Temos olhado métodos para integrar os diversos aspectos de nossa vida. Vimos que para lidar com as variadas situações de nossa vida e seguir o caminho espiritual com mais integridade, é muito importante ter uma ideia clara de todos os fatores que formam a base do fenômeno de imputação que chamamos de “eu”, de modo a termos uma base realista para rotularmos conceitualmente o “eu", no que diz respeito a quem consideramos ser.
Inconsciência: A Verdadeira Fonte de Todos os Nossos Problemas
Quando falamos sobre as verdadeiras fontes e causas de nossos problemas, com que lidamos na segunda nobre verdade, sempre falamos sobre a ignorância, ainda que, a meu ver, “inconsciência" seja uma tradução melhor para esse termo. A inconsciência engloba pessoas e fenômenos em geral. Somos insconscientes em relação à realidade e também à causa e efeito, especificamente causa e efeito comportamentais no que se refere ao carma.
Quando falamos sobre inconsciência relacionada a pessoas, isso nos inclui, a nós e aos outros. Uma pessoa é um fenômeno de imputação com base em um contínuo individual de fatores agregados - geralmente chamados de cinco agregados - o corpo, a mente, os vários tipos de emoção, níveis de felicidade, infelicidade e assim por diante. Assim sendo, uma pessoa é algo que pode ser conhecido de forma não-conceitual - podemos ver ou escutar a pessoa - e este é um fato. Como fenômeno de imputação, uma pessoa, "eu", é ligada à uma base e só pode existir e ser conhecida por meio dessa base. Devido à inconsciência sobre como existimos, temos todo tipo de emoções perturbadoras. Quando falamos em termos bem gerais, nós nos vemos como uma coisa sólida, que existe e pode ser conhecida independentemente do corpo, da mente, das emoções, das causas e circunstâncias, etc, e como isso não corresponde realmente à realidade, acaba criando um sentimento de insegurança.
É interessante investigar qual o equivalente emocional ou "tom" dessa inconsciência. Quando falamos sobre inconsciência, é uma questão cognitiva: ou não conhecemos a realidade ou a conhecemos incorretamente. Portanto, isso é cognitivo. Obviamente, podemos olhar para esse mesmo fenômeno de um ponto de vista emocional. Há o componente emocional e me parece - pela minha própria contemplação do assunto - que esse componente pode ser tanto confusão quanto insegurança. Há também a ignorância, ainda que seja um pouco complicado dizer se podemos ou não chamar a ingenuidade ignorância de emoção perturbadora, atitude perturbadora ou algo assim. De que se trata realmente? De qualquer modo, confusos sobre como existimos, imaginamos que somos uma espécie de entidade sólida, por isso nos sentimos inseguros e tentamos tornar o “eu" mais seguro. Várias emoções perturbadoras surgem com base na ignorância.
Eu não estava questionando se a ignorância é perturbadora ou não, mas se é uma emoção ou uma atitude. Podemos passar muito tempo discutindo os esquemas de classificação. O problema é que há distinções muito sutis nos esquemas de classificação do budismo e diferentes mestres budistas divergiram na definição de alguns dos itens. Em todo caso, a dificuldade é por não termos um esquema semelhante de classificação em nossa terminologia ocidental que abranja o que o esquema budista inclui em “kleshas” (também traduzido como “aflições mentais”) em sânscrito, portanto não fica claro em nossa terminologia ocidental se estamos falando sobre emoções ou atitudes. Os esquemas de classificação budista e ocidental não se adequam muito bem.
Em todo caso, as emoções perturbadoras que surgem a partir da inconsciência sobre como existimos incluem desejo ou apego, que têm a ver com querer obter mais coisas ou não soltar o que temos para tentar tornar o “eu" mais seguro. Temos também a repulsa, a hostilidade e a raiva, que têm a ver com afastar as coisas do “eu”, novamente com a esperança de tornar o tal do “eu” seguro. Ou, novamente, permanecemos ignorantes quando não consideramos algo ou negamos sua existência. Achamos que, de alguma forma, pensar assim fará com que tudo fique bem e seguro. Em outras palavras, é ameaçador demais aprofundar a investigação sobre a realidade. É claro que são tentativas fúteis, pois quando agimos de acordo com elas, não nos tornam nem um pouco mais seguros.
