Superando Obstáculos com os Ensinamentos do Escopo Inicial do Lam-rim

Introdução

Amanhã é o feriado budista conhecido como Lhabab Duchen, em tibetano, ou a Descida do Céu dos Trinta e Três, em inglês. A melhor maneira de comemorar este dia especial é ouvindo um ensinamento budista sobre as quatro nobres verdades, o primeiro ensinamento que o Buda deu depois de se iluminar. Porém, quero falar principalmente sobre o que Sua Santidade o Dalai Lama está sempre falando com muito cuidado, amor e compaixão – o caminho que precisamos seguir, com uma motivação de bodhichitta, para melhorar não apenas a nossa situação, mas também a situação atual de todo o mundo. Eu gostaria de discutir isso em termos dos três escopos graduais do lam-rim e de como os métodos que eles fornecem nos ajudam a superar os obstáculos que nos impedem de melhorar essas situações.

Como diz Sua Santidade, a mente de bodhichitta é muito importante. Mesmo que não tenhamos uma bodhichitta forte e manifesta dentro de nós, precisamos lembrar que todos temos pelo menos o potencial para ela. Assim, ao acordar todas as manhãs, devemos tentar imediatamente nos lembrar da bodhichitta. A compaixão, especialmente como é discutida nos textos Madhyamaka, é essencial no início do caminho, no meio do caminho e no final do caminho. Todas as manhãs, lembre-se da importância da compaixão. Isso nos ajuda a estabelecer o tom do novo dia.

Explicação Sobre o Lhabab Duchen e os Pensamentos a Desenvolver Neste Dia Especial

Não vou entrar em grandes detalhes sobre a história deste feriado, mas basicamente, ele celebra a ocasião em que o Buda retornou à terra depois de ter subido à morada celestial dos trinta e três deuses. O Buda foi a esse lugar para dar alguns ensinamentos à sua mãe, que renasceu lá, e aos seres especiais que lá residiam. Mas as pessoas na Terra sentiam falta do Buda. Por isso, Maudgalyayana, que era um de seus principais discípulos, foi enviado como representante para pedir que o Buda voltasse à Terra e continuasse ensinando o Dharma. Portanto, de certa forma, esse festival especial nos encoraja a pensar no quanto sentiríamos falta do Buda e de seus ensinamentos se eles não estivessem mais disponíveis.

Outra maneira de pensar sobre o Lhabab Duchen é questionando o por quê do Buda ter ascendido a este Céu dos Trinta e Três. Não foi porque ele estava estressado e precisava de uma folga! A história por trás desse festival é que o Buda se lembrou da bondade de sua mãe, por isso manifestou as atividades contidas nos três primeiros pontos do método de causa e efeito de sete pontos para desenvolver bodhichitta. 

Esses três pontos são:

  • Distinguir todos os seres como tendo sido nossas mães
  • Lembrar da bondade de nossas mães
  • Desejar retribuir essa bondade.

O Buda demonstrou esses três pontos fazendo o que fez. E se ele agiu assim, nós também devemos agir de todas as maneiras que pudermos para demonstrar a apreciação e gratidão que sentimos em relação à bondade de nossos gurus e pais. Embora não haja um “Dia dos Professores” na tradição budista, este festival pode ser considerado uma mistura entre o Dia do Buda, o Dia dos Professores e o Dia das Mães.

O Buda ascendeu ao Céu dos Trinta e Três e, através de uma combinação dos ensinamentos das quatro nobres verdades, do sutra, e dos ensinamentos da Deusa do Guarda-chuva Branco, Sitatapatra, do tantra, levou sua mãe a alcançar o caminho da visão, e mais, a se libertar do renascimento samsárico e de todos o sofrimento. Para o Buda, não havia maneira melhor de retribuir a gentileza de sua mãe do que fazer algo assim. Dá para perceber o conselho que ele nos deu.

