Como Praticar Vajrasattva

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Introdução

A prática de Vajrasattva (rDo-rje sems-dpa’) é uma meditação tântrica para a purificação do carma. Sendo uma prática Mahayana, é empreendida com o ideal de bodhichitta, ou seja, de purificar todos os carmas a fim de se atingir a iluminação o mais rápido possível para conseguir ajudar melhor os seres sencientes. Em última instância, a prática de Vajrasattva é uma meditação não conceitual na vacuidade, mas em um nível provisório, implica na recitação repetida do mantra de cem sílabas (yig-rgya), com estados mentais opositores e visualizações complexas. 

A visualização e recitação do mantra de Vajrasattva pode ser feita no contexto da prática sutra, antes de começarmos qualquer prática tântrica. Neste caso, pode ser feita isoladamente ou como parte das “práticas preliminares” formais do tantra, onde repetimos o mantra 100.000 vezes. A recitação e visualização também pode fazer parte de uma “sadhana” (sgrub-thabs) tântrica formal para nos efetivarmos como uma figura búdica (yi-dam). A sadhana pode ser de qualquer classe tântrica. 

Independente do nível em que praticamos a meditação de Vajrasattva, seu objetivo é purificar nosso carma. Carma (las) refere-se aos ímpetos mentais incontroláveis e recorrentes que nos levam a agir, falar e pensar de determinada forma, e aos impulsos com os quais levamos a cabo as assim chamadas “ações cármicas”. Existem diversas explicações ligeiramente diferentes dadas por vários mestres budistas indianos, mas aqui não precisamos detalhar essas diferenças. 

Ações cármicas geram “repercussões cármicas”, que podem ser, por exemplo, tendências cármicas (sementes), em nosso contínuo mental. Mais adiante, geralmente em um renascimento futuro, a repercussão cármica amadurece como, ou gera os, “resultados cármicos” que de alguma forma correspondem às ações cármicas. Usamos a palavra “amadurecer” para passar a ideia de que o resultado não aparece imediatamente (skyes-bu byed-pa'i 'bras-bu, Skt. purushakaraphalam), como a dor de batermos o dedo do pé ou o resultado imediato de nossas ações nos outros. “Purificação de carma” é, na realidade, uma forma concisa de se dizer “purificação da repercussão cármica”. Neste contexto, “purificar” significa eliminar a possibilidade de vivenciarmos os resultados cármicos do amadurecimento da repercussão cármica. 

A tradição Mahayana é a única a afirmar a possibilidade de purificação do carma antes dele terminar de amadurecer. De acordo com as escolas Hinayana, toda nossa repercussão cármica deve amadurecer antes de morrermos na vida em que atingirmos a liberação como um arhat ou a iluminação como um buda, mesmo que a experiência resultante seja insignificante. 

O Processo Geral de Purificação 

Contexto: As Quatro Nobres Verdades 

Para entendermos como o carma pode ser purificado, precisamos entender as quatro nobres verdades. A purificação do carma só pode ocorrer no contexto das quatro nobres verdades: sofrimentos verdadeiros, causas verdadeiras (origens verdadeiras), cessação verdadeira e caminhos mentais verdadeiros (caminhos verdadeiros) 

Sofrimentos Verdadeiros 

Sofrimentos verdadeiros referem-se à nossa experiência dos resultados do amadurecimento do carma. Esses resultados podem ser sentimentos de felicidade maculados, sentimentos de infelicidade ou fatores agregados maculados da experiência (phung-po, Skt. skandha). Em geral, “maculado” (zag-bcas, contaminado) refere-se a algo que vem da falta de consciência (ma-rig-pa, Skt. avidya; ignorância) da realidade, ou seja, não saber como os fenômenos existem ou ter uma compreensão equivocada sobre como eles existem. 

Existem três variedades de sofrimento: 

  • A experiência da infelicidade - que vem do comportamento destrutivo que, por sua vez, vem da falta de consciência a respeito de suas causas e efeitos e da natureza da realidade. Em geral, uma ação destrutiva é motivada por emoções destrutivas de apego, hostilidade ou ingenuidade, e pela falta de valores e de escrúpulos.
  • A experiência da felicidade maculada e efêmera - é uma felicidade que não satisfaz, já que não impede que a infelicidade retorne e, quando acaba, não sabemos o que acontecerá depois. Surge por nos comportarmos construtivamente, porém sem consciência a respeito da natureza da realidade. Em geral, uma ação construtiva é motivada pelo desapego e pela ausência de hostilidade e ingenuidade, assim como pela presença de valores e escrúpulos.
  • A experiência do surgimento dos fatores agregados, juntamente com o ciclo de renascimentos incontroláveis (‘khor-ba, Skt. samsara) - Os fatores agregados da experiência constituem a base e o contexto para experimentarmos os dois primeiros tipos de sofrimento. Esses fatores agregados também surgem dos dois tipos de comportamento, destrutivo e construtivo, e de comportamentos específicos comprometidos pela falta de consciência da realidade. Este terceiro tipo de sofrimento verdadeiro refere-se a experiências de:
    • Fatores agregados de um renascimento, ou seja, a forma de vida, as características físicas e mentais e os instintos com os quais nascemos. Esses fatores são o resultado do amadurecimento (rnam-smin-gyi ‘bras-bu, Skt. vipakaphalam) do carma e são eticamente neutros - nem construtivos, nem destrutivos
    • Lugar e situação de um renascimento. Surge como o resultado predominante (bdag-po'i 'bras-bu, Skt. adhipatiphalam, resultado prevalecente, resultado abrangente) do carma.
    • Momentos em que sentimos vontade de fazer, dizer ou pensar de forma semelhante a nossas ações cármicas passadas ou, mais precisamente, gostar (dga’-ba) ou desejar (‘dod-pa) agir, falar ou pensar de tal forma. Tais experiências são resultados cármicos que se manifestam em nosso comportamento (byed-pa rgyu-mthun-gyi ‘bras-bu). 
    • Coisas acontecendo conosco de forma similar às nossas ações passadas. São resultados cármicos que se manifestam na forma como vivenciamos as coisas (myong-ba rgyu-mthun-gyi ‘bras-bu).

Causas Verdadeiras 

As verdadeiras causas desses três tipos de sofrimento são o carma e as aflições mentias (nyon-mongs, Skt. klesha; emoções e atitudes perturbadoras). “Aflições mentais” são fatores mentais que, quando acompanham um momento de nossa experiência, nos fazem perder a paz mental e o autocontrole. Além de motivarem ações cármicas, também servem como condição para o amadurecimento das repercussões cármicas dessas ações. Porém, em última análise, tanto o carma quanto as aflições mentais derivam da falta de consciência sobre a natureza da realidade ou, mais especificamente, do apego à existência inerente (bden-‘dzin). 

De acordo com a lei da certeza do carma, quando nos sentimos infelizes é certo que essa infelicidade é o resultado do amadurecimento de repercussões cármicas de ações destrutivas. E quando vivenciamos felicidade maculada, certamente ela resulta do amadurecimento das repercussões cármicas de ações construtivas. Entretanto, tanto as ações construtivas quanto as destrutivas são motivadas e executadas sem consciência a respeito da natureza da realidade. 

São três as condições que fazem com que as repercussões cármicas amadureçam como o terceiro tipo de sofrimento verdadeiro, ou seja, como a experiência de agregados maculados que são a base para a experiência dos dois primeiros tipos de sofrimento verdadeiro: a experiência de infelicidade e a de felicidade maculada. As duas primeiras condições são aflições mentais, já a terceira é um desejo/anseio cármico. Todas as três condições surgem no contexto de um nível de felicidade maculada, de infelicidade ou de um sentimento neutro. Os três tipos de sentimentos maculados, por sua vez, são o que já amadureceu de outras repercussões cármicas. As três condições são: 

  • Um anseio (sred-pa)
  • Uma aflição obtentora (len-pa)
  • Um desejo cármico por mais uma existência.

