Mahamudra: Meditação na Atividade Mental

Shamata e Vipassana

Todos esses pontos que discutimos são relevantes para a compreensão da meditação mahamudra. A meditação Mahamudra tem dois estágios básicos: as práticas para atingir shamata e as práticas para atingir vipassana.

Shamata é um estado mental sereno e calmo, focado, no caso do mahamudra, na natureza convencional da atividade mental. Na tradição Gelug Kagyu de mahamudra, focamos na mera criação de aparências e cognição que ocorrem em cada momento de cognição. Fazemos isso primeiro com a visão, depois com outros tipos de cognição sensorial, depois com o pensamento e depois com cognição mental, sem pensar conceitualmente sobre o que aparece. Independentemente do tipo de atividade mental, nós não focamos no conteúdo.

Vipassana é um estado mental excepcionalmente perceptivo, focado, no caso do mahamudra, na natureza mais profunda da atividade mental. Focamos na vacuidade da atividade mental – a ausência de sua existência de maneiras extremas impossíveis, como, por exemplo, existindo verdadeiramente.

Em shamata, não nos concentramos no conteúdo de nossa atividade mental, que de qualquer forma é impura. Como não focamos de maneira não-conceitual na vacuidade, no conteúdo há necessariamente a criação de aparências de existência verdadeira e o apego pela existência verdadeira. Isso significa que, mesmo durante a concentração de shamata na natureza convencional da atividade mental, nossa atividade mental ainda é impura. Ela faz com que sua própria natureza convencional pareça realmente existir e se apega a existir dessa maneira impossível. No entanto, isso é menos perturbador do que o surgimento da aparência de existência verdadeira e apego à existência verdadeira, que ocorrem quando focamos no conteúdo sempre mutante de nossa atividade mental. A natureza convencional de nossa atividade mental permanece constante. Ela nunca muda, embora, é claro, ela não seja um fenômeno estático, pois toma um objeto diferente a cada momento.

Como a natureza convencional da atividade mental nunca muda, e como o foco nela não evoca as emoções perturbadoras habituais que focar em seu conteúdo sempre mutante evoca, é muito mais fácil perceber a vacuidade da natureza convencional da atividade mental do que perceber a vacuidade de um conteúdo da atividade mental. Este é um dos principais benefícios da meditação mahamudra.

No vipassana do mahamudra, nos concentramos na vacuidade da natureza convencional de nossa atividade mental. Só isso nos livra da atividade mental impura. Apenas não focar no conteúdo de nossa atividade mental impura, que é o que fazemos na meditação shamata, não nos livra da atividade mental impura. Isso é só uma trégua temporária do tipo de atividade mental impura que é direcionada ao conteúdo de nossa atividade mental, e só isso. Essa trégua, no entanto, permite que nos concentremos com mais facilidade na vacuidade de nossa atividade mental durante a meditação vipassana, porque temos menos emoções perturbadoras e nosso objeto de foco permanece constante. A tradição Gelug Kagyu do mahamudra, de acordo com o Texto Raiz para a Preciosa Tradição Gelug Kagyu do Mahamudra, do Quarto Panchen Lama, apresenta a meditação dessa maneira.

Discussão Detalhada Sobre Shamata no Mahamudra 

A prática da meditação shamata no mahamudra exige conseguirmos distinguir a natureza convencional da atividade mental de seu conteúdo. Isso requer o fator mental (consciência subsidiária) da distinção, ou reconhecimento, como algumas vezes é traduzido. É um dos cinco fatores agregados de nossa experiência. O fator mental da distinção se concentra em uma característica definidora incomum de alguma coisa, algo dentro de um campo cognitivo, como o nosso campo de visão, por exemplo, e distingue essa coisa das outras coisas nesse campo. Esse fator mental nos permite focar em um item dentro de um campo cognitivo, isso e não aquilo, embora na cognição sensorial não atribuamos um nome ao que distinguimos. Um exemplo simples é distinguir a luz do escuro ou a forma colorida do rosto de alguém das formas coloridas da parede. Até uma criança ou um animal conseguem fazer isso.

Aqui, em um momento de atividade mental, precisamos conseguir distinguir a natureza convencional da atividade mental de seu conteúdo. Isso é muito difícil de fazer. É muito difícil distinguir a mera criação de aparências e cognição.

O difícil não é só distinguir a mera criação de aparências e cognição como nosso objeto focal, o processo de meditar em si é difícil. Assim como no caso da meditação sobre o amor, não estamos focando aqui na natureza convencional como um objeto cognitivo, que é o que fazemos com a respiração. Não estamos meditando como uma atividade mental observando um objeto que é diferente dela e focando nele, como faríamos ao focar na respiração. Apenas acompanhamos o objeto focal (a própria atividade mental) com distinção, concentração e assim por diante, conforme ela ocorre ao longo de uma sequência de momentos. Porém, ao contrário do que acontece no caso do amor, não precisamos gerar o objeto de foco novamente. A natureza convencional da atividade mental ocorre naturalmente o tempo todo.

