Felicidade, Mestres do Passado e Tomar o Sofrimento dos Outros

A Busca pela Felicidade

Temos dois tipos de felicidade, a felicidade física e a felicidade mental, e a maior parte de nosso esforço é dirigido à felicidade e ao conforto físico. As pessoas se engajam em todo tipo de atividade na busca pelo conforto e felicidade física. Elas viram ladras e assassinas, roubam coisas para vender, ganhar dinheiro e obter algum conforto e felicidade física, e realmente conseguem algum conforto. Mas isso é apenas trocar um problema por outro. No longo prazo, só traz mais problemas. É como se você tivesse uma ferida na bochecha e, para fechá-la, você cortasse seu fora nariz e o transplantasse na bochecha – você só estaria trocando um problema pelo outro. Há também os que buscam felicidade e conforto físicos trabalhando honestamente como fazendeiros ou comerciantes e são bem-sucedidos.

Há também pessoas extremamente azaradas, para quem nunca nada dá certo. Não importa quanto se empenhem em um negócio, ele não faz sucesso, em uma loja não conseguem vender as coisas e em uma fazenda não conseguem fazer com que funcione. Quando você tem duas pessoas fazendo o mesmo trabalho, esforçando-se igualmente, e uma tem sucesso e a outra fracassa, você deve questionar: “Qual a diferença? O que faz com que uma tenha sucesso e a outra não”? É por causa dos diferentes potenciais que desenvolveram em vidas passadas. Uma desenvolveu potenciais positivos, então obtém sucesso em tudo o que faz. Se tivesse desenvolvido potenciais negativos, nada funcionaria.

No entanto, você verá que independente do sucesso material da pessoa, do sucesso de sua carreira, de quanto dinheiro e posses ela tem, apesar disso lhe trazer conforto material, não lhe traz felicidade mental. Você verá que quanto mais coisas você tem, mais problemas e preocupações você também tem. Se uma única pessoa tivesse toda a riqueza e posses deste país, dos Estados Unidos, ela teria apenas este pensamento: “Eu só queria ter mais”. Ou seja, ninguém está satisfeito, ninguém sente que tem o suficiente e não precisa de mais nada. Portanto, precisamos da prática espiritual do dharma, algo que possa nos proporcionar uma felicidade maior do que essa, uma felicidade duradoura, que é grande e não acaba. Precisamos perceber e aceitar que a única maneira de obtermos essa felicidade duradoura é seguindo os métodos espirituais do dharma.

Video: Dr Chönyi Taylor — “Por Que Confundimos Felicidade com Prazer”
Para ativar as legendas, favor clicar no ícone “Legendas” no canto inferior direito da tela do vídeo. Para mudar o idioma da legenda, favor clicar no ícone “Configurações” e depois “Legendas” e escolher o idioma de sua preferência.

Sofrimento

Uma vez que nascemos, temos os problemas da doença, da velhice e da morte. Não há ninguém que não tenha esses problemas, eles são comuns a absolutamente todos os seres. Todo mundo fica doente em algum momento, todo mundo morre em algum momento; é só uma questão de tempo para chegar a sua vez. Se quando ficar doente você se aborrecer e surtar, “Oh, estou doente, isso é horrível”, além do sofrimento físico e do desconforto da doença, você adicionará um fardo desnecessário de sofrimento mental. Portanto, quando ficar doente, pense: “Bom, a minha doença é resultado dos potenciais negativos que gerei no passado, por ter agido de forma destrutiva. É isso que está causando minha doença”, e sinta-se feliz pois “agora que esse potencial amadureceu e me livrei dele, não precisarei experimentá-lo novamente. Não preciso mais carregá-lo. Agora que ele já amadureceu, me livrei dele.  A partir de agora não agirei destrutivamente. Assim, evitarei gerar mais potenciais negativos”. Você aceita a doença com essa atitude positiva, consciente de que agora você se livrou desse potencial negativo, e fica feliz por isso. E mais: “Desejo tomar para mim a doença de todos os outros seres, e que o fato de eu ficar doente seja o suficiente para que os demais não precisem adoecer. Que todo o sofrimento por doença dos outros caia sobre mim agora. Que o fato de eu estar doente agora acabe com o potencial de adoecer de todos os outros”. Então você perceberá que sua experiência de estar doente ficará completamente diferente, que não será tão difícil. Na verdade, você ficará muito feliz em ter adoecido pois poderá usar isso de uma forma positiva.

