitamente bem e obter novos insights vivendo em sociedade. Mas os que ainda não estão nesse nível precisam de circunstâncias adequadas e propícias para desenvolverem a autodisciplina ética de se engajar em atos positivos, como a meditação profunda. Precisamos resguardar nossos sentidos, para não nos depararmos com objetos que façam surgir nossas emoções perturbadoras. Portanto, é aconselhável meditar em isolamento.
Ter uma atitude de cuidado (bag-yod), de ser cuidadoso, não significa desistir de nossa liberdade ou cerceá-la. Precisamos de uma atitude de cuidado conosco para nos cuidarmos, assim como nos cuidamos quando estamos doentes. Portanto, exercitar autodisciplina não é se cercear inutilmente. Assim como nos abstemos de certos alimentos quando estamos doentes, aplicamos a autodisciplina por percebermos seus benefícios a curto e longo prazo. A autodisciplina ética não é algo externamente imposto, o que acontece é que percebemos seu propósito e então a praticamos.
Para exercer autodisciplina ética, precisamos mantê-la em mente com presença mental (dran-pa, atenção plena), para não a abandonar, e precisamos saber o que adotar e o que descartar. Também precisamos do poder da vigilância (shes-bzhin, instrospecção) para perceber se nossas ações de corpo, fala e mente estão apropriadas. Para isso, precisamos pensar que somos praticantes budistas e que queremos destruir nossas emoções perturbadoras. Com essa resolução, podemos desenvolver a presença mental e o estado de vigilância; caso contrário, quando agirmos mal, só perceberemos depois e sentiremos vergonha.
Precisamos ser moderados com a comida, pois comer demais entorpece a mente. Além disso, é claro, se comermos demais, ganharemos muito peso e teremos que carregá-lo! Então, precisamos de autodisciplina. É bom fazer uma prática de ioga, mas ela não adiantará se dormirmos até tarde. É melhor usar o início da manhã para praticar, quando a mente está clara. Claro que, para acordar cedo, precisamos parar de andar por aí tarde da noite!
Em Uma Antologia de Tópicos Especiais de Conhecimento (mNgon-pa chos kun-las btus pa, sânsc. Abhidharma-samuccaya), Asanga classificou o sono como um fator mutável: pode ser construtivo ou destrutivo dependendo da motivação. Podemos dormir com uma motivação positiva, talvez pensando: “Vou acordar cedo amanhã e fazer prostrações”. No tantra, podemos fazer certas práticas em nossos sonhos através da força de nossa motivação ou da força dos ventos-energias sutis. Mas para conseguir manter a clara luz dos sonhos, devemos primeiro reconhecer o sonho como um sonho. Se conseguirmos reconhecer a clara luz dos sonhos, conseguiremos identificar a clara luz com mais facilidade no momento da morte.
Então, em nosso dia-a-dia, podemos transformar tudo em uma prática construtiva, inclusive os sonhos. Podemos oferecer nossa comida e bebida às Três Joias, dar nossas sobras de presente aos insetos, e nosso cuspe e urina como oferendas aos fantasmas pretas. Para tornar nossas vidas significativas, o mais importante é manter a atenção plena à bodhichitta e à vacuidade. Todas as escrituras são testemunhas deste ponto. Tudo isso é a autodisciplina ética de se engajar em atos construtivos.
A Autodisciplina Ética de Ajudar os Outros
Quanto à autodisciplina ética de ajudar os outros, existem onze maneiras de fazermos isso. Existem muitas fontes escriturais, incluindo Engajando-se na Conduta do Bodhisattva (O Caminho do Bodisatva) e o Compêndio de Treinamentos (bSlab-btus, sânsc. Shikshasamuccaya), ambos de Shantideva, e o capítulo sobre autodisciplina de Os Estágios do Bodhisattva (Byang-sa, sânsc. Bodhisattvabhumi) de Asanga. Todos contêm muitos versos citáveis. Estou agora olhando para a lista das onze maneiras (de praticar autodisciplina) do Lam-rim do Quinto Dalai Lama, Diretrizes de Manjushri ('Jam-dpal zhal-lung). São elas:
- Ajudar, em geral, quem está sofrendo. Proteger suas casas, seus bens, prestar assistência médica aos doentes, dar óculos aos deficientes visuais, próteses e cadeiras de rodas aos deficientes, etc.