Na meditação shamata são necessários os fatores mentais da atenção, presença mental, vigilância e concentração. Atenção ou "trazer à mente" se baseia em distinguir. Somente quando somos capazes de distinguir o objeto de meditação é que podemos prestar atenção enquanto ele está acontecendo. O que está acontecendo é a atividade mental. A atividade mental é acompanhada de atenção à natureza convencional da atividade mental, caso contrário, o objeto não poderia ser nosso objeto focal. Não é, no entanto, que exista um "eu" separado que esteja prestando atenção ao objeto, como observador.

Observe que a atenção não é o mesmo que a consciência reflexiva (rang-rig) definida em vários sistemas budistas de princípios filosóficos. A consciência reflexiva é uma consciência separada que acompanha uma cognição e toma cognitivamente a própria atividade mental e a falácia ou não falácia que ela é. Ela não investiga a falácia, apenas a percebe. Além disso, a consciência reflexiva não faz do objeto de cognição que a acompanha uma aparência cognitiva, como uma consciência subsidiária, como a atenção, faz. Em vez disso, a consciência reflexiva faz uma aparência cognitiva apenas das consciências primárias e subsidiárias da cognição. Ela é responsável pela capacidade de lembrarmos de ter tido essa cognição.

A Gelug Prasangika não aceita nem mesmo a existência convencional da consciência reflexiva. A consciência primária se concentra em um objeto cognitivo, ela reconhece explicitamente seu objeto de foco e implicitamente reconhece sua própria ocorrência e falácia ou não falácia. Isso permite uma lembrança posterior da cognição. A atenção, aqui, enfoca o mesmo objeto focal que a consciência primária - a saber, a natureza convencional da atividade mental que está ocorrendo. Como a atenção não está focada no conteúdo da cognição, a meditação está desatenta ao conteúdo. Está atenta apenas à mera criação de aparências e cognição.

O que é presença mental? A presença mental é a cola mental, que gruda no objeto de foco e não o solta. A vigilância é vigiar mentalmente; faz parte da presença mental. Se houver uma retenção mental do objeto de foco e a retenção for mantida, uma parte automática dessa retenção será a vigilância em relação à condição da retenção. Mas não é que exista um "eu" separado que esteja observando e vigilante.

Se concebermos nossa meditação em termos de um "eu" separado ou de fator mental de "vigilância" separado, vigiando, poderemos facilmente perceber que há um grande problema em nossa meditação. Poderemos nos tornar paranoicos e entrar em uma maneira dualista de meditar. Nossa atenção ficará dividida: parte ficará focada no objeto e parte ficará focada em vigiar, em ser o policial. A vigilância é uma parte natural da presença mental.

A concentração é a permanência mental, permanecer no objeto. Se houver retenção mental do objeto (presença mental), também haverá permanência mental (concentração).

Quando falamos desses três fatores mentais, é quase como se estivéssemos falando da mesma atividade de três pontos de vista diferentes. A atividade mental está segurando seu objeto e não soltando; isso é presença mental. Se estiver fazendo isso, ficará no objeto; isso é concentração. Se ele estiver segurando o objeto e permanecer assim, isso significa que existe uma vigilância que não a deixa soltar o objeto.

Resumindo, na meditação shamata do mahamudra, a atenção se concentra na atividade mental que está acontecendo, não no conteúdo dela. Não está direcionada à caneca e focalizando sua forma colorida. Não está focando no fato de que a atividade mental está vendo a caneca. Não está focando nos fatores mentais que podem acompanhar qualquer momento de ver a caneca: emoções de apego a ela como "minha" e assim por diante, porque isso também é conteúdo. A atenção está focada apenas na atividade mental em si: a mera criação de aparências e cognição. Ela se concentra na natureza convencional da atividade mental e é acompanhada pelos fatores mentais de distinção, presença mental, vigilância e concentração.

Obviamente, isso não é muito fácil, mas é o que tentamos fazer com a meditação shamata no mahamudra. Para termos sucesso nisso, precisamos das preliminares comuns e incomuns; caso contrário, não chegaremos a lugar algum. Não conseguiremos nem distinguir o objeto de foco correto para a meditação mahamudra, quanto menos focar nele.

Preliminares

Precisamos de uma direção segura (refúgio), que é seguir com a nossa vida na direção segura da terceira e quarta nobres verdades – as verdadeiras cessações (fim do sofrimento) e os verdadeiros caminhos que as levam a acontecer. A terceira e quarta nobres verdades são as Três Joias mais profundas.

A direção segura é um tópico complexo: existem as Três Joias mais profundas, as Três Joias aparentes e as representações das Três Joias. As Três Joias mais profundas são a terceira e a quarta nobres verdades: verdadeiras cessações e verdadeiros caminhos. Em termos da Joia do Buda, olhamos para essas duas verdades do ponto de vista de serem uma fonte de inspiração. Olhando do ponto de vista da Joia do dharma, elas são uma fonte de realizações. Olhando do ponto de vista da Joia da Sangha, elas são uma fonte de influência iluminadora.

Dar uma direção segura à nossa vida significa que estamos tentando conquistar verdadeiros caminhos e verdadeiras cessações no contínuo de nossa própria atividade mental. Não estamos fazendo meditação mahamudra apenas porque é divertida e "diferente". Estamos meditando para nos livrar da primeira e segunda nobres verdades como conteúdo de nossa atividade mental. Nosso objetivo é alcançar uma verdadeira cessação da primeira e segunda nobres verdades, fazendo com que a quarta nobre verdade seja o conteúdo de nossa atividade mental. Assim, uma direção segura é absolutamente essencial.