O grande Kunu Lama Rinpoche, um mestre recente, dizia que em sua terra havia um homem que fazia esse tipo de prática, de curar os outros, tomando toda a doença para si. Certa vez, uma pessoa estava com uma ferida muito séria na cabeça, muito infeccionada, e ela estava com muita dor. Esse homem foi até ela e com um gesto disse: “Que essa doença venha para mim, que venha para mim”. A pessoa se curou, mas ele ficou com a ferida e a infecção e morreu.

A Confiabilidade dos Grandes Mestres do Passado

Mesmo se estiver em uma casa superluxuosa, cheia de aparelhos eletrônicos, objetos valiosos e a melhor comida e bebida, ainda assim você poderá se sentir péssimo, por causa de sua atitude. Por outro lado, alguém pode estar em um lugar horrível, de segunda classe, mas, devido à sua atitude, estar feliz e contente. Pode-se ver o exemplo do sempre vigilante Milarepa, que morava em uma caverna. Não havia nada na caverna. Se tivéssemos que viver em um lugar assim, acharíamos muito difícil, mas Milarepa estava contente. Ele dizia: “Eu não tenho preocupações mundanas ou com qualquer coisa que seja perecível”. Ele era extremamente feliz vivendo sem nada.

Certa vez, o sempre vigilante Milarepa estava dormindo em uma campina próxima à estrada. Ele estava deitado e era muito magro. Uma moça passou e, vendo-o, disse: “Nossa, que corpo horrível tem essa pessoa. Que eu nunca tenha um corpo assim em minhas vidas futuras; que eu nunca caia em um estado desses”. Milarepa levantou-se e disse: “Não se preocupe, mesmo que reze muito para ficar assim, não ficará”.

O professor de Milarepa, o tradutor Marpa, foi à Índia três vezes para encontrar seu professor Naropa. Na terceira vez, Naropa já tinha morrido. Em um caminho na montanha, indo para a Índia, ele encontrou o grande Atisha, que estava a caminho do Tibete. Atisha sabia que Naropa havia falecido. Inclusive, ele estava levando algumas relíquias e posses de Naropa. No entanto, ele não disse nada a Marpa, pois sabia que Marpa era uma pessoa notável e que conseguiria encontrar-se com Naropa, apesar dele ter falecido. Portanto, deixou-o seguir viagem. Marpa seguiu para o Nepal, chegou à India, foi até onde Naropa vivia e recebeu ensinamentos através de uma visão.

Todos esses grandes seres, como Milarepa, não estão falando coisas sem sentido quando falam sobre vidas passadas e futuras. Eles não tinham motivo para enganar ninguém. Eles não queriam obter coisas mundanas com suas histórias. Eles não queriam enganar as pessoas.  Eles só queriam beneficiar os outros. Portanto, o que falaram sobre vidas passadas e futuras é verdade e há motivos para acreditarmos nisso.

Pode ser que charlatões tentem lhe convencer que uma máquina possui mente a fim de vendê-la e ganhar dinheiro, mas Milarepa não tinha motivos para agir como um charlatão. Ele não estava tentando vender nada, ele não estava tentando ganhar dinheiro às custas das pessoas. Ele morava em uma caverna e tinha renunciado a posses e coisas mundanas, e só pensava em beneficiar os outros. Vejam o exemplo do Buda Shakyamuni e de Atisha: ambos renunciaram às suas vidas principescas e se devotaram totalmente ao caminho espiritual.