“Anseio” — cuja tradução literal do sânscrito é “sede” (trsna) - é a emoção perturbadora de ansiar por se livrar da infelicidade, por não se separar da felicidade ou por manter um sentimento neutro. Sendo uma aflição mental, o anseio exagera as qualidades positivas ou negativas do sentimento em que foca. Além disso, a anseio vem acompanhado do apego à existência inerente (verdadeiramente estabelecida), que projeta uma existência inerente no sentimento e em suas qualidades. 

A aflição “obtentora” pode ser a emoção destrutiva do desejo por algum objeto sensorial — pode ser apego por um objeto que já temos ou o desejo por um que não temos. Assim como no caso do anseio, esse desejo ou apego da aflição obtentora exagera as boas qualidades do objeto sensorial em que foca. 

E o apego à existência inerente, que acompanha a aflição obtentora, projeta uma existência inerente no objeto sensorial. 

Alternativamente, a aflição obtentora pode ser uma das várias atitudes perturbadoras. A principal é a visão equivocada sobre uma rede transitória (‘jig-lta), que nesse caso é ao apego aos agregados maculados, como sendo um “eu” verdadeiramente existente. Os agregados maculados são a base para os sentimentos maculados e o resultado do amadurecimento de repercussões cármicas. Essas aflições obtentoras são acompanhadas do apego à existência inerente, que foca nos agregados maculados projeta uma existência inerente neles e no “eu” convencional, que é imputado neles. 

Assim, tanto o anseio quanto a aflição obtentora surgem devido à falta de consciência a respeito da natureza da realidade — mais especificamente devido ao apego a uma existência inerente — e também são acompanhados da falta de consciência e do apego. Assim, o anseio e a aflição obtentora causam o impulso cármico que faz surgir uma nova existência. Esse impulso ativa as repercussões cármicas das ações que têm poder de gerar um novo renascimento. As repercussões cármicas ativadas consistem tanto dos impulsos cármicos que lançarão nosso contínuo mental na experiência de seu próximo renascimento quanto os impulsos cármicos que farão surgir a experiência das condições desse renascimento. Esses impulsos são conhecidos, respectivamente, como “carma de lançamento” (‘phen-byed-kyi las) e “carma de finalização” (rdzogs-byed-kyi las). 

Resumindo: 

  • Devido à nossa falta de consciência sobre a realidade, cometemos ações cármicas. Essas ações geram repercussões cármicas que, por sua vez, amadurecem na forma de sentimentos de felicidade maculada, infelicidade ou neutralidade. E vivenciamos esses sentimentos maculados no contexto dos agregados maculados, que amadureceram a partir de outras repercussões cármicas.
  • A falta de consciência sobre a realidade gera um anseio direcionado ao sentimento maculado que vivenciamos e faz surgir uma emoção obtentora direcionada ao objeto pelo qual temos os sentimentos maculados, ou uma atitude obtentora em relação aos fatores agregados nos quais ocorre a experiência do objeto. 
  • O anseio e a aflição obtentora servem como condição para o surgimento do impulso cármico de um novo renascimento. Esse impulso cármico ativa mais uma repercussão cármica que, agora na forma de um carma de lançamento, gera nossa futura experiência de agregados maculados. 
  • Depois, mais uma repercussão cármica amadurece, dessa vez como o sentimento maculado que vivenciamos no contexto desses agregados. Também vivenciamos esses sentimentos com falta de consciência sobre a realidade. 

Em última instância, a verdadeira causa do sofrimento é a falta de consciência da realidade ou, mais especificamente, o apego a uma existência inerente. 

Esse mecanismo complexo descreve o ciclo de renascimentos incontroláveis, ou seja, o samsara, que é repleto de sofrimento do início ao fim. Os doze elos da originação dependente detalham todo esse mecanismo. 

Verdadeira Cessação 

A verdadeira cessação do sofrimento só pode acontecer se houver uma verdadeira cessação de suas causas. Assim, uma verdadeira cessação refere-se à ausência absoluta de carma e de aflições mentais, e também daquilo que deles amadurece: a experiência de sofrimento verdadeiro dos sentimentos e agregados maculados. “Ausência absoluta” significa cessar de forma a nunca mais surgir. 

Verdadeiro Caminho Mental 

Um verdadeiro caminho mental, que gera uma verdadeira cessação, é a cognição não conceitual da vacuidade que tem como base a direção segura (refúgio) e a renúncia, e pode estar acompanhada ou não de um ideal bodhichitta. 

  • “Renúncia” é uma forte determinação de se livrar de todos os sofrimentos verdadeiros e suas causas.
  • “Bodhichitta” é uma mente focada em nossa própria iluminação, que ainda não aconteceu, mas que é uma imputação válida em nosso contínuo mental e acontece com base nos fatores de nossa natureza búdica. Esse foco vem acompanhado da intenção de atingir a iluminação e beneficiar todos os seres limitados por meio disso.
  • No contexto do anuttarayoga tantra, essa cognição não conceitual é feita com a consciência de clara luz (‘od-gsal) e uma realização bem-aventurada da vacuidade. “Consciência de clara luz” é o nível mais sutil de consciência que os seres podem ter. No contexto da prática dzogchen, essa cognição não conceitual e bem-aventurada da vacuidade é feita com a consciência pura (rig-pa, rigpa). Para simplificarmos a discussão, limitaremos nossa apresentação à consciência de clara luz, já que os pontos mais relevantes também se aplicam à consciência pura. 

Vajrasattva representa a realização total da consciência de clara luz em dois aspectos: 

  • Seu aspecto de pureza dupla (dag-pa gnyis-ldan) da terceira nobre verdade - tem (1) a pureza natural de sua natureza que nunca foi maculada pelo carma ou por aflições mentais e (2) a pureza alcançada pela remoção das máculas efêmeras, de forma que nunca mais surjam. 
  • Seu aspecto de quarta nobre verdade — aquele que nos livra dos verdadeiros sofrimentos e suas verdadeiras causas. 

A meditação de Vajrasattva é praticada focando-se na purificação do carma. Quando purificarmos todo o carma com a consciência de clara luz de Vajrasattva, atingimos a iluminação. 

Aquilo que é Purificado: Repercussões Cármicas 

Visto que purificar carma significa purificar as repercussões de nossas ações ações cármicas, vejamos os três tipo de repercussões cármicas que precisam ser purificadas. Cunhei o termo repercussão cármica para nos referirmos a todos os três: 

  • Redes de forças cármicas (tshogs, coleções)
  • Tendências cármicas (sa-bon, sementes, traços)
  • Hábitos cármicos constantes (bag-chags).

O sistema de princípios Mahayana é o único a afirmar a existência de hábitos cármicos constantes; o sistema de princípios Hinayana não fala nisso. 

Forças cármicas incluem forças negativas (sdig-pa, “pecados”) e forças positivas (bsod-nams, “mérito”). Quando as forças cármicas amadurecem, vivenciamos os agregados maculados do renascimento samsárico, mas isso não ocorre com as tendências cármicas. No entanto, tanto as forças quanto as tendências cármicas amadurecem durante o renascimento transformando-se em: 

  • Sentimentos maculados de felicidade ou infelicidade
  • Sentirmos vontade de repetir ações cármicas parecidas com ações que já cometemos anteriormente
  • Coisas acontecendo de forma similar às ações cármicas que já cometemos
  • Os ambientes onde as experiências acima ocorrem.

As forças e tendências cármicas também são similares no que diz respeito à forma como amadurecem. Ambas amadurecem de forma intermitente, e não continuamente, e quando terminam de manifestar seu resultado, se exaurem e não podem mais ser ativadas. Porém, apesar de exauridas, continuam presentes em nosso contínuo mental na forma de “sementes queimadas”. Até que sejam totalmente eliminadas, o que acontece apenas quando atingimos o verdadeiro cessar de todos os obscurecimentos cognitivos (shes-sgrib) através da cognição não conceitual da vacuidade, elas continuam, transformadas em hábitos cármicos constantes, limitando nossa consciência e, assim, atrapalhando nossa realização da iluminação onisciente.  