Depois, precisamos apreciar a vida humana preciosa que temos, a inteligência e a capacidade de distinguir, em um nível muito sofisticado, a natureza de nossa atividade mental e seu conteúdo. Um animal não consegue fazer isso. Também contemplamos o fato de que vamos perder nossa vida humana preciosa um dia, e não sabemos quando. Portanto, precisamos aproveitar agora as nossas habilidades e oportunidades, praticando o dharma, como o mahamudra.

A renúncia também é essencial. O que é que estamos renunciando? Estamos renunciando à primeira e à segunda nobres verdades. Renunciar é afastar-se de algo, "quero me libertar disso", e realmente afastar-me, abandonar isso. O que temos que abandonar? Temos que abandonar em nossa meditação o conteúdo impuro de cada momento de nossa atividade mental e nosso foco nele. Nós temos que renunciar. Temos que renunciar à raiva, renunciar ao tédio, renunciar à sensação de dor nas pernas. Não importa qual seja o conteúdo, focamos na natureza convencional da atividade mental em si que está criando sua aparência (o holograma mental) e tendo a cognição de si mesma. Só isso. Portanto, a renúncia é essencial aqui, caso contrário, ficaremos presos ao conteúdo e seremos perturbados por ele.

Bodhichitta também é absolutamente essencial. Bodhichitta visa a iluminação futura que pode ser imputada em nosso contínuo mental, e foca nela com a intenção de alcançá-la e com isso beneficiar todos os seres. Assim, Bodhichitta se concentra na total realização da terceira e quarta nobres verdades que ainda não estão ocorrendo em nossa atividade mental, mas para as quais temos os fatores da natureza búdica que permitirão que sua realização aconteça. Bodhichitta não tem como objetivo a iluminação do Buda Shakyamuni, não tem como objetivo a iluminação em geral. Bodhichitta visa a nossa própria iluminação individual subjetiva futura, com base em suas causas, nossos fatores da natureza búdica.

Para conseguirmos meditar sobre bodhichitta corretamente, precisamos identificar e distinguir o objeto focal, que é a terceira e quarta nobres verdades, em seu sentido pleno como em um buda. Elas ainda não existem em nossos contínuos mentais, mas existirão, com base na natureza búdica, quando nossos contínuos mentais tiverem experimentado todas as causas para a sua realização.

Temos a intenção de realizar a terceira e a quarta nobres verdades mais adiante. Por quê? Porque queremos beneficiar todos os seres. A intenção é realizar para beneficiar todos os seres, tanto quanto possível. Isto porque a maneira como os beneficiamos agora é inadequada. Nós não entendemos todas as causas de alguém estar agindo de uma certa maneira. Não temos ideia do que realmente ensinar a essa pessoa para ajudá-la. E não temos ideia de quais serão os efeitos do que ensinamos - os efeitos não apenas sobre essa pessoa, mas também sobre todas as outras pessoas com quem essa pessoa irá falar e interagir no futuro. Como o que ensinamos afetará seus filhos e as pessoas com quem eles falarão e interagirão no futuro? Somente um buda sabe isso, porque somente um buda tem a criação da aparência e cognição da originação dependente sem limitações. Um buda vê a coisa toda. Ser capaz de beneficiar plenamente os outros é o motivo pelo qual precisamos nos tornar budas. Não é apenas para que possamos nos livrar de nossas emoções perturbadoras e apego ao ego - um arhat se livrou disso.

Também precisamos de compaixão - o desejo de que os outros se livrem de suas primeira e segunda nobres verdades, alcançando a terceira e quarta nobres verdades em sua atividade mental. A compaixão intensifica a energia da nossa intenção de alcançar a iluminação. Também precisamos de disciplina ética e concentração para alcançar shamata.

O mais importante é a inspiração de nossos professores espirituais, nossos gurus. A inspiração costuma ser traduzida como bênção, mas essa é uma tradução muito ruim, com base em outra religião. Um termo melhor é inspiração. A palavra sânscrita significa uma elevação da nossa energia. Na meditação shamata no mahamudra, nos concentramos na natureza convencional de nossa atividade mental. Embora a meditação precise ser não-dual, poderíamos dizer que a natureza convencional da atividade mental foca na natureza convencional da atividade mental. Assim, podemos descrever a meditação na natureza convencional da atividade mental a partir de dois pontos de vista: o ponto de vista da natureza convencional como objeto focal e o ponto de vista da natureza convencional como o que está focando. Em outras palavras, a natureza convencional da atividade mental é simultaneamente o objeto e o agente, ou simultaneamente o objeto e o sujeito. Quanto mais intensa a natureza convencional se torna, mais fácil é distingui-la, dos dois pontos de vista.

A inspiração de nossos gurus intensifica a natureza convencional de nossa atividade mental. Ela se torna, de certo modo, mais brilhante, mais energizada. Quanto mais energizada for sua natureza convencional, mais fácil ficará distingui-la a cada momento de atividade mental e se concentrar nela. Além disso, quanto mais energizada a natureza convencional de nossa atividade mental, mais intensa ela se torna como conhecedora na meditação. Certamente, essa intensificação ou energização provém de um relacionamento saudável com um professor espiritual, não de um relacionamento doentio. Um relacionamento saudável é aquele que elimina emoções perturbadoras, não aquele que as aumenta.