A atividade de devotar-se a uma vida espiritual é muito difícil no começo e requer muito trabalho duro. Não é uma busca muito fácil. Se fosse tão fácil que você pudesse só sentar, relaxar e ainda assim ser um grande praticante espiritual, seria um pouco suspeito. É preciso muito esforço e trabalho duro, mas apesar das dificuldades, internamente você tem paz de espírito e felicidade, e as coisas acabam funcionando. Entre os praticantes espirituais sinceros do Tibete e da Índia, não se ouve dizer de alguém que não tenha conseguido porque as coisas são muito difíceis. De fato, eles conseguiram porque tinham essa felicidade, força e paz interior.

Existe um fim na prática espiritual do dharma. É possível terminar a jornada e a busca espiritual, e ela termina em um estado de grande felicidade. Já a busca material não tem fim e você é forçado a interrompê-la na hora da morte, ela termina em um estado de tragédia e infelicidade, completamente diferente da busca espiritual, que tem um fim e termina em felicidade.  

Você deveria pensar no que significa finalizar a jornada espiritual, o que isso realmente significa. Significa que você atinge um ponto final onde já aprendeu tudo, já adquiriu todas as boas qualidades e não há nada mais o que aprender, você já dominou tudo. Não é que você termine a jornada espiritual e com isso terminou o seu trabalho e você pode relaxar, dormir e não fazer nada. Portanto, você tem que pensar no que realmente significa completar a jornada espiritual.

Por hoje é só. Alguma pergunta?

Perguntas

Há Algo Físico que Siga para Vidas Futuras?

São três perguntas. A primeira diz respeito ao exemplo de Dharmakirti e a pérola na boca. Eu havia entendido que no processo da morte apenas a consciência sutil e as sementes cármicas seguem. Esse exemplo que Rinpoche deu parece implicar em carregarmos também um corpo físico.

Não é que possamos carregar um objeto físico para uma vida futura. Há também os exemplos que dei sobre as pessoas fazerem oferendas de ouro e renascerem usando brincos de ouro ou com a habilidade de materializar moedas de ouro em suas mãos. Essas coisas vêm de instintos e potenciais muito fortes no contínuo mental que amadurecem na próxima vida. Então não é que você coloque uma pérola na boca de alguém e ela a leve para a próxima vida e nasça com a mesma pérola que estava lá quando ela morreu. Foi a força da poderosa concentração unifocada de Dharmakirti que criou, ao colocar a pérola na boca da pessoa, um potencial e um instinto extremamente forte no contínuo mental de ter novamente uma pérola na boca quando renascesse.

Temos também o exemplo do filho de Marpa, Dharmadodey, que tinha uma ferida crônica no pé e em sua próxima encarnação nasceu com uma marca. Não é que ele tenha levado a mesma ferida, mas existia um instinto muito forte em seu contínuo mental que originou algo similar.

As Plantas Possuem Mente?

Segunda pergunta: Rinpoche estava falando da ausência de uma mente em um pilar ou viga e de que se eu não tivesse consciência, meu corpo seria como um pilar ou uma viga. Pelo que entendi, a tradição budista diz que plantas não possuem mente. No entanto, não dá para comparar uma árvore com um pilar, pois uma árvore é um ser vivo. Por outro lado, ela não parece ter uma mente. Estou um pouco confuso em relação a isso, se o fato de alguém ter uma mente prova que está vivo, teríamos que dizer que plantas possuem mente.

Um cadáver tem mente?

Acredito que não.

O cadáver saiu do ventre de sua mãe? O corpo do cadáver saiu do ventre de sua mãe e tinha uma mente?

Bom, o cadáver em si não. Um ser saiu e ele era impermanente, mudava momento a momento. O cadáver não é aquilo que saiu do ventre da mãe.

Se o corpo em si não possui uma mente, você está dizendo que uma árvore possui porque ela gera folhas e galhos, que são como um corpo que não possui uma mente.