Os hábitos cármicos são constantes, ou seja, manifestam seus efeitos continuamente. Eles dão origem à consciência limitada em cada momento de nossa experiência e também à falta de habilidade de reconhecermos as duas verdades simultaneamente — o que existe e como cada coisa existe. Assim como as tendências cármicas, os hábitos cármicos são fenômenos não especificados, mas a forma como os hábitos cármicos constantes dão origem à consciência limitada e à falta de habilidade não é denominada de “amadurecimento”. Um amadurecimento (smin-pa) é o fim natural de alguma coisa, após o qual ela se exaure e não é mais capaz de dar resultados, mas os hábitos cármicos constantes nunca se exaurem; eles nunca desaparecem de forma natural. Eles só desaparecem quando a cognição não conceitual da vacuidade nos liberta dos obscurecimentos cognitivos (shes-sgrib), ou seja, quando atingimos a iluminação. 

Repercussões Cármicas são Variáveis Influentes Não Concomitantes 

“Purificar carma” significa livrar nosso contínuo mental dos três tipos de repercussão cármica, incapacitando-os de manifestar resultados futuros. Mas não podemos purificar ou eliminar resultados que já tenham surgido, como ter nascido cego, por exemplo. 

Para entendermos como a purificação é possível, precisamos compreender o tipo de fenômeno que é a repercussão cármica. Apesar de haverem explicações mais complexas, aqui veremos a menos complicada. 

Conforme essa explicação, os três tipos de repercussão kármica são abstrações não estáticas (impermanentes) e são imputações em um contínuo mental. Na terminologia técnica diríamos que são variáveis influentes não concomitantes (ldan-min ‘du-byed), o que significa que são fenômenos não estáticos (impermanentes) e que não são nem fenômenos físicos e nem formas de estar-se consciente de alguma coisa. Elas não compartilham as cinco características concomitantes com a consciência primária do momento de cognição.

Quando dizemos que a repercussão cármica é “não estática”, significa que ela surge na dependência de causas e condições e, portanto, é afetada por elas. Além disso, por ser afetada por condições, muda momento a momento. Conforme as repercussões cármicas vão produzindo efeitos, vão afetando nossa experiência. 

O “eu” convencional também é uma variável influente não concomitante, uma imputação em um contínuo mental. Mas o “eu” convencional, nunca pode ser removido de um contínuo mental, mesmo quando iluminado; já a repercussão kármica pode ser removida definitivamente. Podemos chegar a uma verdadeira cessação dela. 

Um “eu” convencional será sempre uma imputação válida em um contínuo mental, uma vez que não possui um oponente mutuamente excludente que possa destruí-lo ou eliminá-lo. Entretanto, a presença de repercussões kármicas é apenas uma imputação válida em um contínuo mental que contém a experiência das ações kármicas causais e que pode conter momentos futuros de experiência de seu resultado kármico. 

As três repercussões cármicas existem de maneira que podem ser imputadas em um contínuo mental apenas enquanto ainda conseguem produzir um efeito. A produção de um efeito só pode acontecer na dependência de causas e condições. Quando eliminamos as causas e condições capazes de fazer com que a repercussão cármica provoque seus efeitos, a produção do efeito por parte dela não é mais possível. Quando a produção de um efeito não é mais possível, a existência das repercussões cármicas que poderiam produzir o efeito não são mais uma imputação válida no contínuo mental. Afinal, os três tipos de repercussões cármicas não são verdadeiramente existentes como “coisas” encontráveis em um contínuo mental.

Essa é a forma de purificarmos repercussões cármicas. Pela cognição não conceitual da vacuidade eliminamos o apego à existência inerente e, consequentemente, o anseio e as emoções ou atitudes obtentoras que podem agir como condição para que as repercussões cármicas sejam ativadas e deem origem a seus efeitos.

O Processo de Purificação 

Primeiro livramos (spang-ba) nosso contínuo mental da rede de forças e tendências cármicas. Esse termo, spang-ba, aqui traduzido como “livrar” — normalmente traduzido como “abandonar” — significa purificar nosso contínuo mental de alguns fenômenos maculados, de forma que eles cessem verdadeiramente. Nos livramos de nossa rede de forças cármicas, tanto positivas como negativas, e de todas as nossas tendências cármicas quando atingimos o estado de arhat, ou seja, quando atingimos a liberação. 

Quando atingimos a liberação, durante o resto da vida ainda experimentamos os agregados maculados com os quais nascemos. Além disso, ainda vivenciamos as coisas acontecendo conosco de maneira parecida com nossas ações cármicas passadas. Entretanto, não experimentamos mais os sentimentos maculados de felicidade e infelicidade e não temos mais vontade de repetir o comportamento cármico passado. 

Quando renascemos em uma terra pura, depois de atingirmos a liberação, não temos mais a experiência dos agregados maculados ou de coisas acontecendo de forma similar às nossas ações cármicas passadas. Entretanto, nossa consciência ainda é limitada. 

Só nos livramos dos hábitos cármicos constantes quando atingimos a iluminação e nos tornamos Budas. 

Prática Provisória de Vajrasattva 

A derradeira prática de Vajrasattva é a meditação não conceitual na vacuidade dentro do contexto da prática tântrica do anuttarayoga e com a consciência da clara luz. Já a prática provisória é feita com visualizações e recitações de mantra e, na melhor das hipóteses, com uma compreensão conceitual da vacuidade. O resultado da prática provisória é que os potenciais e tendências cármicas tornam-se “sementes queimadas”, que não podem mais ser ativadas e produzir resultados cármicos, como no caso dos potenciais e tendências cármicas que exauriram sua capacidade de gerar resultados cármicos. No entanto, essas sementes ainda são imputações válidas no contínuo mental e, como agora foram transformadas em hábitos cármicos constantes, atrapalham a iluminação. E mais, como ainda não nos livramos do apego à existência verdadeiramente estabelecida, continuaremos a desenvolver emoções perturbadoras e impulsos cármicos, e, portanto, a gerar repercussões cármicas. Todavia, a purificação provisória nos dá um “tempo pra respirar” a fim de conseguirmos produzir mais causas para a iluminação. 

Vamos destacar vários níveis e contextos nos quais normalmente fazemos essa prática de purificação. Todos os níveis precisam ser praticados no intuito de atingirmos a iluminação para beneficiarmos todos os seres, ou seja, com o ideal de bodhichitta. 

O Nível Pré-Tantra 

Apesar da meditação no mantra de Vajrasattva ser uma prática tântrica, a maioria das pessoas começa a fazê-la antes de se engajar no tantra. Essa prática inicial estaria no estágio em que treinam apenas no nível sutra do Mahayana. Esse nível tem três estágios, de acordo com os níveis graduais de motivação e metas apresentados nos ensinamentos dos caminhos mentais do lam-rim: inicial, intermediário e avançado. Apesar de apenas o nível avançado do lam-rim estar no nível de motivação estritamente Mahayana, os níveis iniciais e intermediários precisam entrar como degraus no caminho para o desenvolvimento da motivação avançada. E ainda, todos os três níveis de motivação do lam-rim desenvolvidos no contexto da prática sutra Mahayana precisam ser praticados como degraus para a prática do tantra. 

Nível Inicial de Motivação 

A princípio, podemos nos engajar na prática do mantra e visualização de Vajrasattva com o objetivo de evitar o sofrimento grosseiro. Fazemos a prática por estarmos apavorados com a probabilidade de sentirmos tristeza ou dor. Nesse caso, a prática está em um nível equivalente ao nível inicial de motivação delimitado nos ensinamentos do lam-rim. 