O Escopo Inicial: Evitar o Renascimento nos Reinos Inferiores e Alcançar um Renascimento nos Reinos Superiores

Nesses dois dias em que estou tendo a oportunidade de falar com vocês, quero focar nos três escopos graduais do lam-rim e no que realmente nos impede de alcançar cada um deles. Mesmo que muitos de nós aqui tenham bastante experiência no Dharma, se fôssemos bem sinceros conosco, será que poderíamos dizer que alcançamos o escopo mais elevado? E o escopo médio? Ou mesmo o escopo inicial, o menor? Todos esses escopos são difíceis de desenvolver. Por isso, quero que olhemos para o que nos impede de cultivar as práticas associadas às pessoas que estão nesses três escopos.

O escopo inicial é o chamado “escopo pequeno”. Mas não se deixe enganar por esse nome! Não olhe para o escopo menor e pense que ele não é muito importante, que podemos deixá-lo de lado e seguir adiante. Por ser o estágio inicial, ele é muito importante; ele é a base sobre a qual desenvolvemos os outros estágios.

Vamos pensar nas qualidades especiais que precisamos desenvolver no escopo menor. Por exemplo, quando falamos sobre o escopo maior, o escopo avançado, dizemos que se trata principalmente de desenvolver bodhichitta, já os praticantes do escopo intermediário desenvolvem renúncia. E quanto ao escopo menor? Trata-se apenas de ter medo dos sofrimentos dos reinos inferiores? Não, não é bem assim.

Superando o Fascínio Com as Aparências Desta Vida

É claro que, para trabalhar através dos estágios do caminho até a plena iluminação, precisamos da renúncia e da bodhichitta, dos dois escopos superiores. Mas também precisamos de uma boa base nas práticas associadas ao escopo menor. É especialmente importante superar o fascínio com as aparências desta vida. Essa é uma das coisas das quais precisamos nos livrar. Se não conseguirmos fazer isso, não chegaremos nunca ao estágio de pensar em nos preparar para vidas futuras. Portanto, temos que encontrar uma maneira de lidar com o fascínio com as aparências desta vida e também com o apego a elas.

O que precisamos, então, é de um método para lidar com isso. Os grandes Lamas Kadampa sempre diziam que um dos principais pontos para a meditação e a contemplação é a impermanência. Quando começamos a entender causa e efeito e impermanência, vemos que nossa prática não é apenas para questões desta vida. Além disso, precisamos encontrar uma maneira de nos desvencilhar do apego às maravilhas do samsara em vidas futuras, e também de uma maneira geral. Ainda assim, neste âmbito específico, precisamos superar o apego às aparências desta vida. Há pessoas que praticam há muito tempo, pessoas que praticam e estudam desde a mais tenra idade e pessoas que vão para as montanhas e praticam com muita seriedade. Mas, sinceramente, se não tivermos como principal prática deixar de lado as aparências, será muito difícil de desenvolver as demais práticas.

Impermanência e Morte

A compreensão da impermanência cai sob o guarda-chuva do escopo inicial, mas ainda assim, quando olhamos para as diretrizes da contemplação da impermanência, vemos que existem muitos estágios. O primeiro passo é compreender que a morte é garantida, para todos nós, e o segundo é entender que a hora da morte é incerta. Je Tsongkhapa diz que dentre essas duas coisas, a segunda é a mais importante.

Mas será que esses dois pontos são uma prática completa do Dharma? Eu acho que não. Na verdade, tenho muitos amigos, budistas e não-budistas, que compreendem esses pontos e acham que então é melhor nos divertirmos o máximo que conseguirmos agora.  Portanto, precisamos de algo mais do que apenas esses dois pontos. É por isso que o terceiro aspecto de nossa meditação sobre a morte e a impermanência é fundamental. Este terceiro aspecto é para lembrarmos que, na hora da morte, só a prática do Dharma vai nos ajudar.

Esse é um ponto realmente importante. Na hora da morte, nossos amigos, familiares e posses não poderão nos ajudar. Somente a prática do Dharma irá nos beneficiar. Quando falamos sobre o escopo menor e sobre desistir do apego, e do apego a esta vida, pode ser difícil imaginar como continuar com nossas atividades diárias, nosso trabalho, nossas relações com as pessoas e assim por diante. É claro que é muito difícil livrar-se imediatamente desse apego ao que sentimos ser as maravilhas desta vida, e isso realmente não acontecerá até chegarmos ao escopo intermediário. Mas ainda assim podemos reduzir, diminuir o apego às aparências desta vida. Isso se enquadra no escopo menor.