- Ensinar às pessoas habilidades construtivas para obterem um meio de vida correto e não, por exemplo, para administrarem um abatedouro de aves.
- Dar presentes materiais e convites, por exemplo, para refeições.
- Ajudar os que têm medo de animais selvagens.
- Ajudar e consolar os atormentados pelo infortúnio, como os que foram separados de seus pais, que perderam entes queridos ou que foram roubados. Além disso, ajudar quem reclama muito. O cozinheiro de Atisha, Ame Jangchub, reclamou com Dromtonpa dizendo: “Eu tenho que cozinhar o tempo todo. Não tenho tempo para praticar”, e Dromtonpa respondeu: “Eu tenho que traduzir o tempo todo”. Mas ele disse também que enquanto Atisha estava vivo, a melhor prática era servi-lo. Desta forma, Dromtonpa encorajou Ame Jangchub. Portanto, podemos ajudar aqueles que vêm reclamar conosco compartilhando nossas reclamações com eles, mas depois concluindo “porém…” e fornecendo conselhos. Olhar com desprezo para os que reclamam é arrogância. Essas são maneiras de ajudar os atormentados.
- Forneça comida e bebida aos necessitados e ofereça ajuda material e Dharma. Não diga para enganarem os outros a fim de ganhar dinheiro, claro.
- Dê conselhos aos que buscarem a sua ajuda, para que possam cuidar de si. Isso implica em usar as quatro maneiras de aproximar os outros de nós.
- Se os outros estiverem desanimados com as práticas construtivas, compartilhe dessa preocupação e os ajude a acabar com o desânimo.
- Elogie as qualidades dos outros, mesmo quando tiverem muitos defeitos. Isso os incentivará a aprimorar ainda mais suas qualidades.
- Puna os que sempre são intencionalmente destrutivos como uma forma de ajudá-los, e seja mais rigoroso quando necessário.
- Recorra a atos milagrosos, se isso ajudar e você tiver essa capacidade, embora talvez agora tudo o que possamos fazer sejam alguns truques de mágica!
Em suma, a autodisciplina ética de ajudar os outros é beneficiá-los de acordo com suas situações, disposições e assim por diante.
Paciência de Longo Alcance
A paciência de longo alcance de que precisamos é melhor descrita por Shantideva em Engajando-se na Conduta do Bodhisattva. Lá, ele explica três tipos:
- A paciência de não se incomodar com o mal
- A paciência de aceitar prontamente o sofrimento
- A paciência de suportar dificuldades enquanto pratica o Dharma.
A Paciência de Não Se Incomodar com o Mal
Descrevendo a paciência, Shantideva escreveu:
(V.13) Onde eu poderia encontrar couro para revestir toda a superfície da Terra? Mas se tiver couro apenas na sola dos meus sapatos, será como ter revestido toda a superfície da Terra.
(V.14) Assim, embora seja impossível controlar os eventos externos, se eu controlar a minha mente, por que necessitaria controlar as outras coisas?
Em outras palavras, a paciência não eliminará todos os inimigos e encrenqueiros, é o nosso estado mental que elimina a raiva e nos mantém calmos diante da adversidade. Assim como cobrir nossos pés com couro seria o mesmo que pavimentar o mundo inteiro com couro, se protegermos nossas mentes com paciência, não seremos incomodados em nenhum lugar pelo mal ou por aqueles que causam mal.
Shantideva oferece muitos métodos para desenvolvermos a paciência de não nos incomodar com o mal. Ele escreveu, por exemplo:
(VI.87) Mesmo que seu inimigo não tenha qualquer tipo de alegria, o que há nisso para você se deleitar? Um mero desejo na sua mente não se tornará a causa de um dano a ele.