A meta desse nível inicial da prática de Vajrasattva é purificar nosso contínuo mental apenas em relação às forças e tendências cármicas negativas, que juntas amadurecem como o primeiro dos três tipos de sofrimento verdadeiro — renascimentos piores e infelicidade grosseira mesmo em um renascimento humano. Trabalhamos para purificar nosso contínuo mental dessas forças e tendências negativas que acumulamos não apenas durante esta vida mas ao longo de nossas infinitas vidas anteriores. Lutamos por um renascimento em estados melhores, como um ser humano ou como um ser divino, um “deus”. 

Neste nível, trabalhamos para nos purificar dos efeitos dos seguintes carmas negativos: 

  • Ter cometido cada uma das dez ações destrutivas (dez não virtudes)
  • Ter transgredido e, portanto, enfraquecido nossa direção segura (refúgio) em cada uma das Três Joias Preciosas
  • Ter nos comportado de forma inapropriada com cada um de nossos mentores espirituais e assim enfraquecido nosso vínculo de proximidade (dam-tshig, Skt. samaya) com eles. 
  • Ter transgredido ou enfraquecido cada um de nossos votos de pratimoksha para liberação individual, cada um de nossos votos de bodhisattva e cada uma das dezoito práticas de compromisso e vinte e dois pontos de treinamento para limpar nossas atitudes (lojong; treinamento de atitude; treinamento da mente).

[Vejo: Os Votos-Raiz de Bodhisattva e Treinamento da Mente em Sete Pontos]

Entretanto, se a meditação de Vajrasattva fosse praticada dessa maneira, como um fim em si mesma, seria o equivalente não budista da purificação de pecados pela graça de Jesus Cristo a fim de irmos para o paraíso. A purificação budista tem que estar baseada na direção segura — alvejando a terceira e a quarta nobre verdade: a verdadeira cessação e o verdadeiro caminho mental — e ver a eliminação das forças e tendências cármicas apenas como um degrau na escada para a liberação ou iluminação. 

Neste nível, para que a meditação de Vajrasattva seja uma prática Mahayana ela também deve estar baseada em um ideal de bodhichitta. Além disso, precisamos enxergar a eliminação do futuro amadurecimento de forças e tendências cármicas negativas em sofrimento grosseiro como essencial para sermos mais capazes de ajudar os outros. O objetivo de obtermos renascimentos melhores, especificamente uma vida humana preciosa dotada de lazer e oportunidades que permita a prática ótima do dharma, é tirar vantagem de tais renascimentos para alcançar a iluminação para o benefício de todos os seres. 

Nível Intermediário de Motivação 

Tendo a renúncia como motivação, praticamos a meditação de Vajrasattva com o objetivo de atingirmos a liberação de todo o sofrimento. Tal prática está em um nível equivalente ao nível intermediário de motivação, delimitado nos ensinamentos do lam-rim. O objetivo, neste caso, é purificar nosso contínuo mental da rede positiva e negativa de forças cármicas e das tendências cármicas positivas e negativas. Com isso, evitamos experimentar os três tipos de sofrimento verdadeiro: infelicidade, felicidade maculada e o ciclo incontrolável de renascimentos com agregados maculados. Atingindo isso, atingimos a liberação do samsara. 

Entretanto, a meditação de Vajrasattva com motivação de nível intermediário também precisa estar baseada no ideal de bodhichitta. É necessário percebermos que, para sermos mais capazes de ajudar os outros, precisamos nos livrar para sempre do ciclo incontrolável de renascimentos com seus altos e baixos de felicidade e infelicidade e seus sofrimentos de nascimento, doença, velhice e morte. Caso contrário, nosso trabalho de beneficiar os outros ficará severamente prejudicado. Não precisamos esperar até purificarmos totalmente nosso contínuo mental das forças e tendências cármicas negativas para focarmos nossa prática de Vajrasattva em purificar o contínuo mental das forças e tendências positivas também. À medida que nossa motivação for evoluindo do nível inicial para o intermediário, naturalmente ampliamos o âmbito daquilo que tentamos purificar. 

Nível Avançado de Motivação 

Tendo o ideal bodhichitta como nossa única motivação, a prática de Vajrasattva se expande para purificar nosso contínuo mental não só de todas as forças e tendências cármicas mas também de todos os hábitos cármicos constantes. Para conseguirmos beneficiar ao máximo os seres, precisamos atingir o estado onisciente de um buda. Isso significa que precisamos nos livrar da consciência limitada, que é o que resulta, momento a momento, de nossos hábitos cármicos constantes. Sem termos os meios hábeis completos, sem termos imenso amor, e assim por diante, como seremos capazes de ajudar todos os seres? 

Resumindo, os níveis iniciais e intermediários de motivação do lam-rim são para purificar nosso contínuo mental dos problemas associados com o extremos do samsara compulsivo (srid-mtha’). O nível avançado é para purificá-lo dos problemas associados como o extremo da paz tranquila do nirvana (zhi-mtha’). 

O Nível de Prática do Ngondro 

Quando nos engajamos na prática do mantra e visualização de Vajrasattva no contexto estritamente sutra da prática Mahayana, o escopo da motivação do lam-rim não faz diferença. Em qualquer dos três escopos precisamos considerar nossa prática como um degrau para um eventual engajamento no tantra. Quando realmente estivermos prontos para avançar para o tantra, praticamos a meditação de Vajrasattva como parte do “ngondro”, as práticas preliminares formais. Repetirmos o mantra de cem sílabas 100.000 vezes, em quatro, três, duas ou uma sessão diária, sem pular nenhum dia, até completarmos todas as repetições. Fazemos isso para nos purificar ao menos dos obstáculos mais grosseiros que podem prejudicar nosso sucesso na prática do tantra, com o objetivo final de alcançarmos a iluminação e beneficiarmos todos os seres. 

A Meditação de Vajrasattva na Prática Tântrica 

Em todas as quatro classes de tantra, praticamos o mantra e visualização de Vajrasattva na sessão de preliminares de todas as sadhanas completas das figuras búdicas. Mais adiante nas sadhanas, repetimos a prática de Vajrasattva de forma bem abreviada após a recitação do mantra da figura búdica, a fim de purificarmos qualquer repercussão cármica de erros na recitação. 

A prática do yoga tantra e do anuttarayoga tantra dentro das tradições Sakya, Kagyu e Gelug — e também a prática do yoga tantra, mahayoga, anuyoga e atiyoga na tradição Nyingma — implica em tomarmos votos tântricos em alguma iniciação. Em tais casos, também podemos praticar o mantra e visualização de Vajrasattva para purificar votos tântricos enfraquecidos ou um compromisso enfraquecido. Se perdermos os votos tântricos por termos transgredido-os completamente, podemos purificar a força negativa da ação com a repetição de 100.000 mantras de cem sílabas e então tomar novamente os votos. 

Em todos esses contextos tântricos da prática de Vajrasattva a motivação também precisa ser bodhichitta. Queremos evitar as consequências negativas das ações que podem prejudicar ou atrasar a obtenção da habilidade de ajudar os outros e a nossa iluminação. A motivação não é apenas uma motivação não Mahayana inicial, ou seja, não é simplesmente evitar renascimentos em situações piores e o sofrimento da dor e da infelicidade. 

Resumindo, qualquer que seja nosso nível de prática, o mantra e visualização de Vajrasattva precisa ser uma prática Mahayana. Afinal, só o Mahayana afirma que o carma pode ser purificado. Assim, meditações para purificar carma só fazem sentido quando praticadas com motivação Mahayana. 

As Quatro Forças Opositoras

Video: Geshe Tashi Tsering — “O Que É Purificação no Budismo”
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Independente do nível de motivação com o qual nos engajamos na prática de purificação de Vajrasattva, precisamos começar cada sessão admitindo abertamente (bshags-pa, “confissão”) as ações kármicas cometidas, reconhecendo que foram equivocadas e que, a menos que sejam purificadas, nos trarão sofrimentos e problemas. A seguir, aplicamos as quatro forças opositoras (gnyen-po'i stobs-bzhi):

  • O arrependimento sincero
  • A decisão firme de tentar não repetir a ação
  • A reafirmação de nossa base, ou seja, nossa direção segura e ideal de bodhichitta
  • A aplicação de ações construtivas contrárias, tais como a meditação e visualização de Vajrasattva.