O Sofrimento dos Estados Inferiores de Renascimento

Na Grande Apresentação dos Estágios Graduais do Caminho para a Iluminação, de Je Tsongkhapa, na seção relacionada ao escopo menor, ele fala muito sobre o sofrimento dos reinos inferiores. Nem sempre é fácil aceitar o que ele diz. Tsongkhapa também fala sobre usar a meditação sobre a morte e a impermanência como uma forma de reduzir o apego a esta vida. Ele nos fornece métodos para evitar o renascimento nos reinos inferiores e alcançar um renascimento superior.

Na descrição do sofrimento dos reinos inferiores, Tsongkhapa menciona seres infernais, fantasmas famintos e animais. As pessoas dizem que não conseguimos ver essas coisas, com exceção dos animais. Mas meu professor costumava dizer que, embora seja difícil ver esses reinos diretamente, há certos elementos do sofrimento que podemos ver até na experiência humana. Por exemplo, é possível que alguém fique muito doente e só consiga tomar uma gota de água de cada vez, ficando constantemente com sede. Esses sentimentos estão associados aos reinos inferiores e, embora as experiências no reino humano não sejam exatamente as mesmas, elas podem ter uma semelhança com as experiências dos reinos inferiores.

Existem potenciais cármicos de causas cármicas muito específicas que, quando ativados, nos lançam em um renascimento nesses reinos lamentáveis. E quando o fazem, assim como um fantasma faminto ou um ser infernal, temos que passar milhares e milhares de anos presos em uma situação terrível. Quando falo sobre as experiências semelhantes que podemos observar em nossa experiência humana, não estou falando das causas cármicas completas que nos lançam nesses reinos, mas nos sentimentos ou nas sensações envolvidas em ficarmos preso nesses lugares. Isso ainda é algo que podemos apreciar, se pensarmos bem. Mas se acreditarmos que o sofrimento desses reinos inferiores realmente existe, ficaremos horrorizados imaginando nascer como uma galinha, um peixe ou um inseto. Basta ver como eles matam e devoram uns aos outros e como são explorados por nós humanos. Eles não têm qualquer tipo de direito humano. Eles não têm direitos, nem mesmo direitos de seres infernais!

As Leis de Causa e Efeito Cármicos

Será que isso pode acontecer conosco no futuro? Essa é a questão. Será que é tão difícil assim de acreditar? O que essa discussão destaca para nós é a necessidade de entendermos as leis de causa e efeito cármicos e o tópico das vidas passadas e futuras. O Comentário Sobre a Cognição Válida, Pramanavarttika, de Dharmakirti, mostra o racional de como a consciência desta vida surgiu em uma vida anterior, e em uma vida anterior a essa e assim por diante, ao longo de tempos sem princípio. Alguns de vocês podem ser um pouco novos nisso e achar difícil aceitar. Mas se você olhar o segundo capítulo do Pramanavarttika, verá o raciocínio lógico para a existência de vidas passadas e futuras. Se este é um material novo para você, preste atenção nisso. Se você estuda há muitos anos, provavelmente já tem uma crença forte e confiante na existência dessas coisas.

O que precisamos pensar em relação ao sofrimento dos reinos inferiores? É melhor pensar nas causas para renascer nesses lugares – no que não estamos fazendo. Não estamos nos abstendo de formas destrutivas de agir, falar e pensar. E o mais importante, precisamos pensar no que precisamos fazer para impedir a possibilidade de vivenciar seus sofrimentos através das leis de causa e efeito cármicos.