Inconsciência Baseada em Doutrinas
Quando analisamos a inconsciência sobre como existimos, descobrimos muitos níveis de sutileza. Podemos ter a inconsciência baseada em doutrinas de religiões ou filosofias indianas não-budistas, que nos foram ensinadas e nas quais acreditamos. Essa inconsciência baseada em doutrinas imagina que o “eu" é um atman - este é o termo indiano. Esses sistemas aceitam o renascimento, e o que renasce é o atman. Ele continua indefinidamente, de uma vida para outra, e suas experiências estão sob a influência do carma. São sistemas bem indianos.
O atman, ou a alma - talvez essa seja a palavra mais próxima em nossa terminologia ocidental - tem três características. A alma é estática; nunca muda; não é afetada por nada. Sua segunda característica é que ela não tem partes, como um monólito - que pode ser, de acordo com algumas escolas, do tamanho do universo, portanto temos que reconhecer nossa unidade infragmentável com o universo inteiro; ou então se trata de uma faísca de vida minúscula e infragmentável. Por ser infragmentável, ela não tem diferentes aspectos. E a terceira é que esse atman pode existir de modo totalmente independente do corpo e da mente, especificamente quando alcança a libertação do renascimento. As diferentes escolas filosóficas indianas diferem no que diz respeito a atribuir ou não a essa alma uma qualidade de consciência, mas é isso que o budismo chama de “inconsciência baseada em doutrinas sobre o ego das pessoas.”
Como ocidentais, podemos ter adquirido, em nossa criação ou educação religiosa, a crença em uma alma que teria um ou outro componente dessa descrição. Mas isso seria classificado como outra coisa: um tipo incorreto de consideração, não o pacote completo. O pacote completo de uma alma que teria essas rês características seria o que chamamos aqui de inconsciência baseada em doutrinas.
A Alma Eterna ou o “Eu"
Temos que ser conscientes de que certas afirmações, como a de que existe uma alma eterna, um eu que não tem início nem fim, também são aceitas pelo budismo. A questão é quais são as características desse "eu" eterno, ou da alma, não importa como o chamamos. O budismo também usa a mesma palavra, atman. Quando falamos no budismo do que muitas vezes é traduzido como “não-eu”, sem “ eu”, ausência de um “eu”, ou ausência de identidade, o que realmente estamos dizendo é que não há essa tal de alma impossível, que tenha essas três características que acabamos de mencionar - uma alma que seja estática, infragmentável e possa existir independentemente de um corpo e de uma mente. Não quer dizer que não há em absoluto algo como uma alma. O budismo aceita um “eu" ou uma pessoa ou uma alma que existe convencionalmente. Quando uma pessoa acredita plenamente que não há “eu” algum, sabemos pela psicologia ocidental que uma pessoa assim não consegue lidar com a vida. Sem o senso de um “eu”, por que levantar da cama? Para que se cuidar? Qual o sentido de fazer qualquer coisa? Portanto, nosso trabalho de integração é focar na base do “eu” convencional que de fato existe.
Um nível mais profundo de confusão - que surge automaticamente - é que o “eu” pode ser conhecido de forma autossuficiente, o que quer dizer que pode ser percebido sozinho, sem os outros aspectos de sua base. Dizemos “eu vejo a Gabi" como se só estivéssemos vendo a Gabi. Mas como podemos vê-la separadamente do corpo que tem o nome Gabi? Como posso conhecer a Gabi sem saber nada a respeito dela? Se não soubermos seu nome, pelo menos teremos uma imagem mental dela ou saberemos algo a respeito de sua personalidade ou algo assim. No entanto, temos a impressão de conhecer a Gabi, de nos conhecermos, como se fosse um processo automático. As síndromes emocional e psicológica que derivam disso ou têm essa impressão como base são coisas como: “Quero que você me ame por quem eu sou, não por meu corpo, minha mente, meu dinheiro, mas eu quero que alguém me ame só por mim.” Como se houvesse um “eu" que pode ser conhecido e amado separadamente de sua base.
Talvez possamos reconhecer que isso surge automaticamente. Mas, no que se refere à ideia de que o “eu” é do tamanho do universo, isso teria que nos ser ensinado. Não acho que esse pensamento surgiria automaticamente em nossa cabeça. Mas o sentimento “Quero que alguém me ame por quem eu sou” ou “Quero conhecer você”, surge automaticamente.