De acordo com o Mahayana, mesmo que tenhamos cometido ações kármicas podemos diminuir a força de suas repercussões com orações e outros meios. Se outras pessoas nos oferecerem orações depois de nossa morte e enquanto ainda estivermos no período do bardo, entre renascimentos, a força das repercussões kármicas pode ser diminuída. Isto porque as orações afetam o surgimento das condições que podem amadurecer a repercussão. Similarmente, se admitirmos abertamente nossas ações kármicas e aplicarmos as quatro forças opositoras diminuímos os peso do amadurecimento kármico, já que isso se contrapõem aos fatores que fazem com que o karma amadureça com força:

  • Admitir abertamente o erro — opõe-se a não considerarmos a transgressão como prejudicial
  • Arrepender-se — opõe-se à falta de arrependimento, a nos alegrarmos com a ação kármica negativa e a termos agido com alegria.
  • Tentar não repetir a ação — opõe-se a não termos desejo ou intenção de parar de repetir a transgressão
  • Reafirmar a direção segura e o ideal de bodhichitta — opõe-se a não termos autodignidade moral e não nos importarmos com a forma como nossas atitudes refletem nos outros
  • Aplicar ações construtivas contrárias — opõe-se a não pensarmos em reparar o dano.

Qualquer ação construtiva contrária precisa estar acompanhada do ideal bodhichitta e das seis atitudes de amplo alcance (pha-rol-tu phyin-pa, Skt. paramita; perfeições) — generosidade, autodisciplina ética, paciência, perseverança alegre, estabilidade mental e consciência discriminativa — assim, nossas ações contrárias qualificam-se como conduta de bodhisattva. Isso significa, principalmente, praticar a meditação de Vajrasattva com algum nível de concentração correta e cognição da vacuidade — especificamente, algum nível de realização subsequente (rjes-thob, estado pós-meditativo) de ver tudo como uma ilusão. Inicialmente, nosso nível de cognição correta da vacuidade será conceitual e pode não estar de acordo com a mais sofisticada compreensão Madhyamaka.

Note que a aplicação das quatro forças opositoras muda nossa compreensão das ações kármicas cometidas, de compreensão incorreta (tshul-min yid-la byed-pa) para compreensão correta.

  • Vermos a ação kármica como algo prejudicial indica uma mudança na forma como a consideramos, de felicidade para sofrimento e de pura para impura.
  • Arrependermo-nos da ação ao invés de nos alegrarmos com ela, é o resultado da mudança na forma como a consideramos.
  • Prometer tentar não repetir a ação, indica uma mudança na forma como consideramos esse tipo de comportamento, de permanente para impermanente.
  • Impermanente, ou não estático, significa que pode ser afetado por outros fenômenos e, assim, reafirmarmos nossa direção segura e bodhichitta, e aplicarmos medidas opositoras indica que compreendemos isso.
  • Agregar alguma compreensão da vacuidade às ações opositoras construtivas indica que mudamos a forma como consideramos as ações kármicas, de possuindo uma identidade inerente para não possuindo uma identidade inerente.

Para que consigamos ver tudo como uma ilusão, precisamos primeiro analisar e depois focar nos “três portais para a liberação” (rnam-par thar-pai sgo gsum) e seu relacionamento com as ações kármicas e a purificação de suas repercussões.

Os três portais são:

  • Vacuidade (stong-pa-nyid) — que refere-se à vacuidade dos fenômenos existentes.
  • Ausência de um sinal (mtshan-ma med-pa) – que refere-se à ausência de qualquer sinal de uma causa verdadeiramente existente para esse fenômeno.
  • Ausência de esperança (smon-pa med-pa) – que refere-se à ausência de esperança no que diz respeito à existência de um resultado verdadeiramente existente para o fenômeno.

Portanto, precisamos focar na vacuidade:

  • Dos fenômenos em si, ou seja, das ações kármicas e de suas repercussões.
  • Das causas das ações kármicas e das causas que purificarão suas repercussões kármicas
  • Dos resultados que surgirão das repercussões kármicas e dos resultados que surgirão da purificação das repercussões kármicas

Também podemos analisar com base nos “quatro portais para a liberação”. No caso, o quarto portal é:

  • A ausência de variáveis influentes em uma ação (mngon-par du-byed med-pa) – que refere-se à ausência de existência verdadeira dos “três círculos” (‘khor-gsum) de uma ação, ou seja, um ato a ser feito, um agente e uma ação (bya-byed-las-gsum).

Portanto, também precisamos focar na vacuidade:

  • Da purificação que deve ser feita
  • De nós mesmos como agentes que fazemos a purificação
  • Do ato de meditar na vacuidade para purificar e do ato de purificação em si.

Apego à Existência Inerente e Purificação

Conforme já vimos, o apego a uma existência inerente é o que está por trás do anseio e da aflição obtentora, que são os fatores que ativam a repercussão kármica para que gere seus resultados kármicos, especialmente na hora da morte. Também vimos que mesmos os métodos provisórios de purificação, como a meditação no mantra de Vajrasattva, requerem pelo menos uma compreensão básica da vacuidade da existência inerente. Precisamos perceber que a aparência de existência inerente projetada pela nossa mente não se refere à maneira como as coisas existem. Não existe existência inerente. São muitas as consequências dolorosas que experimentamos por projetar e acreditar na existência inerente. Por exemplo, podemos nos apegar:

  • À existência de uma ação kármica destrutiva que cometemos como sendo inerentemente “má”, independente do rótulo “má”
  • À existência de nós mesmos como inerentemente “maus” por termos cometido essa ação.
  • À existência dos resultados kármicos dessa ação como sendo inerentemente uma “punição inevitável e eterna”.

Esse apego à existência inerente está por trás da aflição mental da culpa.

Da mesma forma, podemos nos apegar:

  • À existência de uma ação kármica construtiva que cometemos como sendo inerentemente “boa”
  • À nossa própria existência como sendo inerentemente “boa”, já que cometemos tal ação
  • À existência dos resultados kármicos da ação como sendo inerentemente uma “recompensa inevitável”.

Tal apego está por trás da emoção perturbadora do orgulho.

A compreensão da vacuidade que acompanha nossa prática do mantra Vajrasattva pode não ser muito precisa ou sofisticada e, portanto, seria incapaz de purificar completamente a repercussão kármica. Todavia, meditar um pouco sobre a vacuidade de nossas ações kármicas não é apenas apropriado, é também essencial. Assim, podemos nos livrar, pelo menos em um nível provisório, da culpa e do orgulho, e dos problemas que deles derivam.

Mesmo que pratiquemos a meditação de Vajrasattva sem a compreensão correta da vacuidade, se praticarmos com uma motivação pura e uma boa concentração, as quatro forças opositoras tem o poder de purificar a repercussão kármica provisoriamente, pelos menos até certo ponto. Isso nos lembra do poder que a meditação sobre a feiúra tem para superarmos provisoriamente o desejo e o apego. Meditarmos sobre a feiura de um corpo sem pele pode eliminar o desejo e o apego que sentimos por esse corpo. No entanto, não previne a reincidência do desejo e do apego, pois não atacou, e muito menos eliminou, a causa e condição fundamental para o reaparecimento do desejo e do apego, que é o apego à existência inerente.

Tipos de Práticas de Vajrasattva para Purificação

A meditação com o mantra e visualização de Vajrasattva pode ser praticada mesmo que nunca tenhamos recebido iniciação tântrica (dbang, Skt. abhishekha; “wang”) de alguma figura búdica. Podemos praticar Vajrasattva com ou sem a permissão subsequente (rje-snang; “jenang”) de Vajrasattva, mas precisamos pelo menos da transmissão oral (lung) do mantra.