Estou dizendo que se algo tem vida, isso prova que tem mente. Se posso dizer que este corpo está vivo porque possui uma mente, eu deveria poder aplicar a mesma lógica a uma árvore: uma vez que ela está viva, ela possui uma mente.

Bom, o que você entende por vida – algo que possui força vital?

Sim. O fato de que isso é tudo o que posso ver para me diferenciar de um pilar – eu estou vivo, eu tenho uma força ativa, mas o pilar não tem – essa é a única diferença que vejo no momento.

Você está dizendo que se algo possui força vital também possui mente? Você está dizendo que uma vez que a árvore gera folhas e galhos ela possui força vital?

Não é tanto por causa das folhas e galhos, mas pelo fato de que pode gerar novas árvores. Isso me parece um exemplo de sua força vital.

Então o que você está colocando como a razão para ela ter força vital? O fato de gerar folhas e galhos ou o fato de gerar sementes que, se plantadas, gerarão outras árvores?

Os dois. O fato de que cresce, de que tem a força para crescer, de que não é algo estático, de que assimila coisas e as transforma, em um processo de crescimento, e de que possui a capacidade para algum tipo de união sexual que produz descendentes – isso prova que possui força vital.

O que dizer, então, de corpos que são mumificados e depois de estarem mumificados por muitos séculos você percebe que cresceram cabelo e unhas? Muitas coisas estranhas acontecem com múmias. Você diria que essas múmias também estão vivas, pois elas geraram cabelos e unhas? Nesse caso você teria que dizer que o milho e o trigo também têm vida pois também geram sementes, e você acha que se o milho e o trigo possuem força vital, eles também possuem mente?

É isso que está me confundindo. Não me parece ser necessário fé para ver essas coisas como vivas, mas sim para ver que possuem mente. Nunca achei que planta tivesse mente.

Se você define “vida” simplesmente como a capacidade de crescer e produzir sementes que podem gerar um novo objeto, e não iguala isso a ter uma mente, então é uma questão totalmente diferente, é apenas uma questão de terminologia e não temos um problema. Porém, se estiver usando a palavra “vida” como um equivalente exato da palavra tibetana “srog”, que em sânscrito é “prana”, não funcionará, pois essa palavra tem a conotação de “estar consciente” de “ter maneiras de saber e ter mente”. É uma questão de terminologia.

Você poderia dizer que troncos secos, como este pilar, são desprovidos de força vital, mas se você colocar um desses pilares dentro d’água, se deixá-los ficar bem húmidos, eles ficarão verdes novamente.

Mas isso seria um outro organismo crescendo sobre o pilar. Um outro organismo poderia crescer no meu corpo, tendo ele como base.

Mas você estabeleceu isso como razão para ser considerado vivo, então você poderia dizer que o pilar está vivo porque gerou uma nova forma.

Não vejo assim, porque musgo pode crescer no chão, e o chão não tem vida, apesar de prover causas e condições para que alguma coisa cresça.  E tem também a questão de você poder matar uma árvore. Quer dizer, você diria que se mata uma árvore?

Dr. Berzin: O que Rinpoche está dizendo é que é uma questão de terminologia. No inglês falamos que uma árvore está viva ou que matamos árvores ou plantas. No entanto, no tibetano ou sânscrito, quando se fala em força vital e em matar, é mais específico e as definições não cobrem [o conceito] que as palavras “matar” e “vivo” cobre. Não é uma questão de discordar, é apenas uma questão de ter palavras que cobrem um conceito mais amplo ou mais restrito.

Isso significa que nesses idiomas a palavra “vida” equivale a ter mente?

Dr. Berzin: Sim.

Por outro lado, considerando-se que quando colocamos [o pilar] na água, musgo ou outro organismo cresce sobre ele, seria lógico dizer que o pilar tem uma mente pois produz uma outra vida.