Rotulando Mentalmente o "Eu"
Antes de passarmos para o próximo passo em nossos exercícios, deixe-me explicar “rotulamento mental” um pouco melhor. Como falamos antes, o “eu" convencional é um fenômeno de imputação com base em um contínuo individual de cinco agregados. Esse “eu” é algo factual, ele existe e pode ser conhecido de maneira não-conceitual. Eu vejo você, eu me vejo, eu ando, eu falo. Não há dúvidas em relação a isso. A pergunta é como estabelecemos que o “eu" existe? O que prova ou demonstra que o “eu” existe? É aqui que entra o rotulamento mental. A única forma de estabelecermos que o “eu" existe é em relação ao rótulo mental “eu”, que é um conceito, ou a palavra “eu”, que é simplesmente uma palavra.
Há uma base - temos os fatores agregados que mudam constantemente e formam cada momento de nossa experiência - e, baseados neles, podemos rotulá-los conceitualmente com “eu" ou podemos designá-los conceitualmente com a palavra “eu”. O “eu" não é a palavra “eu” ou o conceito “eu”. Não sou uma palavra ou um conceito. O “eu" é aquilo a que o conceito e a palavra “eu” se referem, com base em todas essas coisas que estão mudando, os agregados. A confusão mais profunda é acreditar que há algo nos agregados, a cada momento, alguma característica definidora tangível que faz com que o eu se torne “eu”. Ou essa característica faz com que o eu seja “eu” por conta própria, ou faz com que o eu se torne “eu” em conexão com o rotulamento dela como sendo a base para o “eu”.
Ao pensar que existe algo em cada momento que faz com que o eu seja “eu" ou o você seja “você”, nossa mente gera automaticamente pensamentos estranhos como “Tenho que ‘me' achar”, “tenho que ‘me’ conhecer". Bem, o que estamos conhecendo quando falamos de “me conhecer” ou “me achar”? Trata-se de um tipo de característica especial que faz com que o eu seja “eu”. Se analisarmos, “Por que eu ‘te’ amo? Bem, há algo de especial em relação a você, algo que a torna especial, o objeto do meu amor, e tenho que ter esse objeto.” Portanto, há esse equívoco, que surge automaticamente, de que há algo especial nessa pessoa, algo que a torna especial, e é por isso que gosto ou não gosto dela. Essa é considerada a forma mais sutil de confusão.
Outra forma de expressar isso é: há algo sólido e tangível que está por trás da base; algo que a sustenta e, quando focamos na pessoa, é essa base que a sustenta. Como o exemplo de algo que lança uma sombra por detrás de uma tela.
Olhando para a realidade no Nível Atômico
Podemos entender isso em um nível muito simples, no que se refere a uma cadeira ou ao nosso corpo. Se olharmos para eles através de um microscópio eletrônico, veremos que são feitos de átomos e os átomos são feitos de elétrons e campos de força e assim por diante. Não há nada de sólido que os torne uma cadeira ou um corpo, nada que possa ser conhecido e exista por si só, por conta própria. No nível da análise de átomos, que é um passo iniciante no entendimento da realidade - o mais importante é que há um “ainda assim”. Portanto, mesmo que meu corpo seja feito de átomos e campos de força e elétrons e todas essas coisas, mesmo que não haja nada de sólido nele, e isso se aplica também à cadeira; ainda assim, não atravesso a cadeira quando me sento. De alguma forma, a cadeira me sustenta. Portanto, quando dizemos “ainda assim” trata-se de um detalhe muito importante e é uma chave para entender a realidade; a chave do “ainda assim”. Não há nada de sólido: ainda assim, as coisas funcionam.
Shantideva diz isso muito bem. Parafraseando o que ele diz, só quando entendemos o “ainda assim” em seu nível mais simples - que tudo é feito de átomos, mas que ainda assim não atravessamos o chão - se entendermos que esses dois aspectos não são contraditórios, estaremos preparados para passar para o próximo nível mais sutil de entendimento. Sem essa base, será bem problemático nos aprofundarmos: quanto mais fundo formos, mais tenderemos ao niilismo. Podemos ver que até nesse nível de átomos não é tão simples entender realmente a chave do “ainda assim”.