Se praticarmos Vajrasattva juntamente com a prática de uma figura do anuttarayoga tantra, Vajrasattva será um casal. Os dois membros do casal devem ser brancos e terem uma face e dois braços. O homem tem uma expressão pacífica na boca, como a de Guhyasamaja e Yamantaka, ou uma expressão semi pacífica e com presas, como a de Heruka Vajrasattva, que é praticado com Chakrasamvara, Vajrayogini e Hevajra. No Kalachakra, Vajrasattva é azul, sua parceira é verde e ambos tem três faces e seis braços.

Se praticarmos Vajrasattva sem a iniciação em uma figura búdica, nos visualizamos em nossa forma normal durante a prática. Visualizamos todos os seres ao nosso redor com um Vajrasattva sobre suas cabeças e sendo purificados. Se praticarmos já tendo iniciação em uma figura búdica, nos visualizamos como a figura búdica durante a prática, mas com o “orgulho da deidade” (lha’i nga-rgyal) bem fraco. E nos visualizamos em nossa forma comum em um disco de lua em nosso coração, rodeado por todos os seres, todos sendo purificados. “Orgulho da deidade” é o sentimento de realmente ser a figura búdica.

As tradições Nyingma e Sakya praticam Vajrasattva também como figura búdica (yidam) e, no caso, podemos receber uma iniciação de Vajrasattva. Se já tivermos recebido a iniciação, podemos nos visualizar como Vajrasattva durante a prática, com nós mesmos sentados em um disco de lua e rodeados por todos os seres em nosso coração. Também podemos imaginar todos os seres a nossa volta e nós, como Vajrasattva, após termos atingido a purificação, emitindo raios de luz e purificando a todos. As tradições Gelug e Kagyu não praticam Vajrasattva como um yidam e, portanto, não possuem iniciação de Vajrasattva. Nestas tradições, não nos visualizamos como Vajrasattva e não visualizamos luzes saindo de nós e purificando todos os seres a nossa volta.

A Sessão de Meditação de Vajrasattva

Preliminares

Para a meditação de visualização e mantra de Vajrasattva, começamos as preliminares nos acalmando através do foco na respiração enquanto respiramos normalmente pelo nariz. Se nossa mente já estiver razoavelmente calma, focamos meramente nas sensações da entrada e saída do ar nas narinas. A seguir, podemos visualizar Vajrasattva à nossa frente incorporando à visualização todos os objetos que indicam a direção segura. Depois, reafirmamos nossa motivação de tomar a direção segura e o ideal bodhichitta. Podemos, como opção, fazer a prática dos sete ramos:

  • Prostrações, feitas no contexto da direção segura e de bodhichitta
  • Oferendas
  • Admitir abertamente nossas falhas e aplicar as quatro forças opositoras
  • Alegrar-se com as boas qualidades nossas e dos outros, e com as boas qualidades de Vajrasattva como consciência de clara luz totalmente iluminada
  • Requisitar ensinamentos — neste caso, requisitar purificação: que Vajrasattva como consciência de clara luz torne possível a purificação
  • Suplicar ao professor que não morra — neste caso, acessando Vajrasattva, como consciência de clara luz, para que não nos deixe, que continue permitindo a purificação e nos ajudando até a iluminação.
  • Dedicar qualquer purificação que consigamos à obtenção da iluminação, para podermos ajudar os outros o máximo possível.

Depois tomamos a decisão consciente de meditar com concentração e então focamos no ponto entre as sobrancelhas para combater o torpor ou no umbigo para combater a agitação.

Se não fizermos a prática dos sete ramos, simplesmente nos lembramos daquilo que queremos purificar, admitimos abertamente e aplicamos as quatro forças opositoras. Para a quarta força opositora, fazemos a parte principal da prática de Vajrasattva com a decisão consciente de nos concentrarmos.

Visualização de Vajrasattva

De acordo com o contexto em que estivermos praticando, visualizamos a forma correspondente de Vajrasattva sentado no topo de nossa cabeça. Se tivermos dificuldade de visualizar em detalhes, podemos visualizar apenas uma bola de luz branca. O aspecto de manter o orgulho da deidade — neste caso, o sentimento de um Vajrasattva realmente sentado em nossa cabeça — é mais importante do que o aspecto de nitidez da figura em nossa imaginação. Um método para aprendermos a visualizar algo no topo da cabeça é pôr a mão na cabeça e depois tirar. Ainda podemos sentir o ponto em na cabeça onde nossa mão estava e ainda sentimos como se algo estivesse lá.

O Mantra de Cem Sílabas

A pronúncia tibetana do mantra difere do original sânscrito. Alguns mestres tibetanos instruem seus alunos a pronunciarem o mantra conforme os tibetanos o fazem e alguns recomendam que o pronunciem no estilo sânscrito. Sua Santidade o Dalai Lama recomenda que não tibetanos sigam a pronuncia sânscrita:

OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA, VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA, DRIDHO ME BHAVA, SUTOSHYO ME BHAVA, SUPOSHYO ME BHAVA, ANURAKTO ME BHAVA, SARVA SIDDHIM ME PRAYACCHA, SARVA KARMA SUCHA ME, CHITTAM SHRIYAM KURU HUM, HA HA HA HA HOH BHAGAVAN, SARVA TATHAGATA VAJRA, MA ME MUNCHA, VAJRI BHAVA, MAHA-SAMAYA-SATTVA, AH HUM PHAT.

A tradução literal do mantra é:

Om Vajrasattva, mantenha seu compromisso. Faça com que eu permaneça próximo a esse estado de Vajrasattva. Faça com que eu permaneça estável. Faça com que eu seja feliz. Faça com que eu seja alegre. Faça com que eu esteja protegido. Conceda-me todas as realizações. Faça com que todas as minhas ações sejam excelentes. Faça com que minha mente seja suprema - HUM. HA HA HA HA HO, Mestre Vencedor Que a Tudo Supera, estado vajra de todos os que Assim se Foram. Não me deixe solto, Oh Ser Vajra, ser que possui o grande compromisso. AH, HUM, PHAT.

Existem várias maneiras de explicar cada frase do mantra, uma é esta:

  • OM = silaba semente para o corpo; VAJRASATTVA = ser cuja mente é forte como o diamante. Oh, ser cuja a mente é forte como o diamante — significando você cujo estado mental é indestrutível, que é Vajrasattva, que representa a consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade. O OM no começo do mantra acompanha o AH e o HUM no final, que referem-se à fala e à mente, indicando corpo, fala e mente que precisam ser purificados e o estado purificado de corpo, fala e mente atingido como resultado da purificação.

SAMAYAM = compromisso; ANUPALAYA = manter

  • Mantenha o compromisso - o compromisso ou promessa de que, através da consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade, eu serei capaz de purificar todas as repercussões kármicas

VAJRASATTVATVA = estado de Vajrasattva; ENA = isso; UPATISHTA = permanecer próximo

  • Faça com que eu permaneça próximo do estado de Vajrasattva — ou seja, o estado de consciência de clara luz.

DRIDHO = estável ; ME = eu ; BHAVA= faça.

  • Faça com que eu seja estável — através de minha eliminação das redes de forças kármicas e tendências kármicas negativas do contínuo mental.

SUTOSHYO = feliz; ME = eu; BHAVA = faça.

  • Faça com que eu seja feliz — através da minha eliminação das redes de todas as forças kármicas e todas as tendências kármicas negativas do contínuo mental, para que eu atinja a liberação, com sua felicidade imaculada.

SUPOSHYO = alegre; ME = eu; BHAVA = faça.

  • Faça com que eu seja alegre — através de minha eliminação de todos os hábitos kármicos constantes, para que eu atinja a iluminação, com sua eterna bem-aventurança.

ANURAKTO = protegido ; ME = eu; BHAVA = faça.