Contemplar os métodos para superar estar sob o controle de causa e efeito cármico é geralmente mais associado ao escopo intermediário, onde pensamos em superar o renascimento em algum dos seis reinos da existência samsárica. Mas também precisamos trazer esse ponto para nossa prática do Dharma no escopo menor, onde olhamos para as leis de causa e efeito cármicos, para ver como evitar nascer nos reinos inferiores. Basicamente, temos que parar de cometer as ações destrutivas que nos fazem nascer em reinos inferiores. No segundo capítulo de Entrando no Caminho do Meio, Chandrakirti diz que para garantir um renascimento em um dos estados mais elevados, não há nada mais supremo do que a prática da autodisciplina ética – a autodisciplina de evitar comportamentos destrutivos.

O Escopo Inicial: Três Fatores a Serem Considerados

Há três fatores que precisamos contemplar em relação ao escopo menor.

  • O primeiro fator é contemplar o sofrimento dos reinos inferiores. Se ainda não conseguimos aceitar a ideia dos reinos infernais ou do reino dos fantasmas, podemos pensar apenas no terrível sofrimento do reino animal, por enquanto.
  • O segundo fator a ser contemplado é a causa de todo o sofrimento dos reinos inferiores. Isso basicamente diz respeito a estarmos totalmente inconscientes de causa e efeito cármicos e, portanto, pensarmos, falarmos e agirmos de maneira destrutiva, uma vez que não temos consciência dos resultados que iremos vivenciar no longo prazo por conta de tal comportamento.
  • O terceiro fator a ser contemplado é a consciência que precisamos desenvolver para combater tudo isso. Neste caso, precisamos desenvolver a consciência discriminativa de causa e efeito cármicos e então praticar a autodisciplina ética.

A combinação dessas três coisas é aquilo em que precisamos focar no escopo inicial, no escopo menor.

Muitos de vocês já devem estudar há muito tempo e provavelmente têm uma fé convicta no carma de lançamento – o impulso cármico que nos “lança” em vidas futuras. Vamos pensar no exemplo da mentira – de contar uma mentira séria. Para que nossa ação de mentir resulte em todas as consequências, muitas condições precisam estar presentes. Só então nossa mentira se qualificará como completa. Isso se aplica a todas as ações cármicas, sejam elas destrutivas ou construtivas. Portanto, a mentira precisa ter determinadas qualificações para que seja o “pacote completo de mentira”. Mas se algumas das condições não forem totalmente cumpridas, isso não significa que a mentira não terá alguns resultados negativos.

O resultado do amadurecimento desse “pacote completo de mentiras” será o renascimento nos reinos inferiores. Mas pensamos: “Tá, mas isso é apenas para grandes mentiras. Eu só conto algumas mentirinhas ocasionalmente.” Provavelmente não achamos que realmente iremos para os reinos inferiores por isso. Temos nossas dúvidas. Pensamos: “Provavelmente não”. Provavelmente achamos que essas coisas não nos lançarão para os reinos inferiores.

Mas o que nós sabemos? No que diz respeito à compreensão das conexões extremamente sutis entre as ações cármicas e seus resultados, apenas o Buda entende totalmente as causas e efeitos cármicos sutis. Se realmente achamos que as “mentirinhas” são absolutamente boas, isso é um sinal de que não temos uma fé convicta nas leis de causa e efeito cármicos, ou nas consequências negativas que tais ações podem produzir, como nascer em reinos inferiores. Achamos que provavelmente vai ficar tudo bem se contarmos algumas mentirinhas. Mas para obter uma crença forte e confiante nas conexões causais cármicas sutis, não podemos simplesmente sentar e dizer “eu acredito”, e forçar isso. Não funciona assim.

Ganhando Confiança nos Ensinamentos do Buda

Para desenvolver uma compreensão correta e ganhar confiança nos ensinamentos mais sutis do Buda, como as formas sutis de operação do mecanismo de causa e efeito cármico, é bom olhar novamente para os ensinamentos do Pramanavarttika de Dharmakirti, onde ele nos oferece algumas sugestões muito úteis. Digamos que estejamos discutindo as qualidades do Buda. Imagine que alguém nos diz que, com sua visão extra-sensorial elevada, o Buda pode ver a grandes distâncias ou que, quando ele olha para o oceano, consegue ver todos os seres que vivem lá, e por isso devemos ter fé nele. Bem, podemos pensar: “Por que eu deveria acreditar nisso?” E, na verdade, Dharmakirti disse que essa não é uma boa maneira de gerar uma fé com confiança no Buda e no que ele ensina.