Gerando Força Positiva (Mérito)

Além dos estágios graduais do lam-rim que constituem as preliminares comuns, também precisamos de preliminares especiais incomuns para obter sucesso na meditação mahamudra. As preliminares incomuns são prostração, meditação Vajrasatva, oferendas de mandala, guru-yoga e assim por diante. Elas nos ajudam a gerar uma força mais positiva, o que costuma ser chamado de mérito. "Mérito" não é o melhor termo de tradução, pois parece que estamos ganhando pontos e, quando tivermos ganhado o suficiente, ganharemos uma torradeira. Não é isso. É força positiva; ela fica cada vez mais forte, de modo que, como resultado, é possível, por exemplo, realmente distinguirmos a natureza convencional de nossa atividade mental.

É um pouco como falar de redes auto-organizadas. Quando existe uma rede aberta, como em um organismo, a energia entra e sai. Quando essa energia atinge um determinado nível quântico ou ponto de mudança de fase, todo o sistema passa para um novo nível de organização. Um exemplo simples é que, se você é destro e perde o braço direito, o cérebro se reorganiza para que você possa usar a mão esquerda para escrever. O sistema se reorganiza. O mesmo acontece com sistemas inorgânicos, como um lago congelado. Quando energia térmica suficiente entra no sistema, o gelo sólido passa por uma mudança de fase e se reorganiza como água líquida.

Da mesma forma, quando houver força positiva suficiente no sistema de atividade mental - a rede dos fatores agregados que compõem cada momento de nossa experiência -, eventualmente, chegará a um certo ponto no qual a coisa toda se reorganizará. Nesse ponto, seremos finalmente capazes de distinguir corretamente a natureza convencional da atividade mental. Mais tarde, quando adquirirmos ainda mais força positiva, o sistema se reorganizará mais uma vez e obteremos uma cognição conceitual da vacuidade. Na próxima fase de reorganização, obteremos uma cognição não conceitual da vacuidade. Todas essas mudanças de fase requerem uma quantidade enorme de força positiva.

A força positiva pode vir da inspiração de nossos professores espirituais, de tomar uma direção segura, da compaixão, da bodhichitta, de todas essas coisas. A força positiva de cada uma dessas coisas precisa entrar no sistema, na rede de nossos agregados, a fim de darmos saltos quânticos. Com esses saltos, o sistema passa por mudanças de fase progressivamente e se reorganiza, como o gelo que se transforma em água e depois a água em vapor. Eventualmente, a rede se reorganizará de tal forma que não haverá mais o lado impuro da atividade mental: criação de aparências de existência verdadeira e apego à existência verdadeira. Com uma verdadeira cessação do lado impuro, só experimentamos o lado puro, para sempre. Esse é o estado de Buda.

Tenha em mente que, durante todo esse processo de evolução, conforme nossa atividade mental se reorganiza em diferentes níveis à medida que progredimos no caminho, as naturezas convencional e mais profunda da atividade mental permanecem sempre as mesmas.

As Diferenças entre Inato, Inerente e Individual

Não há tempo suficiente para uma discussão detalhada sobre a meditação vipassana no mahamudra, vipassana na natureza vazia da atividade mental. Na verdade, já mencionamos alguns pontos em nossa discussão sobre atividade mental pura e impura. Mas, deixe-me indicar apenas mais alguns pontos que podem ser úteis - especificamente, a diferença entre três termos budistas: inato, inerente e individual.

Algo é inato se vier como parte de pacote de outras coisas. "Surgimento simultâneo" é a tradução literal do termo. Simultaneamente a cada momento de atividade mental surge sua natureza convencional e sua natureza mais profunda - o que é e como existe. Elas são inatas. Isso está ok; não há nada de errado com isso. É assim que as coisas são.

Inerente, como na expressão existência inerente, significa algo por parte do objeto que, por seu próprio poder, o torna o que é - independente do rotulamento mental ou em conjunto com o rotulamento mental. Segundo a Gelug Prasangika, algo inato, como a natureza convencional da atividade mental, não é inerente. A característica definidora convencional da atividade mental não é algo que está lá, como um código de DNA em um gene, e que, por seu próprio poder, a torna atividade mental, torna-a o que é. Não existe tal coisa inerente.

Individual significa ter sua própria sequência de continuidade, com um momento após o outro. Quando falamos sobre um contínuo mental, um contínuo de atividade mental, isso é individual no sentido de que existe uma sequência definida de causa e efeito que descreve o surgimento de momentos subsequentes. A atividade mental e seu contínuo são individuais.

Assim, a atividade mental sempre mantém suas qualidades inatas. Sempre é individual, mas não contém nada inerente que a torne o que é. Nem sua individualidade, nem sua natureza convencional ou mais profunda fazem a atividade mental existir como "atividade mental".