Dr. Berzin: Agora estamos falando de outra coisa. O que Rinpoche está querendo discutir é a definição ocidental de algo estar vivo.

Bom, se tomarmos o caminho inverso, se não conseguimos provar que isso é verdade – que se algo está vivo, precisa ser capaz de produzir outra vida – isso então provaria que está morto.

Serkong Rinpoche: Você diria que um foguete tem vida, que está vivo? Qual o motivo para não dizermos que um foguete está vivo?

Ele não tem a capacidade de ingerir algo orgânico ou inorgânico e reproduzir-se, estender-se ou produzir uma semente que produziria outro foguete.

E as máquinas em geral, elas têm vida? Para algo ter vida precisa ingerir comida?

Precisa ingerir algum tipo de alimento, seja ele sutil ou grosseiro.

Dr. Berzin: Isso confundiu Rinpoche, porque foguetes ingerem combustível e máquinas ingerem eletricidade. Elas possuem movimento e se movem e, além disso, máquinas podem produzir outras máquinas. Então é um pouco difícil para Rinpoche entender o significado da palavra ocidental “vida”.

Divisão celular?

Dr. Berzin: Você poderia explicar melhor a que se refere, pois máquinas podem produzir outras máquinas.

Divisão celular é crescimento. Células se dividem e se reproduzem.

Dr. Berzin: Está difícil encontrar uma palavra tibetana para célula. Eu estava explicando para Rinpoche o caso de alguns tipos de minhocas que podemos dividir em duas e elas viram duas minhocas.

Eu também estava dizendo isso para explicar que se você destrói uma célula, ela perde seu poder de duplicar-se. Ela tem essa capacidade de se duplicar, mas pode perdê-la.

Serkong Rinpoche: E as células da madeira no pilar? Essa madeira não possui células?

São células que perderam a capacidade de se multiplicar.

Qual o critério para se dizer que possuem ou não essa capacidade?

É que não importa o que façamos, elas não irão se duplicar. Mas se você acrescentasse uma outra célula, que estivesse viva, ela poderia usar essas células (mortas) como base para o seu crescimento, e duplicar-se.
Será que eu poderia acrescentar alguma coisa aqui? Existem determinadas árvores, que são árvores individuais ou grupos de árvores que se diz que possuem certas qualidades, energias especiais, espíritos especiais; qual a natureza disso?

Dr. Berzin: Agora você está entrando em um assunto totalmente diferente. Estamos falando de árvores e não dos espíritos.

Eu gostaria de saber se, da perspectiva tibetana, existe uma diferença entre árvores e pedras. Quer dizer, pedras não, não uma parte da terra, mas árvores e metal.

Dr. Berzin: Plantas geram árvores e galhos e coisas do gênero, enquanto pedras e pedaços de ferro não. É a mesma coisa, só muda a nomenclatura, é como você quiser.

Mas essas coisas não são consideradas vivas, pois não possuem mente?

Você aceita o fato de uma planta, uma árvore, estar viva, mas não aceita o fato dela ter uma mente? É exatamente assim no tibetano. É muito melhor não usar a palavra “vida” para traduzir a palavra tibetana, pois só gera confusão, já que não são equivalentes. A palavra tibetana é “srog”, significando algo que tem consciência. Agora, algo que tem vida é outra coisa. No tibetano, temos animais, plantas e minerais. Colocamos os animais em uma categoria e as plantas e os minerais em outra. Os ocidentais colocam os minerais em uma categoria e as plantas e animais em outra, o problema todo é esse. Então Rinpoche gostaria de saber qual é a razão de colocarmos os animais e as plantas na mesma categoria, enquanto eles colocam as plantas junto com os minerais, apesar de reconhecerem que são coisas diferentes. Você está afirmando que “vida” não é a mesma coisa que “ter mente”, no sentido que os tibetanos afirmam que “vida” não é exatamente a mesma coisa que “estar consciente”?