  • Faça com que eu esteja protegido — de forma que minha mente nunca se afaste da consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade.

SARVA = tudo; SIDDHIM = realização; ME = eu; PRAYACCHA = conceder.

  • Conceda-me todas as realizações — especificamente, a realização suprema da iluminação.

SARVA =tudo; KARMA = ações; SUCHA = excelente; ME = eu.

  • Que todas as minhas ações sejam excelentes — em termos de iluminação, que eu obtenha o Rupakaya (corpo de formas) de um buda, para que todas as minhas ações sejam excelentes, a fim de que eu possa beneficiar melhor os seres.

CHITTAM = mente; SHRIYAM = suprema; KURU= faça;

  • Faça com que minha mente seja suprema — em termos de iluminação, que eu obtenha um Dhamakaya (um corpo que a tudo abrange) para ter a consciência onisciente e um coração que a todos acolhe.

HUM = sílaba semente para a mente;

HA= representa o caminho mental da construção (caminho da acumulação); HA = representa o caminho mental da aplicação (caminho da preparação); HA = representa o caminho mental da visão (caminho da visão); HA = representa o caminho mental da habituação (caminho da meditação); HOH = representa o caminho mental de não mais treinar (caminho de não mais aprender).

  • Que minha mente se desenvolva progressivamente nos cinco caminhos mentais.
  • Alternativamente, HA HA HA HA HOH pode representar os cinco tipos de consciência profunda que, em seus estados totalmente purificados constituem a mente onisciente de um buda. Neste caso, essa linha significa: Que minha mente se transforme nos cinco tipos de consciência profunda purificada.

BHAGAVAN = Mestre Vencedor que a Tudo Supera ; SARVA = tudo; TATHAGATA = Que Assim se Foi; VAJRA = forte como um diamante.

  • E que assim eu me torne alguém que subjugou e purificou todas as repercussões kármicas e dominou e, portanto, ganhou todas as boas qualidades, superando todos os outros seres. Em outras palavras, que eu atinja o estado adamantino de todos aqueles que assim se iluminaram.

MA = não; ME = eu; MUNCHA = largar,

  • Não me deixe largar ou perder a consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade.

VAJRI = forte como um diamante; BHAVA = ser,

  • Oh Ser Vajra - nominalmente, Vajrasattva

MAHA = grande; SAMAYA = vínculo estreito; SATTVA = ser com mente,

  • Oh você cuja mente tem o grande compromisso - em outras palavras, Oh consciência bem-aventurada de clara luz da vacuidade que possui o grande compromisso de purificar completamente.

AH - sílaba semente para a fala; HUM = sílaba semente para a mente; PHAT = sílaba estabilizadora.

  • O AH e o HUM para fala e mente completam o OM, para o corpo, do início do mantra. Que todas as interferência para o corpo, fala e mente cessem e que a purificação possa permanecer estável.

Variações do Mantra

O mantra acima é a forma genérica do mantra de cem sílabas e aparece na maior parte das práticas de kriya, charya e yoga tantra, bem como nas práticas de Guhyasamaja, Mahachakra Vajrapani e Kalachakra do anuttarayoga tantra. No entanto, existem diversas variações do mantra de cem sílabas. Alguns mantras, por exemplo, terminam em AH HUM PHAT, ou AH HUM, ou simplesmente AH, mas não faz diferença qual você usa.

Em algumas partes da prática de Vajrabhairava (rDo-rje ‘jigs-byed), também conhecido como Yamantaka (gShin-rje gshed):

  • OM YAMANTAKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
  • YAMANTAKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA,
  • YAMANTAKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA MA ME MUNCHA,
  • YAMANTAKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Chakrasamvara (‘Khor-lo sdom-pa, Khor-lo bde-mchog), também conhecido como Heruka (He-ru-ka), assim como nas práticas de Vajrayogini (rDo-rje rnal-‘byor-ma), também conhecida como Vajravarahi (rDo-rje Pag-mo):

  • OM VAJRA HERUKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
  • HERUKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA,
  • VAJRA HERUKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA MA ME MUNCHA,
  • HERUKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Hevajra (Kyai rdo-rje):

  • OM SHRI VAJRA HERUKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
  • HERUKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA,
  • SUTOSHYO ME BHAVA, ANURAKTO ME BHAVA, SUPOSHYO ME BHAVA substitui SUTOSHYO ME BHAVA, SUPOSHYO ME BHAVA, ANURAKTO ME BHAVA,
  • VAJRA HERUKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA MA ME MUNCHA,
  • HERUKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Guhyasadhana Hayagriva (rTa-mgrin gsang-sgrub):

  • OM PADMA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
  • PADMA-SATTVA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA,
  • PADMA-SATTVA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA MA ME MUNCHA,
  • PADMA-SATTVA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas da forma Tamdrin Yangsang (rTa-mgrin yang-gsang) de Hayagriva:

  • OM PADMA SHRI HERUKA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
  • PADMA SHRI HERUKA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA,
  • PADMA SHRI HERUKA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA MA ME MUNCHA,
  • PADMA SHRI HERUKA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Em várias práticas de Padmasambhava (Pad-ma ‘byung-gnas) Guru Rinpoche (Gu-ru rin-po-che), como Sasum-rigdzin (Sa-gsum rigs-‘dzin) e Yangsang Dordje-trolo (Yang-gsang rDo-rje Gro-lod):

  • OM GURU PADMA SAMAYA MANU-PALAYA substitui OM VAJRA-SATTVA SAMAYA MANU-PALAYA,
  • GURU PADMA TVENO-PATISHTA substitui VAJRA-SATTVA TVENO-PATISHTA,
  • GURU PADMA MA ME MUNCHA substitui SARVA TATHAGATA VAJRA MA ME MUNCHA,
  • GURU PADMA BHAVA substitui VAJRI BHAVA.

Existe uma versão concisa do mantra de Vajrasattva que também pode ser repetida para purificação, mas não é tão usada quanto a versão de cem sílabas:

  • OM VAJRASATTVA HUM, como em alguma práticas Nyingma.

Visualizações da Purificação

Vários textos e professores apresentam diferentes conjuntos de visualizações para fazermos junto com a meditação no mantra de Vajrasattva. Vamos detalhar um desses conjuntos de múltiplos passos.

Para Purificação de Acordo com o Nível Inicial de Motivação

Como um primeiro passo no processo de purificação necessário para atingirmos a iluminação, trabalhamos para nos purificar de forças e tendências kármicas negativas. Considerando-se que esses tipos de repercussões kármicas negativas amadurecem como sofrimento grosseiro nos piores estados de renascimento, o âmbito da prática está de acordo com o nível da motivação inicial do lam-rim. Ele foca na purificação do primeiro dos três tipo de sofrimento verdadeiro.

Para purificar as repercussões kármicas negativas que amadurecem na forma de experiências horríveis que afetam nosso corpo e fala, aplicamos um conjunto de três visualizações — um conjunto completo para o corpo, seguido de um conjunto completo para a fala. À medida que recitamos o mantra de Vajrasattva repetidamente dentro de uma prática sutra, ou de alguma das três primeiras classes do tantra, imaginamos luzes saindo do dedão do pé de Vajrasattva, entrando no topo de nossa cabeça e preenchendo nosso corpo. Quando praticamos no contexto de uma prática do anuttarayoga tantra, imaginamos luzes e néctar saindo do lugar de união do casal Vajrasattva, entrando em nosso corpo de forma similar e nos preenchendo.

No que diz respeito a nosso corpo, imaginamos luz, ou luz e néctar, preenchendo o corpo de cima para baixo e as impurezas relevantes saindo por nossos orifícios inferiores de excreção de resíduos sólidos e líquidos. No que diz respeito à fala, imaginamos a luz, ou a luz e o néctar, preenchendo nosso corpo de cima para baixo e as impurezas deixando o corpo pelos orifícios superiores, ou seja, boca, nariz, olhos e ouvidos.