Isso está se tornando uma longa exposição sobre a vacuidade, que não é realmente minha intenção; mas talvez ajude vocês. A razão pela qual falei disso é que geralmente focamos na inconsciência a respeito do “eu”. Para começarmos a entender a vacuidade - sendo que vacuidade significa uma ausência de formas impossíveis de existir - primeiro temos que entendê-la em relação a uma pessoa, ou ao “eu”, pois fica mais fácil entender assim. Depois, olhamos para todos os fenômenos. Quando falamos sobre todos os fenômenos, estamos falando sobre coisas estáticas e não-estáticas - que mudam ou não mudam, que são afetadas ou não afetadas por outras coisas. Quando falamos sobre fatores agregados de nossa experiência, eles incluem apenas tudo que muda e é não-estático. Em outras palavras, cada componente de nossa experiência nesse esquema específico é afetado por algo; é gerado por causas e condições. Ainda que os fenômenos estáticos também sejam envolvidos em nossa experiência, não estão incluídos no esquema dos cinco agregados.
Quando temos um entendimento básico de vacuidade, a ordem com a qual focamos na vacuidade em nossa meditação é revertida. Primeiro, pensamos principalmente nos cinco agregados - as coisas que estão mudando; em outras palavras, a vacuidade da base que rotulamos como “eu”. Quando vemos que cada momento de nossa experiência está mudando, que tudo é afetado por coisas diferentes e muda em ritmos diferentes, que não há nada que permaneça, nada que seja uma base sólida, momento após momento, deduzimos naturalmente que não há nenhuma coisa tangível e sólida, nada que já venha com o rótulo “eu”. Tudo está mudando, tudo é afetado por um milhão de coisas, tudo é formado de partes e assim por diante. Portanto, não há nenhum “eu” sólido cavalgando a coisa toda.
As Três Vezes
Nessa base que rotulamos com o “eu”, no nosso contínuo de experiências, há o passado, o que já ocorreu. Há o presente, o que está ocorrendo agora. E há o futuro, o que ainda não está ocorrendo. Mas não os chamamos de “passado”, “presente” e “futuro" no budismo, já que se trata de conceituações temporais bem diferentes. De certa maneira, a estrutura conceitual é revertida porque, primeiro, temos “o que ainda não ocorreu”, depois, o que “está ocorrendo agora” e, então, “o que não está mais ocorrendo”. Há um grande e muito importante debate sobre o conceito budista do tempo. Na verdade, ele é crucial para conseguirmos entender e meditar sobre bodhichitta. Lembrem-se da explicação de Tsongkhapa sobre como especificar um estado que estamos tentando gerar na meditação: temos que saber qual o foco da meditação e como a mente está se relacionando com ele.
Bodhichitta tem dois momentos - e quando falamos de “momentos" na análise budista, estamos nos referindo a fases, que não duram apenas um instante. A primeira fase é focada em todos os seres limitados, o que significa realmente todos os seres, com amor e compaixão, o desejo de que sejam felizes e livres de sofrimento. A resolução excepcional é que com certeza farei algo a respeito disso - guiarei esses seres por todo o caminho até a libertação e a iluminação, não oferecerei apenas uma ajuda superficial. Porém, o foco principal da bodhichitta é em nossa iluminação individual que ainda-não-está-ocorrendo mas, com base na natureza búdica, pode ocorrer bem mais para frente em nosso contínuo mental. A maneira como a mente toma esse objeto é com a intenção de alcançar a iluminação, de modo a termos uma iluminação ocorrendo no momento presente, e com a intenção de ajudar a todos por meio dessa conquista.
É claro, temos que entender exatamente em que estamos focando quando falamos sobre uma iluminação que-ainda-não-está-ocorrendo. Com certeza, não é um pacote esperando por nós lá na frente, na linha temporal de nosso contínuo mental, se aproximando cada vez mais na esteira rolante do tempo, para um dia ser a iluminação que-está-ocorrendo-agora. Não é assim.
Essa explicação só serve para indicar a importância da apresentação budista dos três tempos. Ela é muito, mas muito significativa. Caso contrário, a meditação sobre bodhichitta pode acabar ficando muito vaga. De fato, muitas pessoas não entendem realmente qual é o foco de bodhichitta, e elas chamam a meditação sobre compaixão de “meditação sobre bodhichitta”, quando não é realmente isso. Na verdade, ela é um passo caminho para bodhichitta, mas não é equivalente a bodhichitta. É uma base para bodhichitta, mas não é bodhichitta.