Ele disse que a melhor maneira é dizer que o Buda foi alguém que expôs em detalhes os estágios do caminho e explicou que qualquer um pode segui-lo para alcançar a liberação e a total onisciência do estado completo de buda. Para dizer isso, ele teve como base a sua experiência pessoal de ter trilhado com sucesso esse caminho, mas alertou as pessoas para que não aceitassem isso com uma fé cega, para que testassem, como testam o ouro ao comprá-lo. Quando examinamos e analisamos os métodos delineados nesses estágios, com lógica e razão, quando colocamos em prática os estágios iniciais e experimentamos por nós mesmos que eles realmente nos levam aos objetivos que dizem levar, podemos inferir que os demais estágios também são válidos.

Se o Buda, que é dotado de grande compaixão por todos os seres, onisciência e as poderosas habilidades de ajudar a todos, conseguiu alcançar suas realizações por causa de sua grande compaixão por nós, por que mentiria ou tentaria nos confundir? Tudo o que o Buda ensinou foi para nos aproximar da libertação do sofrimento e da confusão, então não há como ele estar tentando nos enganar. Portanto, podemos acreditar implicitamente, com fé confiante, que o que o Buda disse sobre as sutis conexões entre causas e efeitos cármicos – mesmo que estejam além de nossa compreensão atual – também deve ser verdade. Por que o Buda mentiria sobre isso?

Essa é a maneira com que Dharmakirti diz ter desenvolvido uma fé confiante no Buda. Dharmakirti foi um grande mestre em Nalanda, e sem a tradição de Nalanda, os ensinamentos provavelmente não teriam sobrevivido até hoje. É por isso que Sua Santidade o Dalai Lama diz que devemos ter uma tremenda gratidão pela tradição de Nalanda, por terem conseguido preservar essa maneira incrível de nos envolvermos com os ensinamentos budistas.

Fé com Convicção e Fé Cega

Eu venho usando o termo “fé” aqui, e sei que para alguns ocidentais, isso pode ser um assunto complicado. Então deixe-me falar sobre a diferença entre fé com convicção, ou estável, e fé cega. Quando temos essa convicção, por termos feito a análise acima, de que o Buda não está nos enganando, de forma alguma, temos uma fé estável e com convicção. A fé cega surge mais quando desenvolvemos uma fé quase instantânea, sem verificar muito as coisas. Esse tipo de fé é muito instável. Ideias equivocadas podem surgir com muita facilidade. Sentimentos podem surgir, e nós os seguirmos quase imediatamente, sem examiná-los.

Uma de nossas responsabilidades é saber se as coisas que estamos pensando são realmente válidas. Olhando para coisas como causa e efeito cármicos, o que devemos fazer é verificar criteriosamente coisas como o caminho para a liberação, a iluminação plena. Além disso, podemos estudar e observar os raciocínios que sustentam a ideia de causa e efeito cármicos. Existe uma maneira lógica de verificar cuidadosamente as coisas, em oposição à súbita explosão de inspiração que muitas vezes temos. Precisamos fazer isso para ter um engajamento mais estável com o caminho.

Deixe-me dar um exemplo. Digamos que temos dores de cabeça e precisamos de remédios. Na verdade, os medicamentos funcionam da mesma maneira para todas as pessoas. Portanto, podemos passar por um processo de experimentar diferentes marcas de analgésicos, testando-as para ver se funcionam. Quando encontramos uma marca que funciona bem para nós, vamos comprá-la sempre. E isso não fica apenas nas dores de cabeça. Começamos a confiar nessa empresa, de modo que, se tivermos outro problema, como dor de estômago ou náusea, também compraremos seus remédios.