Durante um ensinamento, alguém comentou que estava tendo dificuldade para diferenciar uma planta de um animal e perguntou ao Rinpoche. Rinpoche respondeu com o exemplo de um funeral no Tibete, onde estavam levando um homem para ser cremado e um médico altamente realizado aproximou-se e disse: “Este homem não está morto”. Ele levou o homem para casa e o reviveu, este estava em um estado de consciência muito sutil. Se você não sabe, se você não consegue nem saber se um ser humano está vivo ou morto, se há ou não uma mente em seu corpo, também não conseguirá com uma planta. É difícil dizer que uma planta tem ou não uma mente ou que um ser humano tem ou não uma mente se você não sabe o que é uma mente. Mas, por outro lado, é difícil dizer que uma planta não está viva, que não está crescendo.

Dr. Berzin: Sim, mas nossa discussão é sobre o que significa dizer que algo está vivo. Rinpoche gostaria de entender o que significa o conceito ocidental de vida, de estar vivo?

É simplesmente a força de crescer. Bom, como se poderia explicar que uma planta cresce mais se você conversar com ela?

Dr. Berzin: Rinpoche disse que é bem possível que falar com a planta afete seu crescimento. Não há nada de estranho ou notável nisso, mas não prova que a planta tem uma mente. Isso é apenas a reação das coisas a causas e condições dentro da apresentação de que tudo surge dependentemente. Só porque algo reage a estímulos não significa que possui uma mente. 

Serkong Rinpoche: Por exemplo, há plantas, como a Dioneia, que comem insetos, e algumas, mas não todas, possuem uma mente. Mas o fato de pegarem insetos e os destruírem não é motivo suficiente para se dizer que algo possui uma mente, pois uma armadilha elétrica para moscas também pega moscas e as destrói, e você não diria que é algo vivo. Não só que é vivo, mas que possui uma mente.

Então, será que poderíamos dizer que coisas que parecem com seres humanos andando por aí não possuem mente?

Dr. Berzin: Claro, existem vários robôs assim por aí. Na costa leste e no meio oeste [dos Estados Unidos] há uma rede de pizzarias que possuem robôs em forma de ursos, macacos e gorilas em um palco e controlados por computador, e eles cantam e dançam. Certa vez entramos em uma dessas pizzarias e o Rinpoche achou, em um primeiro momento, que todos estavam vivos, apesar de obviamente não estarem. Há milhares de coisas assim. Afinal, estamos em um país famoso por suas engenhocas. Então não é preciso pensar muito para responder sua pergunta.

É Possível Alguém Tomar para Si a Doença do Outro?

Tenho mais uma pergunta. Refere-se à história que Kunu Lama contou sobre o homem que conseguia tomar para si a doença de outra pessoa. Para mim, parece uma contradição à lei do carma que o Buda ensinou, que se você não criar a causa para a doença, você não vivenciará a doença.

Claro, essa pessoa acumulou o carma para ser capaz de tomar para si a doença de outra pessoa; isso não acontece sem motivo.

Dr. Berzin: O Rinpoche acumulou o carma, gerou o potencial ou fez algumas ações no passado que o permitiu receber uma refeição de você, receber comida de você aqui e comer. Caso contrário, não seria possível ao Rinpoche comer aqui. Seria como um mendigo que chega e é mandado embora.

Há uma expressão que diz que o Buda não consegue remover as ilusões das pessoas como quem remove um espinho do pé. Mas isso soa como se fosse possível, como se todo o sofrimento que o Buda não pôde remover, outra pessoa pudesse.

O que aconteceu com a pessoa do exemplo é a mesma coisa. Ela gerou o carma para ter sua doença removida por uma determinada pessoa. É a mesma coisa: O Buda não consegue remover o sofrimento como quem remove um espinho, a não ser que você tenha o carma de ser ajudado pelo Buda. Se você não gerou o carma e não tem o potencial para isso acontecer, não acontecerá. É como se você trabalhasse em uma fábrica, é preciso que lhe ensinem como operar as máquinas, e então você saberá operá-las. Você não pode simplesmente entrar e tudo começar a funcionar sem motivo algum; vem de um processo causal.