Como eu estava dizendo, na meditação entendemos primeiro a vacuidade da base que rotulamos com o “eu”, os agregados. Assim, o próximo passo da meditação, que é entender a vacuidade do “eu” que é rotulado nela, se torna mais fácil. Precisamos ter uma base adequada para rotularmos “eu”. Podemos falar sobre todos os aspectos problemáticos que fazem parte de cada momento de nosso contínuo mental, cada momento de nossa experiência: emoções perturbadoras, nossa confusão e assim por diante. Podemos analisar todos os fatores causais que influenciaram e reforçaram isso. Com certeza, isso faz parte da base em que se rotula o “eu”. Muitas vezes, focamos apenas nisso em nossa prática budista porque sempre analisamos em termos de verdadeiros problemas e suas verdadeiras causas. No entanto, também fazem parte dessa base rotulada como “eu" todos os aspectos positivos que podem ser aproveitados para alcançar uma iluminação que-ainda-não-está-ocorrendo. Todos esses aspectos positivos foram gerados por causas, condições, a influência de outras pessoas, a influência de onde vivemos e as várias circunstâncias de nossa vida.
“Eu” Existo, Mas o “Eu" Impossível Não Existe
Agora juntarei todas as diferentes peças do que temos falado. Lembrem-se que dissemos que geralmente pensamos em nós como se tivéssemos um “eu" impossível, mas esse “eu" impossível não existe realmente. Porém, temos um “eu” convencional, que funciona. Qual seria então a base mais saudável para rotularmos esse “eu”? Obviamente, precisamos rotular como “eu” a totalidade da base, tanto os aspectos problemáticos quanto os aspectos que podem se desenvolver e nos ajudar a alcançar a iluminação - a iluminação que-ainda-não-está-ocorrendo, que pode ser alcançada mais adiante em nosso contínuo mental. Como a iluminação que ainda-não-está-ocorrendo pode ser alcançada, para termos uma iluminação que-está-ocorrendo-agora? O processo é livrar-se dos aspectos negativos e aumentar os aspectos positivos. Em outras palavras, queremos eliminar todos os aspectos problemáticos da base rotulada como “eu” e ter apenas aspectos positivos. O que fazemos então? Aplicamos o entendimento da vacuidade. Essas coisas impossíveis são impossíveis. Elas não existem, não correspondem à realidade.
Agora podemos voltar ao “porém”. Quando tivermos uma compreensão da vacuidade, todos os aspectos problemáticos não conseguirão mais surgir. Enquanto não compreendemos a vacuidade, é claro que eles continuarão a funcionar. Mas se compreendermos a vacuidade, perceberemos que não existe uma base de sustentação, algo como um objeto que lança uma sombra sobre a tela, não há nada os sustentando, então eles não voltam a surgir. Mas o “porém” é que essa compreensão não destrói as qualidades positivas, pois elas tem como base a compreensão correta da realidade. Reforçamos e fortalecemos essas qualidades positivas por meio da inspiração em pessoas e coisas de nossa vida, que nos ensinaram ou deram essas qualidades positivas.
Tantra e Vacuidade
Para aqueles engajados na meditação tântrica, essa é a base para o que fazemos nessa meditação. Temos todos esses diferentes aspectos conflituosos e problemáticos. Pensamos com a compreensão da vacuidade, com uma total ausência de todos esses aspectos problemáticos. E depois nos imaginamos como uma figura búdica, o que, basicamente, é rotular como “eu" todos os aspectos positivos, em vez dos negativos. Isso faz parte da teoria por detrás da transformação do tantra. Mas tem que ser acompanhado da realização de que o que estamos imaginando e visualizando é apenas semelhante à iluminação que-ainda-não-está-ocorrendo. Com certeza, não é uma iluminação que está-ocorrendo-agora. Não estou iluminado agora porque penso que estou.
Se focarmos no “eu” rotulado sobre a compaixão e o entendimento correto e claro, isso não contradiz, ou não é invalidado por uma compreensão da vacuidade. Por outro lado, se pensarmos num “eu” que tem como base a raiva, quando focarmos no entendimento de que essas formas impossíveis de existir não existem, isso elimina a raiva. Não é possível ter raiva e compreensão da vacuidade ao mesmo tempo. Quero dizer, podemos compreender a vacuidade e a raiva, mas não é disso que estou falando. Estou falando do que está ocorrendo conscientemente, o que estamos vivenciando. A compreensão da vacuidade reforça e não elimina as qualidades positivas, mas é mutuamente excludente com as qualidades negativas. São coisas incompatíveis. Portanto, esse método do tantra não é apenas o poder do pensamento positivo, mas tem como base a firme compreensão da vacuidade.