Além disso, não há nada que possa ser encontrado em "mim", como a minha individualidade, por exemplo, que eu tenha que encontrar e que me fará um indivíduo por seu próprio poder. Muitas pessoas gastam tanto tempo e esforço tentando encontrar aquela coisa única que faz com que eu seja "eu" e não você. É claro que todos são indivíduos, mas sentem que precisam encontrar algo inerentemente existente e único dentro de si que os torne um indivíduo. Eles então se sentem compelidos a ter que expressar essa individualidade, como se isso fosse algo que precisasse ser provado ou demonstrado para existir. É quase como se sentissem que expressar suas individualidades tornasse essas individualidades mais reais, ou mesmo tornasse a própria pessoa mais real.

Isso é um absurdo. Convencionalmente, é verdade que eu sou eu e não você, mas não há nada que se possa encontrar, inerente a mim, e que por seu próprio poder me faça um indivíduo e me faça quem sou. Mas ainda assim, sou um indivíduo. O "eu" existe como uma ilusão, porém, o "eu" funciona. O mesmo se aplica à nossa atividade mental.

Isso conclui nossa introdução geral ao mahamudra. Eu apresentei em um nível um pouco avançado, pois acho que a maioria de vocês tem base para conseguir acompanhar. Peço desculpas se algo não ficou claro ou ficou confuso. Alguma pergunta?

Perguntas

Mais Detalhes sobre a Purificação do Carma

Enquanto estamos totalmente absorvidos na vacuidade, de forma não-conceitual, estamos realmente purificando carmas específicos? Quando saímos de nossa absorção, algum carmas se esgotaram e outros que ainda restam?

Não é bem assim. O que estamos fazendo é enfraquecendo a força de nosso apego à existência verdadeira, para que possamos acabar com o apego à existência verdadeira, que é o que ativa nossos legados cármicos e hábitos de carma. Não é que agora eu tenha me livrado de setenta por cento do meu carma e me reste trinta por cento. Não é que agora eu esteja livre do carma para renascer como um mosquito, mas ainda me resta o carma de renascer como uma mosca.

Em certo sentido, estamos trabalhando para enfraquecer a força do hábito de apego à existência verdadeira, que dá origem a mais ocorrências de criação de aparências de existência verdadeira e apego à existência verdadeira. É isso que estamos enfraquecendo. É isso que estamos purificando.

Quando os ensinamentos do Kalachakra discutem esse processo, e falam em esgotar os ventos do carma, podemos entender isso de maneira semelhante. Estamos enfraquecendo a energia por trás da atividade mental impura que amadureceria a partir dos hábitos de apego à existência verdadeira.

Purificação de Vajrasatva

A prática de Vajrasatva purifica o carma da mesma maneira?

A prática de Vajrasatva com a repetição do mantra de cem sílabas e visualização da purificação ocorrendo graficamente é apenas uma purificação temporária e parcial. Para que funcione, não se trata apenas de dizer as palavras mágicas centenas de milhares de vezes. A meditação precisa ser feita com perfeita concentração, motivação e assim por diante. Se for feita dessa maneira, e certamente uma compreensão conceitual da vacuidade ajudaria também, tudo o que conseguiremos fazer, na melhor das hipóteses, será limpar a lista de legados cármicos. Não tocaremos nos hábitos.

Essa purificação é temporária. Não garante que não geraremos novos legados cármicos. Certamente iremos gerar, porque ainda não nos livramos do apego à existência verdadeira. A purificação temporária nos dá apenas um pouco de fôlego para podermos obter a realização da vacuidade, e assim por diante, com mais facilidade. Certamente não conseguiremos uma verdadeira cessação de nada.

A Purificação do Carma nos Arhats Hinayana 

Que nível de purificação de carma um Arhat Hinayana obteve?

Isso realmente depende de qual sistema estamos olhando, se do ponto de vista do Hinayana ou do Mahayana. Dentro do Hinayana, temos o ponto de vista Teravada e os pontos de vista Vaibhashika e Sautrantika conforme aprendemos no Mahayana. Dentro do Mahayana, temos o ponto de vista não Prasangika e o ponto de vista Prasangika. Cada sistema afirma algo diferente.

Hinayana é um termo geral, levemente depreciativo, cunhado pelos mahayanistas para englobar dezoito escolas de budismo. No Segundo Conselho, após a morte do Buda Shakyamuni, o Hinayana se dividiu em Teravada e Mahasanghika. No Terceiro Conselho, o Sarvastivada se separou do Teravada. Mais tarde, o Sarvastivada se dividiu em Vaibhashika e Sautrantika.

Os vários sistemas Hinayana compartilham certas afirmações sobre o carma.