Mas essa questão em particular é crucial; é muito bom perguntar sobre carma. Não é muito inteligente perguntar se é possível ter coisas que parecem seres humanos, mas não têm olhos. Essa é uma pergunta idiota! Claro que é verdade o fato de que se você não gerou carma no passado para que essas coisas aconteçam, para que seja curado por alguém, isso não acontecerá. Essas coisas não acontecem sem motivo algum; caso contrário, como você disse, haveria contradições. Pensar sobre isso é muito bom. É como renascer em uma terra pura, que é como um paraíso, mas não exatamente, essas coisas não acontecem sem que tenhamos gerado as causas. Não é como se você pudesse fazer qualquer coisa e depois ir para um paraíso e aproveitar tudo.  Você precisa criar você mesmo essa situação, com suas próprias ações.

Por exemplo, há um grupo de pessoas aqui hoje e todos nós geramos as causas e temos o carma para estar aqui hoje neste grupo. Se você não tivesse o carma para estar aqui neste grupo e participar destes ensinamentos, deste evento, você não teria aparecido, você não teria vindo. Há alguns anos, no monastério de Gomang, lembro-me que havia um mongol muito estudado. O abade do monastério na época era extremamente instruído, um grande mestre. No sistema educacional dos monastérios, há o que chamamos o grau Lharampa de geshe, que seria como o nível mais elevado de Ph.D. O abade disse ao mongol: “Não faça os exames para obter esse grau, não passe por esses procedimentos”, mas o mongol queria obter esse grau.

Quando o abade saiu do monastério, o mongol disse: “Ao dizer que eu não devia fazer os exames, o abade estava demonstrando percepção extra-sensorial. Mas segundo as normas de disciplina, você não deve demonstrar percepção extra-sensorial, então ele deve estar mentindo”.

Nesse caso, por consideração à autoridade do abade, o mongol fez os exames para o grau imediatamente anterior ao último, pois tinha estudado muito, sabia muito bem os textos e queria fazer os exames e obter alguma graduação. No sistema monástico, uma vez que você tenha feito os exames para uma graduação mais baixa e obtido essa graduação, você não pode fazer os exames para a graduação mais avançada, pois você já recebeu a graduação daquela categoria em particular.

Quando o abade faleceu, o mongol decidiu que queria fazer o exame para a mais alta graduação, pois o abade não estava mais vivo e ele achou que não tinha problema. Havia dez mil monges presentes no exame. O exame é feito na frente de uma grande assembleia. Primeiro você tem que recitar alguns textos de memória e depois parte para o exame em si, que é na forma de debate. Então ele posicionou-se na frente de um pilar para fazer a recitação e quando foi tomar seu assento no pilar e começar a recitação, assim que colocou o pé no assento, caiu morto.

Ele não conseguiu fazer o exame para o grau mais elevado porque não tinha carma para isso. O abade sabia disso e por isso disse que ele não deveria fazer o exame. Depois as pessoas olharam nos cadernos e nos pertences do mongol e encontraram suas notas dizendo que ele tinha perguntado para seu protetor do dharma se haveria algum problema em fazer o exame. Isso é mais ou menos como perguntar a um oráculo. A resposta foi de que não deveria, mas como ele não gostou da resposta e queria fazer os exames de qualquer jeito, ele acusou o abade de fingir ter percepção extra-sensorial e foi fazer os exames.

Nesse exemplo, a questão não é se o abade tinha ou não percepção extra-sensorial, a questão é: se você não gerou o carma para um determinado evento ocorrer, ele não irá ocorrer, não importa o quanto você force. O mesmo é verdade no caso de tomar para si a doença de alguém.  As duas partes precisam ter gerado o carma para que isso ocorra.

Top