Agora, no que diz respeito às figuras búdicas - Tchenresig representa a compaixão, Manjushri representa o entendimento claro e assim por diante - pode ser bem difícil nos identificamos com elas, pois são formas muito idealizadas e perfeitas da compaixão e do entendimento. É aqui que nossa prática de integrar os aspectos positivos de nossa vida pode ajudar.
As figuras búdicas têm a ver com os diferentes aspectos da natureza búdica. Quando falamos de natureza búdica, estamos falando sobre esses fatores que fazem parte de nosso contínuo mental e permitirão sua transformação em vários corpos de um buda, ou vários aspectos de um buda. Portanto, quando falamos sobre esses aspectos da natureza búdica, estamos falando sobre os mesmos aspectos com que nossa mente funciona. A mente funciona com muitos, muitos aspectos diferentes. A mente é capaz de entender coisas, de cuidar, sentir compaixão e assim por diante. Isso é o que chamamos de “nível básico”. A partir desse nível, é possível alcançar o nível resultante, que é representado pela figura búdica.
A Base, O Caminho e O Resultado
Na análise budista falamos de uma base e do caminho mental que leva ao nível resultante. Portanto, sempre falamos nesses três aspectos: base, caminho e resultado. Olhemos para o caminho ou o caminho mental. Temos todas essas meditações budistas sobre compaixão e vacuidade, sendo muitas delas bem elaboradas, o que nos ajuda a alcançar a iluminação que-ainda-não-está ocorrendo, e cujos aspectos são representados pelas diferentes figuras búdicas. No entanto, no momento presente, especialmente para aqueles dentre nós que não estão muito adiantados no caminho, temos muitas qualidades positivas que obtivemos através da influência de membros da família, do país em que vivemos, de várias coisas que fizemos, de amigos e assim por diante. É aí que entra o exercício.
Portanto, a base que rotulamos como “eu” é cada momento de experiência de todos os aspectos problemáticos e positivos - é a coisa toda. Se olharmos para o contínuo mental a partir de outro ponto de vista, a base que rotulamos com o “eu” é também base, caminho e fases resultantes do contínuo mental. Não se trata de uma linha temporal, pois não é que “no início havia a base e depois houve o caminho.” O caminho não tem início. Mas esse caminho implicará em nos livrarmos dos aspectos negativos, dos aspectos problemáticos, e fortalecer os positivos. É difícil se identificar com a base, os aspectos da natureza búdica, e é difícil se identificar com os aspectos resultantes, as formas idealizadas dessas qualidades. É bem mais fácil nos identificarmos com as qualidades positivas que temos agora, neste nível do caminho.
Conclusão
Se conseguirmos reconhecer todas as coisas positivas que conquistamos a partir de todos os diferentes aspectos de nossa vida, e as integrarmos de modo a que se tornem uma base harmoniosa para o rótulo “eu”, será muito mais fácil seguir no caminho budista. Reconheceremos nosso nível fatores positivos. Este é provavelmente um passo preliminar - um passo do “Dharma Light” - para conseguirmos seguir no caminho budista, para termos uma base positiva para rotularmos como “eu”. Isso nos dará forças para nos comprometermos com as várias práticas budistas do “Dharma Autêntico” e conseguirmos alcançar o nível resultante. Além disso, um benefício colateral será um senso muito mais saudável de “eu”, do “eu” convencional, para conseguirmos lidar com as várias situações desta vida. Esse senso mais saudável de um “eu” positivo será muito importante em nossa prática do tantra, para não entrarmos nem em uma egotrip meio estranha nem ficarmos fantasiando tudo.
Ainda que nesta sessão não tenhamos tomado um tempo para praticar, quis apresentar um escopo bem mais amplo de como esse tipo de prática se encaixa no caminho geral do dharma, a teoria por detrás de como isso funciona e como pode ser benéfico tanto para o nível do “Dharma Light” quanto para o nível do “Dharma Autêntico”.
Talvez essa análise também ilustre algo que falei no início, que quando estudamos e praticamos cada vez mais o dharma e aprendemos vários aspectos do dharma, precisamos tentar “integrá-los”, juntá-los todos, ver como tudo se conecta com todo o resto. Quando começamos a juntar mais e mais aspectos de muitas maneiras diferentes, colhemos cada vez mais tesouros do dharma.