  • As repercussões kármicas negativas que nos levam a vivenciar (1) o sofrimento grosseiro da infelicidade e da dor e (2) as coisas acontecendo de forma similar às nossas ações kármicas passadas deixam os orifícios na forma de fuligem, alcatrão e tinta preta.
  • As repercussões kármicas negativas que nos levam a vivenciar (1) obstáculos kármicos, bloqueios e máculas em nossos agregados e o ambiente dos renascimentos futuros piores ou (2) impedimentos físicos ou verbais em um futuro renascimento humano, assim como (3) momentos em que sentimos vontade de agir, falar ou pensar de forma similar à nossas ações kármicas passadas deixam nosso corpo na forma de ranho, muco, pus, fezes e urina.
  • As repercussões kármicas negativas que nos levam a vivenciar (1) doenças e outras interferências, tais como forças malignas, no futuro, deixam nosso corpo da forma das criaturas de que temos mais medo, como escorpiões, aranhas, ratos ou cobras.

Para purificarmos a mente, empregamos apenas uma visualização, aplicando-a três vezes, uma para cada tipo de impureza. Assim, imaginamos em nosso coração cada um dos três tipos de impureza, um de cada vez, na forma de um nódulo negro. Enquanto recitamos o mantra de Vajrasattva, imaginamos que um raio sai do coração de Vajrasattva e entra em nosso coração desintegrando o nódulo.

Para purificarmos alguma outra impureza que tenha ficado no corpo, podendo afetá-lo ou à nossa fala e mente, aplicamos a visualização para o corpo, fala e mente conjuntamente, simultaneamente, para cada um dos três conjuntos de impurezas.

Purificação de Acordo com os Níveis Intermediário e Avançado do Lam-Rim.

Para atingirmos a liberação, meta do nível intermediário de motivação do lam-rim, precisamos nos livrar não apenas dos obscurecimentos emocionais (nyon-sgrib), mas também de todas as forças e tendências kármicas - tanto positivas quanto negativas. O foco, portanto, é a purificação de todos os três tipos de sofrimento verdadeiro. Já para alcançarmos a iluminação, meta do escopo avançado, precisamos nos livrar não apenas dos obscurecimentos cognitivos (shes-sgrib), mas também dos hábitos kármicos constantes que impedem nosso corpo, fala e mente de funcionar como os de um buda.

Nesse segundo passo da meditação do mantra de Vajrasattva, repetimos as mesmas visualizações do primeiro passo. Mas no que diz respeito à purificação do corpo e fala, imaginamos que:

  • A fuligem, alcatrão e tinta preta representam as forças kármicas
  • O ranho, muco, pus, fezes e urina representam as tendências kármicas
  • As criaturas de que temos medo representam os hábitos kármicos constantes

No que diz respeito à purificação da mente, imaginamos um nódulo preto em nosso coração representando cada um dos três tipos de repercussão kármica, uma de cada vez. Note que, em ambos os passos desse esquema de purificação, as três visualizações, fuligem, ranho e criaturas atemorizantes, são iguais às empregadas na prática do dar e receber (gtong-len, “tonglen”). Nesta prática, imaginamo-nos recebendo dos outros tudo aquilo que essas três coisas representam, visualizadas nessas três formas. A questão é que a maioria das pessoas deseja cada vez mais se livrar dessas três coisas e se limpar, como se elas estivessem lhes contaminando.

Resultados da Prática de Vajrasattva

Purificação Provisória

Os resultados da prática de purificação com o mantra são limitados. Se repetirmos o mantra 21 vezes ao dia, evitamos que as forças e tendências kármicas negativas fiquem cada vez mais fortes. Isso porque, a intensidade com que aplicamos as forças opositoras combate e diminui o peso de nossas ações destrutivas. Desta forma, a prática diária neutraliza a força de amadurecimento da repercussão kármica. Uma das leis do karma é: de pequenas ações podem amadurecer grandes resultados.

Se repetirmos o mantra 100.000 vezes com o ideal de bodhichitta, concentração adequada e, de preferência, compreensão conceitual da vacuidade, conseguiremos uma “purificação provisória” das forças e tendências kármicas construtoras do samsara. Ao fazermos a purificação provisória com esses métodos Mahayana — que não utilizam a cognição não conceitual da vacuidade — as repercussões kármicas anteriormente criadas tornam-se “sementes queimadas” e não poderão mais ser ativadas ou gerar resultados kármicos. No entanto, como continuam em nosso contínuo mental, geram obstáculos à liberação. Enquanto não conseguirmos um verdadeiro cessar do apego à existência verdadeiramente estabelecida, continuaremos a gerar as repercussões kármicas perpetuadoras do samsara. Porém, como fizemos purificações provisórias com o ideal de bodhichitta, e dedicamos a força positiva (mérito) para atingirmos a iluminação a fim de beneficiar todos os seres, também geramos muita força positiva de iluminação.

Purificação Derradeira

A purificação derradeira é equivalente a um verdadeiro cessar, ou seja, à remoção total das repercussões kármicas de nosso contínuo mental. Conseguimos esse verdadeiro cessar através da repetida cognição não conceitual da vacuidade junto com o ideal de bodhichitta — em outras palavras, com a consciência discriminativa de amplo alcance da vacuidade (perfeição da sabedoria), prajnaparamita. Tal cognição é o derradeiro mantra de Vajrasattva. Conforme está escrito no Sutra do Coração, “a consciência discriminativa de amplo alcance (perfeição da sabedoria) é o (grandioso) mantra protetor mental, o mantra protetor mental do grande conhecimento, o mantra protetor mental insuperável, o mantra protetor mental igual ao inigualável, o mantra protetor mental que subjuga todo sofrimento”

Ao conseguirmos um verdadeiro cessar de todos os obscurecimentos emocionais, livramos nosso contínuo mental do apego à existência verdadeiramente estabelecida. Sem apego, não há possibilidade de desenvolvermos os anseios e as atitudes obtentoras que podem ativar algum criador-de-samsara não purificado e que ainda não tenha amadurecido. E também não há mais possibilidade das “sementes queimadas” impedirem nossa liberação. Isso inclui tanto as sementes que foram queimadas por terem se exaurido quanto as que foram purificadas com a prática provisória de Vajrasattva. Uma vez que as tendências e potenciais kármicos criadores-de-samsara tornam-se incapazes de gerar resultados, sua presença não pode mais ser imputada em nosso contínuo mental. Conseguimos assim, seu verdadeiro cessar.

Com o verdadeiro cessar dos obscurecimentos cognitivos, livramos nosso contínuo mental do hábito constante de se apegar à existência verdadeira e alcançamos a onisciência, ou seja, a cognição não conceitual e simultânea das duas verdades. Assim, os hábitos kármicos constantes não poderão mais impedir nossa iluminação, eles também cessaram verdadeiramente.

Podemos atingir a cognição não conceitual com a cognição yóguica (rnal-sbyor mngon-sum) ou com a consciência de clara luz.

  • A cognição yóguica é usada no caminho sutra e nas primeiras três classes do tantra. Ela emprega a consciência mental sutil, que é um nível de consciência em que a criação de aparências de existência inerente pode ocorrer e que é incapaz de reconhecer simultaneamente as duas verdades.
  • A consciência de clara luz é usada exclusivamente no caminho do anuttarayoga tantra. Ela emprega o nível mais sutil de consciência, que é o nível de consciência que não cria aparências de existência inerente e que é capaz de reconhecer simultaneamente as duas verdades.

Com a cognição yóguica da vacuidade e o ideal de bodhichtta podemos progredir até atingirmos o bhumi-mente do décimo nível. No entanto, para atingirmos completamente o verdadeiro cessar dos hábitos kármicos constantes e, portanto, a iluminação, precisamos conseguir a cognição não conceitual da vacuidade com a consciência bem-aventurada de clara luz. Vajrasattva representa essa cognição não conceitual.

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