A paciência é livre de raiva, mesmo quando nos fazem mal ou fazem mal a nossos familiares. Geralmente, quando nossos inimigos prosperam, nos sentimos infelizes, e quando eles sofrem, nos sentimos felizes. Com nossos amigos e familiares, é o oposto; geralmente ficamos felizes quando eles prosperam e sofremos quando estão tristes. Mas nossa felicidade com o sofrimento do inimigo alimenta nossa raiva; e o efeito da raiva é que nós ficamos infelizes e sofremos.
Shantideva falou da necessidade de termos compaixão com aqueles que estão com raiva:
(VI.37) Se as pessoas matam até a si mesmas, que tanto amam, quando estão sob o poder das emoções perturbadoras, por que não haveriam de ferir o corpo dos outros?
(VI.38) Se não conseguir nem desenvolver compaixão de vez em quando por pessoas assim, que por conta de suas emoções perturbadoras fazem coisas como se matar, pelo menos não terei raiva.
As outras pessoas nos ferem porque estão sob o poder da raiva. E se tiverem muita raiva, podem ferir até a elas mesmas. Pessoas com raiva vitimizam até os membros mais fracos de suas famílias. Essas pessoas devem ser objetos de nossa compaixão, não de nossa raiva. Devemos também perceber que fazemos exatamente o mesmo quando estamos com raiva. O autocontrole é de extrema importância. Devemos saber que, quando as pessoas estão dominadas pela raiva, agem como loucas e não tem como ajudarmos.
Além disso, quando ficamos com raiva, ficamos com raiva do objeto errado. Shantideva explicou:
(VI.41) Se eu deixar de lado a verdadeira (causa da minha dor), a vara, e me enfurecer com a pessoa que a empunhava, bem, ela, na verdade, foi incitada pela raiva, então a pessoa (também) é (uma causa) secundária. Seria mais apropriado me enfurecer com a sua raiva.
(VI.43) Tanto a arma dele quanto o meu corpo são causas para o meu sofrimento. Uma vez que ele sacou uma arma e eu um corpo, de qual devo ficar com raiva?
Se alguém lhe atingir com uma arma, como uma vara longa e pesada, considere o seguinte: quando usamos uma vara para bater em uma pedra, a pedra não sente dor. Mas quando é o nosso corpo que é atingido por uma vara, sentimos dor e sofremos. Já que fornecemos o corpo e a outra pessoa a vara, tanto nós quanto ela somos igualmente responsáveis por nossa dor e sofrimento.
Além disso, por que não ficamos com raiva da vara que está nos machucando? Dizemos que é porque a vara está sendo manipulada pela pessoa. Mas a pessoa também está sendo controlada pelas emoções perturbadoras. Mesmo assim ficamos com raiva da pessoa e não da arma ou da emoção perturbadora.
Shantideva também explicou:
(VI.39) (Mesmo) que ser violento com os outros estivesse na natureza funcional das pessoas infantis, ainda assim seria tão inadequado ficar com raiva delas quanto se ressentir do fogo por sua natureza funcional de queimar.
(VI.40) E mesmo que essa falha fosse temporária, e seres limitados fossem adoráveis por natureza, bem, ainda assim seria tão inadequado se ressentir deles, quanto seria inadequado se ressentir do céu por permitir que a fumaça se espalhe (nele).
Se achamos que a natureza humana é algo que nunca muda, e alguém age mal por estar de acordo com sua natureza, por que deveríamos ficar com raiva? Seria como ficar com raiva do fogo por ele ser quente. E se agir mal é algo temporário, por que ficar com raiva das pessoas que agem mal, já que isso não é da natureza delas.
Não há razão para ficarmos com raiva das pessoas que tentam acabar com a nossa fama. Shantideva destacou:
(VI.90) Elogio e fama, (essas) demonstrações de respeito, não me trarão força positiva, não me trarão vida longa, não me trarão força física, não me libertarão das doenças; e tampouco me trarão prazer físico.