  • Nenhum deles afirma a existência de hábitos cármicos; todos eles afirmam a existência apenas de legados cármicos (sementes).
  • Todos afirmam que os arhats alcançaram uma verdadeira cessação de todo carma. Mas eles não alcançaram essa verdadeira cessação imediatamente, quando atingiram o nirvana (libertação) durante suas vidas e se tornam arhats. Eles só a alcançaram quando morreram, com o parinirvana, no final daquela vida. O Teravada e o Vaibhashika afirmam que o contínuo mental de um arhat cessa com o parinirvana, enquanto o Sautrantika afirma que continua para sempre.
  • Todas as escolas Hinayana concordam que, durante o período entre o nirvana e o parinirvana de um arhat, todos os legados cármicos remanescentes dele ou dela precisam amadurecer. Os legados cármicos restantes dos arhats amadurecem mais fracos, o que é semelhante ao que afirma o Mahayana, que após a cognição não conceitual da vacuidade os amadurecimentos de carma negativo são mais fracos. No entanto, todos precisam amadurecer para que o arhat se livre deles.
  • Nenhuma das escolas Hinayana afirma que o apego à existência verdadeira ou a criação de aparências de existência verdadeira são causas do sofrimento verdadeiro, e, portanto, coisas das quais devemos nos livrar (abandonar). O carma é ativado meramente pelo apego à identidade "sólida" de uma pessoa. Todas as emoções perturbadoras surgem desse apego.

O Teravada não faz uma grande distinção entre budas e arhats. A principal diferença é que os arhats conhecem tudo sobre o dharma, enquanto os budas também conhecem todos os meios hábeis para ajudar os outros. Nenhum dos dois são oniscientes no sentido de conhecer todos os fenômenos conhecíveis, como o caminho para chegar a uma determinada cidade, por exemplo. De acordo com o Teravada, os arhats não têm mais a identidade sólida de uma pessoa ou emoções perturbadoras quando atingem o nirvana. Apesar disso, seus legados cármicos restantes ainda amadurecem durante o período entre o nirvana e o parinirvana.

O Mahasanghika e o Sarvastivada afirmam que, embora os arhats não manifestem mais emoções perturbadoras quando atingem o nirvana, eles ainda têm emoções não-manifestas. É isso que ativa seus legados cármicos remanescentes até alcançarem o parinirvana. Assim, essas escolas Hinayana afirmam uma diferença muito maior entre arhats e budas do que o Teravada. De fato, a divisão Mahasanghika do Teravada preocupou-se principalmente com esta questão: como explicar o fato de que os arhats ainda podem ser seduzidos em sonhos e ter emissões noturnas? O Sarvastivada, e, portanto, suas divisões posteriores, Vaibhashika e Sautrantika, concordaram com a posição Mahasanghika de que os arhats são mais limitados que os budas. Eles ainda têm emoções perturbadoras não-manifestas.

Assim com no Sautrantika, as escolas Mahayana afirmam que, após o parinirvana, os contínuos mentais dos arhats continuam para sempre. No entanto, ao contrário de qualquer escola Hinayana, o Mahayana afirma que, embora os arhats atinjam uma verdadeira cessação do carma e de seus legados, eles não alcançaram uma verdadeira cessação dos hábitos do carma. Eles também não alcançaram uma verdadeira cessação dos hábitos das emoções perturbadoras. As escolas Hinayana não afirmam a existência de hábitos de nada. Assim, de acordo com o Mahayana, os arhats têm um sutil desejo e apego ao extremo tranquilo do nirvana. Embora esse desejo e apego sutis não sejam realmente emoções perturbadoras, eles ainda assim precisam ser superados para que se progrida ainda mais, para o estado de Buda.

De acordo com as escolas não-Prasangika, os arhats não se livraram do apego à existência verdadeira de todos os fenômenos ou aos seus hábitos. No entanto, eles alcançaram verdadeiras cessações do carma e de seus legados. Assim, eles concordam com o Hinayana que o apego à identidade sólida de uma pessoa é o que ativa os legados cármicos e que os arhats Hinayana se livraram desse apego.

A Gelug Prasangika e a Karma Kagyu Prasangika afirmam que os arhats não podem atingir uma verdadeira cessação do carma e seus legados apenas com a cognição não-conceitual da vacuidade da identidade sólida de uma pessoa, conforme é afirmado pelas escolas Hinayana e não-Prasangika. Para que os arhats realmente alcancem uma verdadeira cessação e, portanto, o nirvana, precisam obter uma verdadeira cessação do apego à existência inerente verdadeira de todos os fenômenos. Assim, eles precisam de uma cognição não-conceitual da vacuidade de todos os fenômenos, conforme definido no Prasangika. Portanto, Gelug e Karma Kagyu Prasangika afirmam que o apego à existência inerente verdadeira de todos os fenômenos é o que ativa o carma e seus legados, e os arhats alcançaram uma verdadeira cessação disso. No entanto, os arhats não se livraram dos hábitos do carma nem do hábito de se apegar à existência inerente verdadeira de todos os fenômenos. Portanto, eles ainda experimentam a aparência de existência inerente verdadeira e ainda experimentam uma consciência limitada.

Cisão da Sangha

O que aconteceu com essas várias escolas Hinayana? Quando elas se separaram, isso foi uma cisão na sangha?

Formar escolas separadas que afirmam coisas diferentes não é cindir a sangha, o que seria um crime hediondo, como matar um arhat, que tem como resultado cármico o renascimento no pior reino sem alegria (o inferno Avichi) na vida imediatamente posterior. Cindir a sangha é o que o primo do Buda, Devadatta, tentou fazer quando disse que o Buda não era bom: “esqueça-o e seus ensinamentos e siga-me”. Se monges e monjas, em virtude disso devolverem os hábitos, desistirem de sua direção segura nas Três Joias e seguirem essa pessoa, isso é uma cisão na sangha. Por outro lado, permanecer dentro do rebanho budista, ainda reconhecendo o Buda e a disciplina monástica vinaya, mas simplesmente diferindo na interpretação dos ensinamentos do Buda ou enfatizando um aspecto diferente dos ensinamentos do Buda e saindo como uma comunidade separada - fazer apenas isso não constitui cindir a sangha.