Automaticamente desenvolvemos “fé” nos produtos dessa empresa, pois funcionam e nos ajudam. Da mesma forma, quando desenvolvemos fé nos ensinamentos do Buda, que ele mostrou o caminho certo para a libertação e como superar nossos problemas e a causa de todos os problemas – nossa mente ignorante –, automaticamente temos uma fé convicta nos outros ensinamentos do Buda, que podem não ser muito fáceis de entender. Quando vemos, mesmo que seja no início do caminho, que os métodos que ele ensinou estão funcionando e nos ajudam a superar alguns dos problemas que enfrentamos na vida, mais tarde, quando começarmos a falar sobre os resultados cármicos sutis, automaticamente teremos uma fé convicta no Buda.

Debate Sobre o Lugar da Fé nos Caminhos Hindu e no Caminho Budista

Há quem argumente que a diferença entre o budismo e o hinduísmo é que enquanto o caminho do budismo é baseado na lógica e na razão, o caminho hindu de Shiva é baseado na fé. O caminho budista tem estágios lógicos claramente definidos e um fim, que é alcançado após muitas vidas. O caminho hindu de Shiva não tem essas etapas e não tem fim. Baseia-se puramente na fé.

Eles usam a analogia de cair de um penhasco em um poço. Alguns professores hindus modernos dizem que o budismo é como cair em um poço que tem fundo. Quando você atinge o fundo, se despedaça como uma melancia e, portanto, se pensar no fim, ficará muito assustado. O caminho hindu de Shiva, por outro lado, não tem fim, é como cair em um poço sem fundo. Cair para sempre, para eles, é o caminho, e não há medo nele.

Eles também dizem que Shiva ensinou 114 caminhos e que o caminho da consciência baseado na lógica e na razão que o Buda ensinou é apenas um deles. Nesse sentido, também, o budismo é limitado. E com base nisso, eles dizem que basear-se na lógica e na razão é uma armadilha. Eu gosto de debater com eles sobre esse ponto. Além do equívoco de que o ponto final do budismo é a aniquilação completa e, portanto, é algo a ser temido, eu argumentaria que, em vez de o caminho budista da razão ser apenas uma parte do caminho da fé, o caminho budista inclui fé, mas fé baseada na razão, não é fé cega.

A Importância da Fé Estável Baseada na Lógica e no Raciocínio

O que acontece conosco com a fé cega é que ficamos imediatamente animados quando recebemos um ensinamento, seja do sutra ou do tantra, e queremos imediatamente ir fundo nele. Muitas vezes, porém, misturamos isso com nossos próprios desejos e vontades, e rapidamente dizemos: “Oh, este é meu guru!” Então, depois de alguns meses, talvez o guru aja de uma maneira incomum que não esperávamos, começamos a notar suas falhas, ficamos frustrados e nos afastamos. Se tivéssemos baseado nosso engajamento no Dharma olhando para ele como um caminho para a liberação – ao invés de simplesmente ficarmos animados e seguirmos rapidamente um guru – isso levaria a uma fé muito mais estável, como a mencionada por Dharmakirti.

A fé que temos no Buda, e consequentemente a fé que temos em seus ensinamentos sobre causa e efeito cármicos, baseiam-se em um processo que começa com a compreensão inequívoca das quatro nobres verdades. Quando percebemos a validade das quatro nobres verdades e o caminho da liberação que é delineado nelas, entendemos que o professor, o Buda, também é inequívoco e válido. Então, quando dizemos que as sutilezas de todos os detalhes de causa e efeito cármicos são algo que apenas um Buda consegue entender, desenvolvemos a fé de que o que Buda disse sobre isso está correto. Entretanto, nossa fé é baseada na razão e é por isso que temos uma fé convicta no Buda. Nesse sentido, o caminho da lógica e da razão é que inclui o caminho da fé, e não o contrário.

Observações Finais

Aqui, tentei cobrir brevemente o escopo inferior.  A seguir, falarei sobre o escopo médio e superior. Como eu disse anteriormente, o principal no Lhabab Duchen é perceber os feitos do Buda e o motivo para ele ter ido até o Céu dos Trinta e Três. O mais importante de se lembrar é que, mesmo sendo o Buda, ele queria retribuir a bondade de sua mãe, por isso foi até lá para dar ensinamentos. Ele não comprou coisas caras para ela. Essa é a verdadeira ação de graças, não comer peru!

Top