Se as pessoas não nos feriram fisicamente, mas estão tentando acabar com a nossa fama e status, não precisamos ficar com raiva. Precisamos entender que elogios e fama são apenas palavras vazias. Quando somos famosos, e não temos autocontrole, ficamos com o ego todo inflado. Dromtonpa disse que mesmo que todas as pessoas do mundo nos coloquem no topo de suas cabeças, ainda assim precisamos permanecer humildes.
No treinamento da mente lojong, é considerado bom ser difamado, pois com isso podemos entender nossas próprias falhas; quando o contrário acontece, quando somos elogiados, só nos tornamos arrogantes. Nome e fama são obstruções à prática do Dharma, pois levam a distrações. Assim, se um inimigo acaba com a nossa fama, ele está sendo gentil e realmente nos ajudando.
Quando os inimigos tentam nos prejudicar, normalmente ficamos com raiva, mas através deles podemos praticar a paciência. O Buda, os bons amigos e os animais de estimação bem comportados não nos oferecem oportunidades para praticar a paciência. Nós só podemos praticar a paciência com animais de estimação impertinentes! Mesmo nossos lamas não nos dão essa oportunidade de praticar. Portanto, devemos ser gratos aos nossos inimigos.
Shantideva adicionou:
(VI.109) Se eu dissesse: “Mas ele não teve a intenção de me fazer desenvolver paciência, então esse inimigo não é para ser reverenciado”. Bom, então por que o santo dharma é para ser reverenciado como uma possível causa para se desenvolver (paciência)?
Podemos contrariar o argumento acima dizendo que nossos inimigos têm a intenção de nos prejudicar, e não de nos ajudar. Mas, não estaríamos considerando que a terceira nobre verdade, ou a libertação, pode nos ajudar. A libertação também não tem a intenção de nos ajudar, então por que nos refugiamos nela? Quando sofremos, a verdadeira cessação não tem absolutamente nenhuma intenção de nos ajudar. Mas a verdadeira cessação é importante, pois é útil e nos beneficia. É a mesma coisa com um inimigo.
Podemos ainda argumentar que a verdadeira cessação não tem a intenção de nos prejudicar, o que não é o caso de um inimigo, então achamos que não há problema em retaliar os inimigos. Mas é precisamente por eles terem a intenção de nos prejudicar que são chamados de “inimigos” e nos permitem praticar a paciência.
Se tentarmos retaliar, isso nunca nos ajudará a superar o sofrimento. Em Um Suplemento para o (texto “Versos Raiz do) Madhyamaka” (de Nagarjuna) (dBu-ma-la 'jug pa, sânsc. Madhyamaka-avatara), Chandrakirti declarou:
(III.4) Quando alguém lhe faz mal e você fica ressentido, por acaso o seu ressentimento reverte o que já foi feito? Portanto, se ressentir definitivamente não serve para nada nesta vida e causa adversidades até mesmo no mundo além.
Quando ficamos com raiva de um inimigo, o mal que sofremos não é eliminado. Na verdade, quando ficamos com raiva do mal que já nos foi causado, isso não destrói o sofrimento, apenas nos traz mais sofrimento, a ponto de não conseguirmos comer ou dormir. Sofremos mais, e somos os responsáveis por esse sofrimento. Por outro lado, quando praticamos a paciência, ela se torna uma causa para a paz mental.
Em suma, quando estiver feliz, pense que essa felicidade é o resultado de seus atos construtivos passados e deseje que ela seja a causa da felicidade de todos os outros seres, pois isso destruirá a arrogância. Quando estiver sofrendo, pense: “Que eu possa, com isso, secar os oceanos de sofrimento dos outros seres”.
Tendo recebido esses ensinamentos, é importante regozijar-se. Como Geshe Chekawa escreveu na conclusão do Treinamento Mental em Sete Pontos (Blo-sbyong don-bdun-ma):
Solicitei essas instruções para domar meu autoapego. Agora, mesmo que eu morra, não terei nada de que me arrepender.
Da mesma forma, precisamos pensar: “Recebi todas as instruções para me livrar do autoapego; então, mesmo que eu morra, estarei satisfeito por ter recebido tudo o que preciso.”