O rei Ashoka seguia o Teravada. Eventualmente, o Teravada tendeu a ir mais para o sul da Índia, Sri Lanka e Birmânia. Mais tarde, foi da Birmânia para a Tailândia e outras partes do sudeste da Ásia. O Sarvastivada era forte no norte da Índia e, dentro dele, os Vaibashikas e os Sautrantikas tornaram-se proeminentes no noroeste da Índia, na Caxemira e no Punjab.

Esclarecimento sobre a Meditação

Você poderia elaborar um pouco mais sobre o que estava dizendo, a respeito da divisão paranoica que pode ocorrer na meditação?

A divisão paranoica da atenção, que estávamos discutindo, pode acontecer em qualquer tipo de meditação de concentração, estejamos focando a mente na prática do mahamudra, em uma imagem visualizada do Buda ou em nossa respiração.

Queremos permanecer concentrados em um objeto. A atenção é o que leva nossa atividade mental ao objeto específico e diz respeito à forma como o tomamos e consideramos cognitivamente. A presença mental é a retenção mental, é como a cola mental. A concentração é a permanência mental ou a permanência no objeto. A vigilância é o sistema de alarme para detectar se há algo errado com a retenção. A retenção mental pode estar muito frouxa ou muito apertada. A vigilância age como um sistema de alarme, pois ativa a atenção para retornar ao objeto de maneira correta e restabelecer uma retenção mental adequada.

O perigo da paranoia que pode surgir na meditação é se o foco de nossa atenção estiver dividido entre o objeto focal da meditação e a condição da meditação. Em vez de focar nossa atenção principal no objeto, mantendo-o e não o soltando, parte de nossa atenção e concentração está olhando para a condição da meditação, olhando para o estado de concentração. Podemos até parar de prestar atenção ao objeto focal da meditação completamente. O problema é exacerbado se tivermos o sentimento - e formos enganados por ele e acreditarmos nele - de haver um "eu" sólido, separado de todo o processo e o observando. Pode até degenerar no dualismo de um "eu" disciplinador observando o "eu" que medita para garantir que este último não seja relaxado e desobediente. Portanto, é uma verdadeira paranoia.

É muito importante abordar a meditação do ponto de vista da atividade mental. A atividade mental dá origem à aparência de um objeto e ao mesmo tempo tem a cognição dele. A consciência primária, por exemplo, a consciência mental, reconhece apenas que categoria de objeto é. No caso da meditação shamata no mahamudra, a mera criação de aparências e cognição está na categoria de maneiras de se estar ciente de alguma coisa. A consciência primária é acompanhada por muitos tipos subsidiários de consciência ou fatores mentais, que também dão origem à mesma aparência cognitiva, e simultaneamente tem a cognição dela. Distinguir permite que a atenção se concentre na natureza convencional da atividade mental e a tome como objeto de foco. A presença mental mantém a retenção mental do objeto e a concentração mantém a permanência da retenção do objeto.

A vigilância é apenas outro fator mental que acompanha a consciência primária e os outros fatores mentais neste agrupamento ou rede. É o sistema de alarme que aciona a atenção para se ajustar, se a retenção mental ficar muito forte ou muito fraca. Às vezes, a vigilância estimula uma parte da atenção para fazer uma "verificação ". Na maioria das vezes, porém, a atenção, a presença mental e a concentração estão totalmente no objeto de foco, e a vigilância está automaticamente lá.

Esses são pontos sutis da meditação e devem ser aprendidos com a prática pessoal. De qualquer forma, precisamos tentar meditar de maneira não-dualista. Caso contrário, nossa atenção ficará dividida, nossa concentração ficará dividida e ficaremos paranoicos nos observando e nos policiando.

Conforme explica Sua Santidade o Dalai Lama, a vigilância é realmente uma característica inata da presença mental. Se houver uma retenção mental do objeto de foco, isso significa que há vigilância. Se não houver retenção mental, não há vigilância. Se perdermos o objeto de foco, precisaremos usar os fatores mentais de distinção e discernimento para perceber isso. Não é o fator mental de vigilância que está verificando e averiguando isso então.

Temos muitas práticas de meditação disponíveis agora no Ocidente, como a meditação vipassana. Se deixarmos nossa compreensão desse método em um nível comum - o nível em que nos tornamos observadores e observamos nossas sensações, sentimentos, emoções e pensamentos -, correremos um grande perigo. Podemos não estar meditando corretamente. Nossa meditação pode se tornar dualística e nos afastamos e distanciamos de tudo, mesmo quando não estamos meditando. Embora possamos, como iniciantes, iniciar nossa prática de meditação vipassana assim, precisamos de alguma compreensão da ausência de um eu sólido para meditar corretamente. Precisamos de alguma compreensão da palavra mera, que faz parte da definição da natureza convencional da atividade mental.

A principal coisa que precisamos fazer em qualquer meditação de concentração, conforme explica o Dalai Lama, é segurar (mentalmente) o objeto de foco e não soltar. É nisso que colocamos toda a nossa força. Se conseguirmos fazer isso, a atenção estará automaticamente lá. A concentração também estará automaticamente lá, porque nossa atenção permanece no objeto.

Vamos dar um exemplo prático. Suponha que você está de dieta, passa por uma confeitaria e vê um monte daqueles bolos deliciosos na vitrine. A presença mental descreve como mantemos nossa concentração. Não é como se houvesse um policial separado em nossa cabeça, o "eu" ou o "vigilante", observando a mente e dizendo: "Não, não, volte para a dieta, lembre-se de sua dieta". O que fazemos é apenas manter a dieta, a disciplina mental de aderir à dieta. Isso é o que fazemos. Fortalecemos nossa presença mental e concentramos nossas energias em aguentar. Se fizermos isso com sucesso, não entraremos na confeitaria, não compraremos o bolo e não o comeremos. A vigilância é simplesmente parte de nossa presença mental aqui.

Problemas de Energia na Meditação

Quando você menciona a energia de manter a atenção no objeto de foco, é isso que os tibetanos chamam de lung, vento-energia sutil?

Sim. "Lung" é o termo para vento-energia, um dos chamados três humores. Quando vivenciamos lung na meditação, estamos nos referindo a um aperto muito forte ou frustração da energia.

O vento-energia é outra maneira de olhar para a atividade mental. É a energia que está subjacente à atividade mental. Se estamos segurando com muita força ou meditando de maneira dualista e paranoica, a aderência mental está muito forte. Se a aderência mental estiver muito apertada, a energia estará apertada: isso é o que chamamos de ter lung. A energia está espremida. É como se nossas artérias se entupissem e nosso sangue fosse espremido e tivéssemos pressão alta.

Essa é a experiência do lung. Nos sentimos inquietos, nossa energia é instável, como a de uma criança hiperativa. Há muita pressão. É importante relaxar e existem muitos métodos para se fazer isso. Por exemplo, olhar para uma bela vista ou rir, isso relaxa a energia. Quando temos um lung muito forte, podemos até precisar tomar uma medicação. Os tibetanos não têm vergonha de tomar remédios para lung. É bastante eficaz.

Vacuidade e Compaixão

Como a cognição não-conceitual da vacuidade se relaciona com o servir, com beneficiar todos os seres?

Esse é um ponto importante e diferentes tradições o explicam de diferentes maneiras. Se falarmos simplesmente em termos da tradição Mahayana do sutra, a compaixão é absolutamente essencial para a meditação na vacuidade. É por causa da compaixão e da força da compaixão com que entramos na absorção total não conceitual da vacuidade que emergimos dela para beneficiar os outros. Se não tivéssemos compaixão antes de entrarmos na absorção, ficaríamos totalmente absorvidos na vacuidade. Isto porque, se tivermos uma concentração perfeita, nossa absorção total não será apenas totalmente pacífica, mas também ficaremos completamente felizes. Mas, como já temos essa compaixão, não "mergulhamos na bem-aventurança", por assim dizer, em total absorção. Pelo contrário, queremos sair e beneficiar os outros.

O Karma Kagyu explica que a força positiva para alcançar a cognição não conceitual da vacuidade implica em evitar comportamentos destrutivos e adotar comportamentos construtivos. Se temos a cognição da vacuidade, entendemos corretamente como causa e efeito comportamental (carma) funcionam, com base na vacuidade de causa e efeito, e ficamos convencidos de que todo mundo sofre por causa de seu comportamento destrutivo. Portanto, quanto mais nos familiarizamos com a vacuidade, mais construtivamente agiremos. Naturalmente, nos tornamos mais compassivos e agimos de forma mais construtiva em relação aos outros, ajudando-os.

Se falarmos em termos da apresentação do dzogchen no Nyingma, a compaixão é um dos aspectos de rigpa (consciência pura) – a atividade mental mais sutil e totalmente imaculada. Mais especificamente, um dos aspectos de rigpa é a responsividade, que recebe o nome de compaixão.

Rigpa tem três aspectos. Um é a sua "pureza primordial". Isso corresponde às palavras mera e consciência na definição de atividade mental. A consciência pura é uma mera consciência, nua ou desprovida de emoções perturbadoras, desprovida de existência verdadeira, desprovida de um "eu" verdadeiramente existente e assim por diante. O segundo aspecto é a responsividade: a energia da pura consciência sai e responde ao sofrimento de todos os seres. O terceiro aspecto é que a consciência pura estabelece aparências espontaneamente, de acordo com sua responsividade. A responsividade e o estabelecimento espontâneo de aparências correspondem à palavra clareza na definição de atividade mental.

O ponto aqui é que a capacidade de responder está sempre presente como uma característica inata de rigpa, a consciência pura. A energia está sempre indo para fora. Quando estamos totalmente absorvidos em rigpa - no sentido dzogchen, como a absorção total na vacuidade -, acessamos esse nível de compaixão, de responsividade, que está automaticamente lá. Nossa compaixão habitual, o desejo de que todos os seres estejam livres do sofrimento e de suas causas, dá o tom compassivo.

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